Entrevista exclusiva: ALESSANDRO BAGGI

Entrevista conduzida por José Carlos Francisco, com a colaboração de Giampiero Belardinelli na formulação das perguntas, de Júlio Schneider (tradutor de Tex para o Brasil) e de Gianni Petino na tradução e revisão e de Bira Dantas na caricatura.

O nosso entrevistado desta feita é Alessandro Baggi, desenhador nascido em Milão em 10 de Agosto de 1966 e que se destacou na Sergio Bonelli Editore graças ao seu trabalho com Dampyr, personagem criada por Mauro Boselli e Maurizio Colombo.

Quais foram os quadradinhos das suas leituras de infância e adolescência?
Alessandro Baggi: Em 1972 eu tinha 6 anos: um dia, quando a minha tia me levava para cortar o cabelo, eu não queria, chorava, ela teve que me arrastar; eu tinha a certeza que cortar o cabelo doía. Ao passar diante de um quiosque, para que eu ficasse bonzinho a minha tia disse-me para escolher uma BD. Eu escolhi uma revista do Quarteto Fantástico, desenhada por Jack Kirby. Fascinado por aquelas páginas impressionantes, creio que foi naquela manhã que eu decidi também fazer quadradinhos: na verdade, eu queria viver as histórias, eu queria ser o Tocha Humana. Eu nem pensava mais no cabelo. Zagor eu descobri por acaso: ainda me lembro, era o volume O Rei das Águias. Depois vieram O Homem-Aranha e Demolidor, e os quadradinhos de terror publicados nas edições de bolso de Zio Tíbia (Tio Tíbia). A minha mãe deixaria eu comprar essas revistinhas em troca de uma boa conduta na escola, coisa que eu nunca conseguia observar. Ela entendia o meu drama e, no fim, comprava assim mesmo. Mais tarde eu descobri Kriminal, Tex e O Pequeno Ranger e, na adolescência (início dos anos 80), os maravilhosos desenhadores espanhóis Fernandez, Maroto, Bernet e Jesus Blasco, em razão de histórias curtas que fizeram para o mercado norte-americano.

Quais leituras ou sugestões o levaram a se envolver com o desenho? Ou essa sua paixão foi cultivada desde criança?
Alessandro Baggi: A paixão pelo desenho e as sugestões recebidas dos quadradinhos que eu lia quando criança seguiram lado a lado. O meu modo de identificar-me com um homem voador, com um vampiro, com Zagor, começou a coincidir com o facto de eu desenhá-los. Na época eu não entendia mas, como essas fantasias haviam sido suscitadas em mim pelos desenhos, desenhar tornou-se para mim o modo mais directo para participar delas. Isso constituiu, desde então, um estímulo constante para desenhar melhor. Eu pensava que, se em pouco tempo conseguisse atingir um estilo de desenho adulto, eu teria acesso a possibilidades expressivas maravilhosas: demorou uma vida, mas valeu a pena.

Você teve uma formação artística? De que tipo?
Alessandro Baggi: Eu fiz cursos específicos na Escola dos Quadradinhos de Milão, a primeira na Itália a estruturar, já em 1979, um programa trienal de estudo da narrativa por imagens. Ainda hoje eu frequento a escola, agora como instrutor, e o seu director e fundador, Giuseppe Calzolari, para mim sempre foi uma figura de referência, além de um amigo. Mas desde a primeira infância foi meu pai, Armando, aficionado por pintura e dotado de grande sensibilidade artística, quem me encorajou e apoiou. Ele levava-me consigo às mostras e explicava-me o significado de algumas obras de arte moderna, com as quais, por volta dos dez anos, eu comecei a familiarizar-me. Ele falou-me de Poe e de Wilde, de Boldini e de De Chirico, de Fontana e de Burri, e aos 13 anos ele deu-me de presente algumas fitas cassete dos Beatles, enquanto o resto do mundo dançava a disco music: “Ouça estes“, disse-me ele.

Em quais desenhadores italianos e estrangeiros você se inspirou durante a sua carreira? Há algum que, mais que os outros, você considera como seu mestre ideal?
Alessandro Baggi: Os desenhadores que mais me influenciaram foram os que eu admirava quando criança nas BD que saíam nos quiosques da época: Gil Kane, John Romita, Gene Colan e The King Jack Kirby, ou seja, a mítica equipa da Era de Prata da Marvel. Depois eu descobri e apreciei Toppi, Moebius, Manara, Battaglia, Bilal, mas na Milão dos anos 70 os modelos culturais americanos tinham uma difusão e persistência que poucas outras produções podiam igualar. Mas coleccionei com firmeza Zagor, do qual me recordo com afecto algumas histórias que, com o passar dos anos, eu reli mais de uma vez: aquelas em que ele se envolvia com os monstros (o homem-peixe, o homem-tigre, o vampiro, e até Hellingen) estão entre as minhas preferidas. Hoje, como profissional, as páginas de Alex Raymond, de Caniff e de Al Williamson parecem-me como aquelas dos mestres dos meus mestres. Frazetta, Buscema, Romita Sr. já não recordavam esses artistas que, em alguns casos, eram poucos anos mais velhos que eles?

Você começou a sua carreira a ilustrar Os Tarôs da Loucura, das Edições Scarabeo (Escaravelho). Fale um pouco dessa experiência.
Alessandro Baggi: Piero Alligo entrou em contacto comigo em 1986: as cartas de tarô que me encomendou foram o meu primeiro trabalho. Eu já havia vencido concursos com histórias aos quadradinhos, mas essas só seriam impressas posteriormente. Eu era um estreante em absoluto e Alligo confiou em mim; até hoje eu lhe sou grato por isso. Eu tinha 20 anos e trabalhava naquelas cartas de tarô a procurar dar o melhor de mim. Piero encontrava-se comigo na estação central de Milão por volta das 17h, pegava as minhas páginas e voltava a Turim de comboio. Ele passava antes na casa de Toppi, que também estava a trabalhar num projecto semelhante, e eu era o segundo, depois do editor, a ver aqueles maravilhosos originais coloridos, no vaivém da estação ferroviária. Alligo parecia considerar o meu trabalho no mesmo nível, pagava na entrega e comportava-se de modo amigável e correcto, mas a comparação com as páginas de Toppi era arrasadora e eu me impunha um imperativo: “Preciso melhorar“. Ainda estou a tentar.

Em seguida você chegou à editora Acme, onde trabalhou nas séries Mostros e Splatter: o que se recorda desse período e como considera hoje aqueles seus trabalhos?
Alessandro Baggi: O período da minha colaboração com essas duas séries permitiu que as minhas primeiras histórias de terror chegassem às páginas de uma revista. Foi estimulante, eu recebi total liberdade expressiva: eu trabalhava com histórias minhas e, por meio do desenho, eu procurava valorizar o texto e vice-versa. Eu sempre concebi a BD como uma sinergia entre desenho e palavra, o texto está na origem do processo criativo e o desenho o ilustra, o evidencia e, nos casos mais limitadores, o enfeita: embellishment, estava escrito em algumas edições americanas, a propósito da arte-final. Hoje eu considero aquelas minhas histórias curtas carentes no plano gráfico, mas graças à liberdade que recebi para realizá-las, eram mais incisivas e originais que outros trabalhos que fiz mais tarde.
Em seguida, colaborei por cinco anos (às vezes apenas como roteirista) com a revista Intrépido, para a qual fiz histórias mais longas, de 32 ou 56 páginas, de todo o tipo: eu buscava envolver-me com tramas de thriller ou de romance, e até com algo mais fantasy, e o meu estilo experimental ficava meio condicionado. Mas eram condicionamentos que eu mesmo me impunha, como uma forma de compensar com bom senso o director Carlo Pedrocchi pela liberdade que me deixava, grande quanto (e talvez mais) aquela que eu havia recebido na Acme de Francesco Coniglio. Mas “o bom senso“, diz Barthes, “é a pior das virtudes burguesas“: no fim dos anos 90 a Intrépido também deixou de ser publicada. Dela eu recordo-me, sobretudo, da maravilhosa oportunidade de aprimorar as minhas técnicas ilustrativas: por quatro anos eu fui o capista fixo, e atingi uma notoriedade e uma resposta do público que eu não esperava. Possivelmente foram essas experiências que me deram a coragem de apresentar-me à Sergio Bonelli Editore.

Em 1998 você encontrou-se com Mauro Boselli: como foi o envolvimento com o projecto Dampyr?
Alessandro Baggi: Um amigo, Gino Udina, falou-me dessa nova série que estava em preparação há três anos, e sugeriu que eu me apresentasse ao seu responsável, Mauro Boselli. Eu temia uma longa via burocrática, como costuma acontecer com as grandes editoras, mas Udina tranquilizou-me ao afirmar que Boselli era rápido, decidido e objectivo: “Ou você é aceite ou não é“, garantiu, “e ele diz isso no acto“. A equipa de desenhadores estava completa, mas ele gostou dos meus trabalhos e submeteu-os a Sergio Bonelli quase imediatamente: duas semanas depois eu começava a trabalhar na minha primeira história de Dampyr, Casa de Sangue. Eu sei que também tive sorte e que talvez autores melhores do que eu tiveram que esperar mais.

O que mais o fascina nessa série?
Alessandro Baggi: A possibilidade de dar à personagem interpretações que variam muito, de acordo com o desenhador. Alguns de nós (penso em Majo e em Luca Rossi, em mim e em Piccininno) têm estilos muito diferentes. Assim, em Dampyr continua aquela variedade gráfica que já em Dylan Dog havia permitido à personagem desenvolver-se, no plano visual, em direcções incomuns, até chegar às versões humorísticas de 2010. As grandes personagens da BD (eu refiro-me a gigantes como Batman) podem até ter uma versão humorística de si próprias sem que essa se torne uma paródia: o Batman de Bruce Timm é distante do de Neal Adams, mas aproxima-se do de Bob Kane; todas as versões dessa personagem desenvolvem possibilidades expressivas que JÁ estavam contidas na original. Certa vez Boselli brincou comigo sobre um encontro de Dampyr com as Winx, as bruxinhas de um desenho italiano adorado pela filha dele: eu levei a sério mais da metade da conversa e, se penso num Dampyr com aberturas de fábula, não acho que seja tão improvável. A personagem é sólida, e suas caracterizações não a limitam; isso permitiu-me trabalhar de forma isolada também como roteirista.

De um modo geral, você recebeu roteiros oníricos e visionários. Foi uma escolha sua ou Mauro Boselli, por conhecer os seus dotes artísticos, preferiu vê-lo trabalhar com roteiros sonhadores?
Alessandro Baggi: Boselli conhece bem as minhas referências, não só gráficas como as literárias e culturais de um modo geral. Ele sabe que gosto de arte moderna, de poesia, de Kafka, Poe, Lovecraft, Sartre, Celine, Beckett e por aí vai. Os roteiros que eu sugeria e aqueles que me foram confiados por ele continham elementos que sempre estão em todos os meus trabalhos. Além disso, Diego Cajelli, o roteirista com quem mais trabalhei, é meu amigo, e é natural que se troquem ideias e sugestões, pessoalmente ou por e-mail.

No segundo Maxi Dampyr (Itália, Agosto 2010) você foi o protagonista absoluto: desenhou o volume inteiro e se envolveu com o texto. Como nasceu essa operação? E considera-se satisfeito com o seu roteiro?
Alessandro Baggi: Por dez anos o Maxi Dampyr foi um curioso work in progress: em 2000 Boselli começou a dar-me sinal verde para elaborar algumas histórias curtas que tivessem Dampyr por protagonista; ele aprovou duas, que acabei por fazer. Depois ele pediu uma história curta a Maurizio Colombo, com Kurjak por protagonista que, no final, morreria. Depois escreveu uma história sobre a infância de Tesla, e no fim ela também morria! Eu não entendia o que ele tinha em mente: aos poucos, entre uma edição e outra, esse trabalho estranho ia em frente e, em Fevereiro de 2010, eu comecei as 50 páginas finais. As duas histórias escritas por mim compuseram, junto às demais, um mosaico complexo: a história foi enriquecida com elementos de continuidade que se ligam à série mensal, e se eventualmente mostra um estilo gráfico em transformação, isso é devido ao tempo longo de elaboração. Creio que isso também faz de Spectriana um conjunto curioso e original: o volume contém uma maturação profissional da qual sinto orgulho e espero que tenha seguimento.

Você planeja escrever outros roteiros para Dampyr?
Alessandro Baggi: Eu gostaria muito: eu penso em histórias estreitamente ligadas ao modo como as desenharei, e escrevo diálogos que imagino pronunciados em um contexto gráfico bem preciso. Actualmente estou a frequentar, por interesse pessoal, um curso de texto criativo, e vejo que separar desenho e palavras é mais difícil do que juntá-los.

Você poderia falar alguma coisa sobre a história com a qual está a trabalhar?
Alessandro Baggi: É uma história ambientada na França. Um tranquilo vendedor de perfumes recebe a visita de um cliente inquietante, envolvente. Dampyr e Kurjak, em Praga, são informados por Nikolaus de antigos comércios entre artesãos fantasmas. Não sei muita coisa mais, estou nas primeiras páginas.

Quanto tempo leva para desenhar uma página? Segue horários? Como é o seu dia entre trabalho, leituras, manter-se informado, ócio, vida familiar?
Alessandro Baggi: Uma página toma-me quase sempre três dias de trabalho. Às vezes (fico meio envergonhado em dizer) até mais. Meus horários, a trabalhar também como professor, variam bastante, e por vezes durmo pouco. Nos raros casos em que os prazos apertam, chego a desenhar 12 horas sem parar, durmo um pouco e recomeço. Quando entreguei as últimas páginas do Maxi, eu estava acordado há dois dias e estava com dor de dentes… mas feliz! Na sociedade ocidental o homem define-se sobretudo através do trabalho; vida familiar, afectiva e interior são subordinadas a ele, relegadas aos horários em que não se trabalha, ao fim da tarde e à noite. Parece absurdo mas é verdade. Eu leio no comboio ou na casa de banho (banheiro), escuto música enquanto trabalho, toco violão enquanto cozinho (enquanto espero a água ferver), crio história enquanto caminho, brinco e crio canções, que depois canto para a minha namorada. Nas noites eu desenho e amo intensamente. Vou correr. Eu gosto dos bosques, do fogo, dos insectos, dos sapos. Eu adoro a minha cidade. Gosto muito dos meus irmãos e do meu sobrinho, Tommaso. Eu contei a ele do Homem-Peixe e assistimos juntos ao filme.

Como é trabalhar para Sergio Bonelli?
Alessandro Baggi: Sergio foi o editor de Joe Kubert, de Sergio Toppi, de Aldo Capitanio e de Fernando Fernandez: escreveu as histórias de Zagor que eu lia quando criança, e quando o chamei de mestre ele se encabulou, mas eu não estava a brincar. Aos elogios dele eu é que me encabulei.

Digamos que Sergio Bonelli lhe desse a chance de escolher desenhar outra personagem da Editora, além de Dampyr. Qual você gostaria de fazer?
Alessandro Baggi: Bem, a ambientação de terror de Dampyr tem afinidade com a de certas histórias de Dylan Dog, com as quais acho que eu ficaria à vontade. O de trabalhar com Tex é um sonho comum a muitos desenhadores da Editora, mas eu (como estamos a falar de sonhos) arriscaria outro, quem sabe ainda mais ousado: uma longa história de terror de Zagor, escrita e desenhada por mim, que fale de um coleccionador de monstros, ou coisa do tipo, algo meio anos 60.

Passemos agora ao Ranger que dá nome a este blogue. Hoje que você é um desenhador bonelliano afirmado, gostaria de desenhar Tex? Já recebeu alguma proposta?
Alessandro Baggi: Eu sei que o meu editor tem uma (compreensível) predilecção por Águia da Noite. O facto dele ser também o maior entendido (aliado à estatura épica da personagem) cria em mim um receio de ver uma versão minha. Além disso, os desenhadores históricos de Tex que mais aprecio – Nicolò acima de todos, mas também Lettèri e Ticci – são modelos consolidados e condicionadores. Mas eu começaria referindo-me às versões deles, mais clássicas, em vez de inspirar-me em interpretações mais modernas, como as de Mastantuono ou Villa, que são o ponto de chegada de colegas que começaram em condições semelhantes às minhas.

O que significaria para si desenhar histórias de uma lenda dos quadradinhos como Tex?
Alessandro Baggi: Abordar a lenda com respeito e buscar fornecer a minha contribuição. Eu tenho consciência de ter feito as minhas coisas melhores (com Dampyr, por exemplo) quando me senti livre para fazer experiências, para propor soluções gráficas incomuns, quase por folguedo, a brincar. Claro que com Tex não se pode brincar demais; deve-se, como se diz em Milão, “stare all’occhio“, ficar muito atento.

Na sua opinião, quem ou o que é Tex? O que você gosta mais e o que gosta menos no Ranger?
Alessandro Baggi: Tex é uma personagem com sessenta e dois anos, cuja história começa no pós-guerra italiano e mergulha nos clarões ofuscantes de um século 19 americano cada vez mais preciso, documentado e nítido. Com o crescer da série, o seu mundo tornou-se real, adquiriu parâmetros próprios, e desenhadores cada vez melhores e mais detalhistas o tornaram majestoso: um universo de traços, às vezes mínimos, às vezes meio barrocos, no qual Tex chega e eternamente parte. Penso que, desde criança, eu percebia Tex assim: ele é o que parte de novo (enquanto Zagor, mais fixo em Darkwood, era na, minha infância, o que fica e defende a própria casa).

Você acha que Tex mudou nos últimos anos? Sob quais aspectos?
Alessandro Baggi: Ele abandonou a irreverência meio anárquica de seus primeiros anos, quando conduzia os interrogatórios à base de socos e liquidava burocratas e xerifes corruptos com modos bruscos; sacava os seus colts sem pensar duas vezes e acabava as brigas – que ele mesmo começava – com uma rodada de bebida para todos. Hoje ele é equilibrado, solene, implacável, um instrumento da Justiça, mais que da Lei; a sua chegada, nas histórias, sempre é mítica, definitiva: é a chegada do Destino.

Para concluir o tema, como vê o futuro do Ranger?
Alessandro Baggi: A crescente qualidade desta BD e a atenção que lhe reservam autores e editores continuam a ser correspondidas com o afecto do público. Faço votos para que ele mantenha (ou até mesmo aumente) o seu status de parâmetro imprescindível: quem dera eu também pudesse contribuir para isso! Mas como acontece com muitos artistas, eu não conheço as reais condições do mercado e, sobre isso, não me pronuncio.

A BD da SBE sempre foi o seu objectivo ou você gostaria de ter feito a chamada BD de autor, assim como Pratt, Battaglia, Toppi, Manara?
Alessandro Baggi: A partir dos anos 80 (com Dylan Dog e os diferentes desenhadores que começaram a trabalhar em suas páginas) a BD da SBE começou a expor episódios desenhados por Tacconi, histórias de Nick Raider desenhadas por Toppi, para chegar ao Tex Gigante de Kubert ou ao Napoleone desenhado (mas sobretudo escrito) por Bacilieri. Claro que eu também penso em fazer BD de autor, e na SBE isso é feito. Concordo plenamente com as limitações ligadas ao trabalho em séries da nossa Editora (nada de pornografia, de linguagem obscena, splatter, etc.), que também não se vêem nos trabalhos que fiz para outros editores que não impunham reservas a esses elementos.

À sua actividade de desenhador juntou-se a de instrutor na Escola de Quadradinhos de Milão. Como você se coloca diante de seus alunos, vistas as dificuldades em encontrar trabalho no âmbito da BD italiana?
Alessandro Baggi: Eu ensino a fazer quadradinhos de forma correcta, animado pela convicção de que, quando se atinge um certo nível de profissionalismo, a possibilidade de ser aceite pelo mercado italiano existe. Não existe um mercado farto a ponto de também absorver quem se aplica pouco, quem desenha raramente, quem tem mil outros interesses, etc., mas creio que pessoas assim não arrumariam trabalho em lugar algum. Não como desenhadores de quadradinhos, ao menos.

Você acha que a BD, como meio de comunicação, tem mais chances de abordar os temas mais disparatados do que, digamos, o Cinema italiano?
Alessandro Baggi: O cinema tem a possibilidade de atingir um público maior, por necessitar de um esforço menor da parte do espectador (isso se considerarmos a leitura como um esforço). Os maiores custos de produção limitam um pouco os temas abordados, que devem ir ao encontro de amplas faixas de público. A BD, por custar menos, poderia abordar qualquer assunto – mesmo com o risco de não vender muito – e fazer isso com profundidade e plena consciência de seus meios de expressão: eu penso no David Boring de Daniel Clowes, ou no titânico Brain the Brain de Miguel Angel Martin, no Zeno Porno do perspicaz Bacilieri.

Como você imagina o mercado nos próximos anos? A BD será cada vez mais endereçada a um público restrito ou pode-se pensar num equilíbrio entre propostas populares (no sentido de custo, não de qualidade) e de livraria?
Alessandro Baggi: Creio que em todos os lugares os leitores de BD têm uma idade média cada vez mais alta, são adultos, aficionados e inteligentes. Eu vejo como difícil o retorno a uma difusão vasta e popular da mídia BD. Na minha visão é mais provável uma especialização cada vez maior do produto e de seus consumidores, o que tornará necessário um nível de qualidade sempre mais elevado e políticas de venda cautelosas.

Em uma entrevista, Mirko Perniola (em ZAGOR TV, na página http://www.youtube.com/watch?v=xY_-csxPFbg) torce para que grandes editores como Mondadori ou Rizzoli dêem chances a autores de quadradinhos de publicar material inédito. O que acha disso?
Alessandro Baggi: Eu concordo com Mirko: também torço por isso.

Pode nos dizer alguma coisa sobre os seus projectos para o futuro?
Alessandro Baggi: Eu queria casar-me com a minha namorada na igreja. Mas não sabia que era tão complicado.

Quais quadradinhos você lê actualmente, com quais mais se identifica?
Alessandro Baggi: Tenho 44 anos e a minha tendência é ler os quadradinhos que eu lia quando criança. Eu identifico-me com a criança que era quando os lia, e depois começo a desenhá-los numa forma que poderia agradar àquela criança.

Além de BD, que tipo de livros você lê? E quais são as suas preferência no campo do cinema e da música?
Alessandro Baggi: Tenho pouco tempo para ler, estou sempre a trabalhar. Mas nos últimos anos desfilaram diante dos meus olhos Richard Yates, Aldo Nove, tudo de Houllebecq, Donald Bathelme, Edgar Morin, Garcia Lorca, Marshall Mc Luhan. Cinema eu vejo pouco: os filmes actuais são muito longos, duas horas, às vezes duas e meia. Vejo os seriados da TV, The Wire, Breaking Bad; qualitativamente alguns seriados têm pouco ou nada a invejar das produções cinematográficas, e a duração de 50 minutos por episódio combina mais comigo. Eu preciso trabalhar, vivemos num mundo impaciente! A música que prefiro é o jazz; eu descobri por acaso, a conversar com Sergio Boselli, que ele também entende muito do assunto. Creio que, também por razões de geração, os discos de free jazz do final dos anos 60 que eu ainda ouço, ele os descobriu mais ou menos na época em que foram lançados: John Coltrane, Albert Ayler, Archie Shepp, Pharoah Sanders, Anthony Braxton, etc. É, eu sempre ouço essa música dura e difícil, que não compreendo a fundo, mas gosto.

E chegamos ao fim. Há algo mais que você gostaria de dizer aos leitores sobre Alessandro Baggi?
Alessandro Baggi: Na minha sala de trabalho eu tenho vários quadros meus, feitos com insectos de verdade e pedaços de brinquedos e de madeiras pintadas. Também tenho outras coisas singulares e meio inquietantes (tipo uma piranha embalsamada, uma máscara africana) e um modelo de montar de Godzilla, que nunca vou concluir, uma machadinha numa caixa, e folhagens secas na varanda. Atrás de pilhas de BDs, mais BDs a perder de vista e que chegam às remotas pradarias da infância, uma foto da minha mãe na mesa de desenho, e dois violões com as cordas oxidadas. No céu de Milão, às três da madrugada, às vezes passa uma baleia, só para mim.

Caro Alessandro Baggi, nós do blogue português de Tex agradecemos muitíssimo pela entrevista que gentilmente nos concedeu.
Alessandro Baggi: Obrigado a vocês, e um abraço aos leitores.

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)

3 Comentários

  1. Maravilha, excelente e esclarecedora entrevista com o grande Baggi.
    Deu pra sentir que o mercado italiano, para seus autores, é tão restrito como no Brasil e que poucos são aqueles que conseguem sobreviver exclusivamente de sua arte.
    Enfim, todos nós fazemos BDs (HQs) por pura paixão é óbvio!
    Tá valendo, Zeca!

  2. Entrevista bacana, espero que o Baggi consiga a história do Zagor (fã é assim!!) pois gosto desta temática mística/terror que pelo jeito se desenrolaria!!
    Legal o lance dos projetos futuros: Casar na igreja é difícil isso lá na (Roma) Itália!! – aqui o povo briga por fiéis em cada esquina, certo “Apacheman“..rsrs!!

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