Por Sérgio Madeira de Sousa*
Tive a sorte de descobrir o universo texiano através de uma aventura que, passados mais de quarenta anos desde a sua publicação em Itália, continua a ser considerada por muitos dos fãs como das melhores de sempre do personagem. Não consigo precisar o ano, apenas que ocorreu entre os finais da década de setenta e o início dos anos oitenta! Fruto da genialidade de Giovanni Luigi Bonelli, “Assalto ao trem1“, uma típica história de western, repleta de ação, incrementada até ao final com as dúvidas sobre o paradeiro do montante roubado e, também, sobre a identidade do informante. Os desenhos da autoria do inovador, para a época, Giovanni Ticci, límpidos e muito detalhados, eram soberbos e em muito contribuíram para o fascínio desta aventura. Atualmente, Ticci é o desenhador em atividade do staff texiano com o maior número de pranchas desenhadas e, juntamente com Claudio Villa, as referências para os novos desenhadores. Esse primeiro contacto deixou-me completamente viciado! Vício que, apesar de controlado, se mantém até aos dias de hoje! Na época procurei então por outras histórias de Tex Willer, tentando começar a coleção, incentivado pela listagem das histórias publicadas na página quatro. A péssima distribuição existente, curiosamente nada mudou neste aspeto, passados mais de três décadas, levou-me a perder inúmeras edições e por vezes, como a maioria das aventuras eram em continuação, partes das histórias. O que aumentava a ansiedade, mas também a curiosidade, sobre este fantástico universo!

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Em Saint Louis, Tex e os seus pards salvam de um atentado Tom Hogan, dono da companhia de peles Missouri. Decididos a ajudar Hogan, o grupo vai envolver-se numa verdadeira guerra pelo negócio das peles. Jackson, proprietário da Rocky Montains, companhia que Hogan abandonou para fundar a Missouri, juntamente com dez dos seus melhores caçadores, utiliza todos os meios ao seu alcance para absorver a nova companhia e, assim, poder competir com as grandes companhias de peles, como a Hudson Bay. Com as informações obtidas no interrogatório a Bert Morley, um dos elementos envolvidos no planeamento do atentado a Jackson, os cinco parceiros começam a desenvolver ações para o desmantelamento da criminosa organização. Infelizmente, nem tudo vai correr de acordo com o planeado e, ao prestarem auxilio a uma caravana da Missouri, que estava a ser atacada pelos índios Snake, Tex e Tigre são capturados.


“Trapper!” possui um argumento bastante simples: guerra entre duas companhias de peles pelas melhores rotas, em que uma, a Missouri, tenta sobreviver aos ataques desleais que a segunda, a Rocky Montains, utiliza para conseguir arruiná-la e adquiri-la, conseguindo assim dimensão para competir com as outras grandes companhias de peles. Partindo desta base, G.L. Bonelli, o autor deste enredo, consegue desenvolver uma história bem interessante, consistente e bem construída, sem recurso a flashbacks, ou a saltos temporais. Aliás, em momento algum desta aventura existe referência à época! Não existem histórias secundárias a competirem com a trama principal, mas sim pequenos episódios em sequência, que estão interligados, e só por si poderiam resultar em histórias completas. Principalmente o episódio em que, ao socorrerem a caravana da Missouri, Tex e Tigre são capturados pelos índios Snake, ou o seguinte, a destruição por Tex e os seus pards do bando de Shady Bill e a tomada da caravana da Rocky Montains. Relativamente ao ritmo narrativo, existe um bom doseamento das cenas de ação, mantendo a narrativa rápida em grande parte da história, (ritmo adequado para um western), em que alterna entre o rápido nas diversas cenas de ação, com o mais lento nas cenas mais descritivas, preenchidas com diálogos longos e extensos, ou com a utilização de cartuchos e legendas para efetuar pontos de situação ou para explicação de determinadas expressões, como: “contar golpes”, “rendez-vous” ou “free for all”.


Outro aspeto menos conseguido é a conclusão da aventura! Após a rendição da caravana da Rocky liderada por Ben Dermott, completamente iludido com a estratégia de Tex, este delega em Pat a missão de informar Hogan dos últimos eventos e instrui-lo para não perder a oportunidade de enfrentar Jackson, agora que a organização se encontra totalmente destruída. Este final, abrupto e apressado, sem definir o destino de Jackson4, é talvez a parte mais pobre da obra!
Erio Nicolò, o desenhador desta aventura, nasceu em Florença a 11 de Novembro de 1919, tendo falecido em 27 de Fevereiro de 1983, após dezanove anos a desenhar o ranger e contribuído para a realização de algumas das mais emblemáticas histórias do personagem! Além de “Trapper” salienta-se “Apache Kid”, “A flecha quebrada”, “O índio branco” ou a aclamada “A grande intriga”, entre muitas outras. Possuidor de um traço limpo, preciso, mas suave, acima de tudo singular, o seu estilo é inconfundível e perfeitamente identificável em todas as pranchas! Os personagens são credíveis, apresentando fisionomias realistas e imutáveis, independente dos ângulos ou enquadramentos. Como aspeto menos positivo, a utilização de feições similares para diferentes personagens, nos seus trabalhos, mas também na mesma aventura, como em “Trapper!”. Hogan e Jackson, os donos das duas companhias rivais, possuem fisionomias demasiado semelhantes, o que deveria ter sido evitado!
Com Nicolò, raramente se detetam erros de proporção da figura humana, que domina com mestria. A diagramação das pranchas é bastante rígida, fiel ao padrão Bonelli de três tiras por prancha, com uma ou duas vinhetas por tira, na quase totalidade das cerca de quatro centenas de páginas. As exceções são o “rasgar” de algumas vinhetas, com o objeto a ultrapassar a área do desenho, transmitindo, assim, maior tridimensionalidade.
Já no que diz respeito a enquadramentos e ângulos, a obra de Nicolò é bastante diversificada, utilizando, no entanto com maior frequência, os primeiros e os grandes planos. A frequente alteração de ângulos e enquadramentos leva-o por vezes a cometer alguns erros de posicionamento dos personagens, o que compensa com o dinamismo transmitido às cenas, mesmo nas pranchas com maior saturamento de texto! A ambientação desta aventura é bastante variada e complexa, exigindo ao desenhador enorme capacidade de adaptação aos inúmeros ambientes e cenários, o que Nicolò resolve competentemente, graças à sua versatilidade. Aprecio particularmente as cenas passadas nos ambientes externos da floresta e da pradaria, assim como as cenas noturnas. Apesar de não pormenorizar muito os cenários, o facto é que, com Erio muito raramente observamos uma vinheta “desnudada”. Mesmo nos grandes planos, o que enriquece de sobremaneira as suas pranchas!
As aventuras de “a idade de ouro” tinham algo! Algo fascinante que as tornava marcantes, que mantinham os leitores interessados, presos à leitura! Fascínio que raramente consigo encontrar nas aventuras deste século5, que considero demasiado complexas e por vezes monótonas ou desinteressantes. São vários fatores que o podem justificar, como a existência de um maior equilíbrio entre as cenas de ação e as mais descritivas, um maior protagonismo dos outros personagens (Kit, Kit Carson, Tigre), mas também a frequente inclusão de humor ou suspense nos enredos, ou a presença assídua de inimigos poderosos ou carismáticos que colocavam os protagonistas em enormes dificuldades, ou ainda, uma boa exploração do desfecho final. Nem sempre todos estes componentes estavam presentes em cada aventura. Nem era necessário! Pois o que tornava as histórias memoráveis era o correto doseamento dos componentes utilizados, mantendo assim a narrativa viva, num ritmo adequado a um western. Em minha opinião, a fórmula do sucesso dos Bonelli para criarem grandes histórias, assentava essencialmente nessa capacidade de conjugar, de uma forma harmoniosa, os diversos ingredientes da aventura!
Se retirarmos a Trapper! o desfecho que, como já referi, considero bastante fraco, tendo em conta a dimensão do enredo, todos os outros ingredientes estão bem presentes, com um doseamento adequado e, se adicionarmos o trabalho gráfico de Nicolò, competente, bastante personalizado, conseguindo bons desempenhos em todos os ambientes e cenários, mesmo considerando não tendo a profundidade de Villa, o dinamismo de Ticci, que também faz parte dessa fase, o realismo de Frisenda, o detalhe de Rossi, ou mesmo a perfeição de Civitelli, perceberemos que estamos perante um verdadeiro western, digno de figurar na galeria das obras primas bonellianas.
LEGENDA:
1 História publicada originalmente em Setembro e Outubro de 1975 em Itália, nos números 179 e 180 da coleção Tex. No Brasil já foi publicada quatro vezes, a primeira no nº 71 da coleção Tex, em Janeiro de 1971.
2 Na Itália saiu para as bancas pela primeira vez entre Novembro de 1976 e Fevereiro de 1977, nos números 193 a 196 da edição regular de Tex. No Brasil foi publicada inicialmente entre Fevereiro e Maio de 1981, também na edição mensal, nos números 120 a 123.
3 Bisontes, bisões ou búfalos.
4 O facto de o destino de Jackson não ter sido revelado deixou em aberto o seu regresso numa próxima aventura! Retorno esse que passados quase quarenta anos ainda não foi aproveitado por nenhum dos argumentistas do personagem. Boselli, que tem “ressuscitado” diversos personagens da saga, tem em Jackson um inimigo poderoso e sedento de vingança, capaz de protagonizar uma excelente trama, na linha de “A grande intriga”: um homem poderoso a movimentar influências para prejudicar Tex e os seus amigos, levando-os a enfrentar enormes dificuldades, permanecendo no anonimato até próximo do final da aventura. Momento em que seria então revelado em flashback, o sucedido após Tex se ter despedido de Pat.
5 Sou de opinião que a qualidade média das histórias aumentou nos últimos anos, se comparada com as últimas duas ou três décadas. Refiro-me por exemplo, só para mencionar algumas das histórias mais recentes: “Na pista de El Supremo”, “Jovens assassinos” ou “Patagónia”. Esta ultima, unanimemente considerada como das melhores histórias do personagem! Suponho que este ganho de qualidade se deva, essencialmente, à entrada de Gianfranco Manfredi, Tito Faraci e Pasqualle Ruju para o staff, que além de trazerem novas ideias e novas perspetivas para o personagem, permitiram reduzir a quantidade de argumentos destinados a Boselli, dando-lhe assim mais tempo para o desenvolvimento dos seus roteiros.
* Texto de Sérgio Madeira de Sousa publicado originalmente na Revista nº 3 do Clube Tex Portugal, de Dezembro de 2015.
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