Rossano Rossi (desenhador que em Abril estará em Anadia, Portugal): O MEU RELACIONAMENTO COM TEX

Por Mário João Marques*

Rossano Rossi

Quem conhece a Itália não hesita em afirmar que, visitar a região da Toscana, uma das mais belas do país, e não ir a Arezzo, situada entre Florença e Roma, nas margens do Rio Arno, é um pecado quase mortal. Fora dos tradicionais roteiros turísticos, Arezzo é uma pequena cidade localizada no sudeste da província com o mesmo nome, no topo de uma colina, no cruzamento de quatro vales: Val Tiberina, Casentino, Valdarno e Val di China. A sua origem remonta ao tempo dos Etruscos, tornando-se, com a ascensão de Roma, numa das mais importantes cidades do Império. Apesar de severamente danificada durante a Segunda Guerra Mundial, a cidade ainda conserva ricos testemunhos do seu passado. As muralhas do seu Centro Histórico guardam verdadeiros tesouros da arte e da arquitetura de várias épocas da História da Humanidade: torres típicas da Idade Média, arcos romanos, fachadas renascentistas, igrejas revestidas de pedras, museus com peças etruscas e romanas, ruínas de um anfiteatro romano, culminando com a Piazza Grande, o coração do Centro Histórico, onde o cineasta Roberto Benigni realizou e interpretou algumas cenas do filme “A Vida é Bela”, nomeadamente quando passeia de bicicleta e grita “Buongiorno principessa”.

Mostra “La scuola dei fumettisti aretini. Tavole di Fabio Civitelli, Rossano Rossi, Marco Bianchini, Marco Santucci, Maria Laura Sanapo e Lorenzo Palloni“

Pátria de grandes nomes, como o pintor e arquiteto Giorgio Vasari ou do poeta Francesco Petrarca, Arezzo é também a cidade que viu nascer alguns grandes nomes do fumetto italiano, como Marco Bianchini, Fabio Civitelli, Marco Santucci, Maria Laura Sanapo, Lorenzo Palloni ou Rossano Rossi, o nome que aqui nos traz e que tivemos a oportunidade e o grato prazer de conhecer em 2018, durante o Festival Internacional de BD em Beja. Acompanhado por dois indefetíveis texianos italianos, Francesco Micoli e Aldo Carlo Valdambrini, Rossi viajou a convite da organização do Festival por ocasião da comemoração dos setenta anos de Tex, à semelhança do que aconteceu ao longo do ano, que viu aterrar em terras portuguesas nomes como Walter Venturi, presente em Coimbra, e Moreno Burattini e Bruno Ramella, presentes no Clube Português da Banda Desenhada. Habituado à simpatia, disponibilidade e simplicidade de todos os autores de Tex que já tivemos o prazer de conhecer, Rossano Rossi não defraudou as expetativas, revelando-se, à semelhança dos seus conterrâneos transalpinos, uma pessoa extremamente afável, atenciosa e atenta aos leitores e apaixonados que com ele puderam conviver em terras lusitanas. Um convívio que começou em terras alentejanas, mas que se estendeu até Lisboa, cidade onde, durante um dia, tivemos a grata oportunidade de passear e conversar mais calmamente sobre um pouco de tudo, naturalmente com Tex à cabeça.

Tex no castelo de Beja, desenhado por Rossano Rossi

Nascido em 1964, desde tenra idade que Rossano Rossi começou a interessar-se pelo desenho, aproveitando todos os momentos e qualquer lugar para “… folhear e encher de desenhos as várias revistas… principalmente as de Mickey, Pato Donald e companhia”. Rossi sempre gostou de desenhar e ilustrar, imaginava e realizava as suas próprias histórias, com uma especial predileção pelo western, género que lhe permitia desenhar índios, cowboys e xerifes. Por isso, tornar-se profissional na banda desenhada parece ter sido uma consequência lógica desta paixão, mas daí até o desenho poder servir de sustento ainda decorreram alguns anos, uma vez que Rossi sentiu na pele o quanto difícil é para um autor de banda desenhada sobreviver apenas com esta atividade. “Digamos que foi uma forma de masoquismo, eu poderia seguir caminhos bem mais lucrativos, mas é tão bonito poder ilustrar histórias em quadradinhos, é como uma dependência química, eu não poderia ficar sem.

Rossano Rossi e… Fernando Pessoa, em Lisboa

Os primeiros passos de Rossano Rossi na banda desenhada ocorreram na segunda metade dos anos oitenta do século passado, através de algumas histórias auto conclusivas eróticas e de terror, publicadas em várias revistas, como Splatter, Ramba, Blitz ou L’Intrepido. A sua carreira começa verdadeiramente quando Marco Bianchini lhe pede para desenhar a lápis inúmeras páginas de Mister No, o que levará Rossi, no início dos anos noventa, a integrar a equipa de desenhadores desta série da Sergio Bonelli Editore. Entretanto, Federico Memola, na altura um dos argumentistas de Zona X, convida-o para a sua nova série, La Stirpe di Elän, e a carreira de Rossi começa a ganhar forma. Desenha sucessivamente Jonathan Steele e Nick Raider, passando para Tex, onde se estreia com a aventura Il Fugitivo, publicada no Almanacco del West 2005, chegando à série principal dois anos mais tarde, com a história Dieci Anni Dopo. A chegada a Tex deve-se precisamente ao seu amigo e vizinho aretino Fabio Civitelli, que várias vezes o incentivou a fazer alguns testes e a enviá-los à editora, o que acabou por dar frutos: “Foi uma grande alegria, afinal era a personagem que eu sempre segui desde criança, li todas as histórias e fiz muitos esboços das várias personagens, mas também fui invadido por um forte estado de ansiedade. Será que eu seria capaz de aproveitar ao máximo uma personagem de tamanha importância a nível mediático? As minhas pernas tremiam, mas acima de tudo as minhas mãos, mas não desanimei, perguntei-me qual deveria ser o fator fundamental para chegar a um bom resultado e, sem dúvida, percebi que o mais importante seria a verdadeira semelhança do personagem, Tex deveria ser Tex!”.

Tex por Rossano Rossi

No espaço de treze anos, Rossano Rossi desenhou quatro aventuras do ranger, com uma média de três anos a separar cada uma, mas o início foi algo atribulado e permanece como uma das curiosidades da longa saga de Águia da Noite. Devido ao seu ritmo lento, à dificuldade em desenhar cavalos e habituar-se à fisionomia das principais personagens, Rossi acabou por se atrasar com o seu trabalho em Il Fugitivo, e foi o amigo Fabio Civitelli que o ajudou, desenhando a lápis as últimas trinta pranchas da aventura. É o próprio Rossi que o afirma: “Eu sou bastante lento, levo dois dias para fazer uma página. Trabalhando em casa, não tenho horários precisos, digamos que trabalho até tarde de noite, mas faço pausas para relaxar e concentrar-me. Vida em família não há, pois sou solteiro e moro sozinho. Não sei se conseguiria concentrar-me se tivesse uma família”. Este ritmo lento advém de um estilo muito preciso, limpo e detalhado, com um cuidado imposto a cada desenho, onde pontificam negros de rara beleza, muito à semelhança de Civitelli. “Digamos que uso bastante a internet, a rede é um instrumento formidável para a documentação. Também uso livros fotográficos e velhas BD. Em alguns casos o argumentista fornece-me a documentação, principalmente se ele tem uma ideia bem precisa sobre a cena a desenhar, mas geralmente ele dá-me ampla liberdade”. Esta liberdade permite ao autor inserir elementos que não constam do guião, como por exemplo em Attacco alla Diligenza, onde Rossi vai desenhar a main street de uma cidade tendo como referência uma cena do filme Open Range (A Céu Aberto), ou adotar o vestuário de um dos protagonistas de 3:10 to Yuma (O Comboio das 3 e 10) para o chefe dos bandidos.

Attacco alla diligenza; página desenhada por Rossano Rossi

Aprecio uma certa forma de desenhar, precisa, meticulosa, cuidada nas anatomias, mesmo que, como alguns afirmam, tendendo mais a um certo dinamismo Ticciano”. Ou seja, numa primeira apreciação todos concordarão com a influência exercida por Civitelli na representação do Tex de Rossi, apesar deste apresentar um rosto mais seco e um queixo menos saliente. No entanto, se Civitelli emprestou o seu estilo, se bem que parcialmente, a verdade é que as poses e as fisionomias parecem-nos ir beber muito a Ticci. Ou seja, o modelo de Rossi estará entre estas duas influências, acabando por se aproximar de um estilo mais pessoal com o decorrer dos seus trabalhos, o que parece bem patente logo a seguir à primeira aventura. “As suas características físicas e a fisionomia do rosto e do corpo eram fundamentais para agradarem ao leitor, muitos não querem adaptar o seu estilo em Tex, pretendendo que seja Tex a adaptar-se ao seu estilo, o que acaba por gerar uma certa repulsa da parte do leitor. Eu queria evitar tudo isso, e acho que consegui, pelo menos pelos elogios lisonjeiros recebidos dos leitores ao longo destes anos”.

Esboço de Tex na arte de Rossano Rossi

Em 2005, Rossi estreia-se em Tex, com Il Fugitivo, uma aventura publicada no Almanacco del West, com a ação a decorrer numa pequena localidade, junto ao deserto de Sonora, onde um Tex solitário e munido apenas de arco e flechas, arrisca perder a vida, emboscado por inúmeros fora da lei. É o próprio Rossi que nos fala da génese deste seu primeiro trabalho em Tex, sublinhando duas curiosidades, uma delas já referida acima: “A primeira é que a história foi escrita pelo meu grande colega e amigo Fabio Civitelli, tal como as últimas trinta pranchas foram desenhadas por ele e, posteriormente, finalizadas a tinta por mim, já que eu estava bastante atrasado. Era a minha primeira história de Tex e queria sair-me bem. Precisava de acostumar-me com o novo universo texiano, mas a história tinha que ser publicada, por isso Fabio deu-me a sua ajuda, o que eu ainda hoje agradeço”.

Esboço de Tex a disparar; arte de Rossano Rossi

Três anos mais tarde, Rossi salta para a série principal e desenha Dieci Anni Dopo, novamente uma aventura escrita por Nizzi, em que Tex reencontra os quakers da cidade de Paradise, indo em sua ajuda contra a arrogante Rhonda Carpenter, uma mulher que tem tanto de fascinante como inescrupulosa, e que pretende apoderar-se de todos os terrenos da zona. “Lembro-me que no início não foi fácil, a responsabilidade era muito grande, uma vez que se tratava de uma história que recuperava os acontecimentos contados numa aventura histórica – “Terra Promessa”. Mas devo dizer que, com o passar do tempo, tudo se tornou muito mais fluido, tive um enorme prazer em desenhar duas personagens históricas, os quakers Marcus e Elia Glendon, mas sobretudo a traiçoeira, mas fascinante, Rhonda Carpenter (acho que sempre me saí muito bem com as personagens femininas). No final, devo dizer que fiquei bastante satisfeito com o resultado”.

Página 203, a lápis, de ‘Dieci Anni Dopo’

A aventura seguinte, Attacco alla Diligenza, foi publicada em 2011, ainda com argumento de Nizzi. A história leva Tex e Carson a Albuquerque, depois de terem recebido uma mensagem enigmática do general Davis. No entanto, vítima de um ataque à diligência onde seguia, o militar não comparece ao encontro, permanecendo uma incógnita o seu destino e aquilo que pretendia dos rangers. “De uma certa forma foi um pouco mais fácil, eu já tinha conseguido perceber os mecanismos estruturais da narração de Nizzi, e também porque nesta história entrava outra personagem importante, o General Davis, um amigo fraterno de Tex. Também me diverti muito a desenhar os casacos azuis, como eram conhecidos os militares pelos peles vermelhas, e os bandidos mexicanos, tal como foi a primeira vez que desenhei Kit Willer e Tiger Jack, mesmo que apenas por poucas vinhetas”. Um trabalho que deixou o desenhador bastante entusiasmado e que mereceu, inclusive, os cumprimentos pessoais de Sergio Bonelli “… que até me fez sentar ao lado dele durante um jantar da editora na Feira de Mantova, em fevereiro de 2011. Recordo com emoção e nostalgia aquele dia, também porque foi a última vez que vi Sergio que, infelizmente, acabou por nos deixar poucos meses depois”.

Tex na arte de Rossano Rossi

Quanto à minha terceira aventura no universo texiano, guardo algumas recordações, em parte positivas em parte negativas, porque foi um período terrível da minha vida. O meu pai adoeceu e, durante alguns meses, ocorreu uma sucessão de eventos desagradáveis que me obrigaram a parar o trabalho. No fim, o meu pai acabou por falecer, ele que nascera no mesmo ano que Sergio! Apesar de tudo, mesmo com um grande atraso, consegui finalizar a história”. Este trabalho saiu para as bancas em 2015, intitulado Nodo Scorsoio, desta vez com Tito Faraci na escrita de um argumento que leva Tex e Carson, a pedido do juiz Kirkman, em ajuda de Timothy Russell, um jovem injustamente acusado de assassinato. “Apesar de tudo, fiquei bastante satisfeito com esta história, em parte porque houve uma certa mudança no meu estilo, em direção a uma caracterização mais pessoal das personagens. Estilo que, penso eu, evolui ainda mais na última história que desenhei e da qual ainda não posso falar em pormenor, visto que ainda não foi publicada”. Intitulado provisoriamente Sull’Orlo dell’Abisso, muito provavelmente este próximo trabalho de Rossi só será publicado na Primavera ou no Verão do próximo ano. Trata-se de uma história da autoria de“… um autor fundamental do universo texiano, o talentoso e prolífico Pasquale Ruju. Acho que é a história mais envolvente e original que desenhei até agora…”.

Tex na arte de Rossano Rossi

Com um percurso já cimentado na série, Rossano Rossi conseguiu impor o seu estilo e a sua importância no contexto dos autores de Tex, sendo hoje, muito justamente, apreciado pelos leitores e visto como um valor seguro, deixando antever que o ranger cavalga bem seguro nas suas mãos. O tempo não pára e o trabalho continua, já com Rossi a preparar uma nova aventura: “Ainda não disponho
de todo o roteiro, posso apenas dizer que também é da autoria de Pasquale Ruju, com quem me sinto muito bem, porque é um autor que deixa uma certa margem de liberdade para o desenhador, o que me permite juntar a minha marca pessoal em determinadas cenas, já que, afinal, o autor é como um cineasta, o melhor realizador é aquele que consegue montar as cenas da maneira mais envolvente para o público. Além disso, posso ainda dizer que a história também retoma uma outra aventura histórica de Tex, publicada nos anos setenta, escrita pelo lendário Giovanni Luigi Bonelli, mas neste momento não posso acrescentar mais”.

Tex, ainda jovem, e a sua amada Lilyth, na arte de Rossano Rossi

Uma personagem como Tex já faz parte do imaginário coletivo; deixar de ler uma bela aventura de Tex seria como deixar de comer uma boa pizza. E os quadradinhos não engordam, não têm nenhuma contra-indicação. Aliás, fazem bem para o espírito” . São palavras de Rossano Rossi, um artista que empresta toda a sua humildade e arte ao serviço da personagem com maior sucesso no panorama dos fumetti, deixando antever que, dependendo do desenhador, o futuro continuará a ser risonho para o ranger. “Sou um desenhador e não um escritor, faço o que posso, e agradeço a todos os leitores, a todos os sócios do Clube Tex e a todos os meus fãs. Como diria o bom Carson… até breve, TIÇÕES DO INFERNO!”.

Rossano Rossi estará em Anadia nos dias 29 e 30 de Abril para deleite dos fãs de Tex

* Texto de Mário João Marques publicado originalmente na Revista nº 9 do Clube Tex Portugal, de Dezembro de 2018.

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A prova gráfica do próximo Maxi Tex italiano… (#32 – “La grande congiura”; 6 de Abril)

Maxi Tex nº 32 – “La grande congiura” (6 de Abril de 2023) – 276 páginas; 9,90 €
Argumento: Claudio Nizzi
Desenho: Giancarlo Alessandrini
Capa: Claudio Villa

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As Leituras do Pedro – Mister No Revolution: Amazonia

As Leituras do Pedro*

Mister No Revolution: Amazonia
Michele Masiero (argumento)
Alessio Avalone, Matteo Cremona e Emiliano Mammucari (desenho)
Panini Comics
Espanha, Março de 2021
195 x 259 mm, 160 p., cor, capa dura
19,00 €

Final inglório

É um sinal de tempos mais ou menos recentes, o revisitar das origens de heróis da banda desenhada, e não só para tentar tirar partido da sua popularidade e da sua pertença ao imaginário colectivo.

Este tipo de exercício, feliz nalguns casos, infeliz noutros, comporta sempre dois riscos: por um lado, quanto maior é a popularidade da personagem revisitada, mais arriscado se torna mexer com o que maravilhou gerações; por outro lado, se a nova obra beneficia sempre do conhecimento prévio do original por parte do leitor, também tem que se apresentar autónoma em si mesma, para seduzir quem se aproxima dela virgem do tema.

É nisto que falha o volume final deste tríptico de Mister No, que transpõe as suas deambulações para 25 anos depois do tempo em que o situou o seu criador.

É verdade que Mister No está longe de ser uma personagem de topo no universo Bonelli, apesar de desfrutar de alguma popularidade em Itália e, principalmente do Brasil, pela localização das suas aventuras. Mas poder ser associado ao nome de Sergio Bonelli, enquanto seu criador sob o pseudónimo de Guido Nolitta, é um trunfo não de todo desprezável, embora não lhe permita atingir, nem de perto nem de longe, os níveis  de um Tex ou um Dylan Dog.

Prosseguindo o exposto dois parágrafos acima, é pena que assim seja, porque este tríptico Mister No Revolution até tinha começado bem em Vietname, com a transposição temporal do protagonista da II Guerra Mundial para aquele conflito traumático para os Estados Unidos, e, depois, em California, transportando-o para a São Francisco do final da década de 1960, sob o signo dos hippies e das manifestações pela paz. Foram dois volumes com uma forte sustentação histórica, com a subida de um degrau em termos de violência e sexo, condizentes com os dias de hoje – bens diferentes, em termos narrativos, gráficos e de liberdade criativa, dos vividos em 1975 quando o herói surgiu – e em que Mister No, com o seu posicionamento e forma de pensar característicos e reconhecíveis, fazia todo o sentido. E eram dois volumes completamente autónomos, que dispensavam qualquer conhecimento prévio da obra.

Agora, Amazonia, apresenta um problema de base: enquanto os volumes anteriores tinham uma base histórica que permitia a alteração temporal e, até, um melhor aproveitamento da forma livre de pensar do ex-piloto-aviador, no caso presente – desculpem a franqueza, a Manaus dos anos 1970 não difere muito da dos anos 1950 – em termos narrativos ou do retrato que Nolitta e Masiero traçam dela. Depois, enquanto que os outros dois volumes beneficiavam de uma forte componente social e política, na sua chegada ao Brasil, Mister No é apenas um homem desencantado com a vida, desencanto esse que vai afogar em álcool e mulheres, prosseguindo a atormentada descoberta de si mesmo numa espiral com muito de auto-destrutivo.

Mas, o grande problema de Amazonia, é a excessiva colagem – deixem-me escrever assim para ser bem claro – à trama original delineada por Sergio Bonelli/Guido Nolitta, pois os acontecimentos aqui narrados são os mesmos: os primeiros tempos com Esse Esse, o conhecimento e nascimento da paixão pela bela Patrícia Rowland e a busca pelo templo Asteca em plena selva amazónica. Explicando melhor, o actual argumento surge com hiatos – ou saltos temporais demasiado longos – que quem já conhece o original preenche com facilidade, mas que poderão deixar algo desorientados os leitores de ‘primeira vez’.

Valendo como reencontro, Amazonia é, assim, uma opção menos válida como descoberta. E, para quem tanto prometeu nos dois primeiros volumes deste tríptico, significa um passo atrás para Masiero e deixa um sabor a pouco para os leitores que tinham aderido à sua ‘revolução’ da personagem.

Nota final

Como nos dois volumes anteriores, a edição espanhola da Panini revela-se robusta, com uma sólida capa dura, bom papel, boa impressão e um caderno final de extras que inclui, para além de esboços preparatórios e ilustrações do trio de desenhadores de serviço – Alessio Avalone, Matteo Cremona e Emiliano Mammucari – um dossier sobre a época e a localização da acção deste volume.

* Pedro Cleto, Porto, Portugal, 1964; engenheiro químico de formação, leitor, crítico, divulgador (também no Jornal de Notícias), coleccionador (de figuras) de BD por vocação e também autor do blogue As Leituras do Pedro

(capa disponibilizada pela Panini; pranchas (da versão original italiana) disponibilizadas pela Sergio Bonelli Editore; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

 

OS DURÕES TAMBÉM RIEM

Por Júlio Schneider*

Bonelli Kids é uma divertida série de tiras que retrata algumas personagens da Sergio Bonelli Editore (SBE) como crianças que se envolvem nas mais variadas confusões. As primeiras tiras apareceram no sítio internet da editora no início de 2017 e, no ano seguinte, foram todas compiladas num volume impresso de pequeno formato. Escrita por Tino Adamo, Sergio Masperi e Alfredo Castelli, e desenhada por Luca Bertelè, a primeira série bonelliana humorística, criada para leitores pequeninos, conquistou logo os fãs tradicionais que divertem-se a ver, entre outros, o jovem sabichão tagarela Martin, o pequeno Mister No que pensa ser um sedutor, o menino Zagor que sempre cai do cipó, e até o traquinas Alf, “o menino mais velho do mundo“, que lembra muito – no nome, na fisionomia e nas atitudes – Alfredo Castelli!

Mas entre as várias personagens retratadas na série não está Tex Willer, o principal nome da Casa Bonelli. Segundo os editores, por respeito, pelo facto de Tex ser uma instituição nacional e, praticamente, sinónimo da BD italiana, decidiu-se não o envolver num projeto que, ainda que de forma divertida, mexe com a visão tradicional das personagens retratadas. Também há nobreza da parte dos editores em não pretender fazer algo que eles não sabem se seria aprovado por quem criou e deu consistência à personagem que é o sustentáculo da editora, e por não saberem se estariam à altura das brincadeiras feitas com Tex pelos próprios criadores Gianluigi Bonelli e Aurelio Galleppini e pelo então editor Sergio Bonelli, que em certas épocas decidiram fazer graça com o grande Águia da Noite, obtendo resultados que conseguiram fazer o leitor sorrir, sem que fosse preciso desmitificar a personagem. Em 1985, por exemplo, o sóbrio herói viveu uma cena irónica, desenhada pelo mestre Galep: Tex e Jack Tigre param para acampar à noite, num local escuro, e, quando acordam, veem-se numa praia cercados de veraneantes. Outro bom exemplo, também com desenhos de Galep, viu-se na última página do n° 1 de Os Grandes Clássicos de Tex (Ed. Mythos, 2006), em que Tex leva uma sonora pancada na cabeça aplicada por Lilyth com um rolo de macarrão, numa cena digna de comédia de costumes.

Tex leva uma sonora pancada na cabeça aplicada por Lilyth com um rolo de macarrão, numa cena digna de comédia de costumes.

Em 2004, por licença da SBE, a editora italiana Hazard publicou um livro com vários momentos dos heróis bonellianos em situações, digamos, não muito ortodoxas, entre as quais a que reproduzimos ao lado, com diálogos de Guido Nolitta e desenhos de Claudio Villa: uma noite, num acampamento, Tex diz a Jack Tigre que os índios são pessoas de poucas palavras, que passam horas quietos e, quando alguém conversa com eles, respondem apenas ugh!; quando estão no meio de um tiroteio, o único comentário é ugh!; se cai um raio a dois metros de distância, exclamam ugh!; se encontram uma jazida de ouro, manifestam surpresa dizendo ugh!; e tenta arrancar do calado parceiro o significado da interjeição, recebendo uma resposta quilométrica, sem sentido e divertida.

Como disse o saudoso editor Sergio Bonelli (autor da cena em que Tex leva o rolo de macarrão na cabeça), “a vida de todo dia é muito dura e séria, faz bem rir um pouco“. Mesmo que o objeto do riso seja – mas não com muita frequência – o nosso Ranger preferido, granítico e setentão.

* Texto de Júlio Schneider publicado originalmente na Revista nº 9 do Clube Tex Portugal, de Dezembro de 2018.

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