As críticas do Marinho: “Il prigioniero di Yuma” – (Tex italiano 640 a 642)

Por Mário João Marques


Boselli parece determinado em recuperar regularmente personagens de outras aventuras, mas esta aventura representa um passo diferente do habitual, ao juntar duas personagens, Durango e Kid Rodelo, cujas origens remontam a diferentes aventuras, ligando-as por um laço familiar que todos estaríamos longe de imaginar. Esta estratégia, parte integrante de uma evolução que Boselli assume para a série, acaba por criar laços de identificação para com o leitor, conferindo uma certa continuidade e coerência. Se G.L. Bonelli foi capaz de criar um imaginário, rapidamente aceite e assumido pelos leitores, em personagens como Tom Devlin, Pat McRyan, Montales ou Jim Brandon, sem esquecer arqui-inimigos como Mefisto, Yama ou Proteus, Boselli parece acreditar na mesma fórmula como um ponto da estratégia evolutiva pretendida.

Julgado morto no final da aventura Terre Maledette (também de Boselli e Font), William Rainey, mais conhecido por Durango, reaparece algures na fronteira entre o sul da Califórnia e o Arizona. O seu objectivo imediato passa por libertar o irmão Philip, mais conhecido por Kid Rodelo, da penitenciária de Yuma, onde se encontra a cumprir pena, depois de capturado por Tex no confronto que opôs o ranger ao bando de Jack Thunder em I Sette Assassini, aventura também escrita por Boselli e desenhada por Marcello. Em breve, Durango e Kid vão juntar-se à sua irmã Molly, mais conhecida por Dallas, com o intuito de vingarem os seus pais, assaltando sucessivamente todos os bancos de um grupo financeiro liderado pelo banqueiro Gradson que, anos antes, tinha imposto prepotentemente dificuldades económicas que levaram ao suicídio do seu pai Rainey. Ciente do perigo, Gradson vai contratar uma milícia privada e um caçador de prémios para capturar o bando, mas Tex e os seus pards vão intervir no sentido de levarem os três irmãos a julgamento e impedir que os perseguidores façam justiça por conta e a pedido do banqueiro.

Autor de uma notável capacidade na construção e gestão das personagens, Boselli evidencia mais uma vez estas qualidades, sobretudo no relacionamento entre os três irmãos. Movidos certamente pelos mesmos objectivos, prisoneiros de certa forma de um passado duro e que uns, sobretudo Kid Rodelo e Dallas, viveram mais intensamente, já que Durango cedo abandonou a casa, a verdade é que por todos perpassa o desejo de vingança familiar. Apesar das circunstâncias os terem conduzido ao mesmo caminho, a psicologia de cada um leva-os a diferentes atitudes, uma vez que, se Durango vai libertar Kid da penitenciária e reunir a família, não parece muito crível que, depois da vingança, existam outros laços que o levem a permanecer junto dos irmãos. Durango vive obcecado com a vingança, sendo apresentado como um jovem assassino que não hesita em matar a sangue frio e de que é perfeito exemplo a vontade em abater Mike (que vive apaixonado por Dallas), o que não acontece apenas porque a irmã intercede em favor deste. Já entre Kid e Dallas existe um relacionamento mais profundo, não só porque são gémeos, mas também porque cresceram juntos e solidariamente viveram o passado doloroso. De certa forma, Kid e Dallas têm outra abordagem, assumindo a sua vontade em vingar os pais certamente, mas hesitando na forma e no modo que o irmão impõe. Esta permanente luta contra a lei, os sucessivos assaltos a bancos e a morte de inocentes, quando a tal obrigados pela força das circunstâncias, parece distancia-los gradualmente de Durango, levando a uma crescente tensão familiar que só o final inesperado de Boselli acabará por colocar um ponto final.

Por outro lado, Il Prigioniero di Yuma sublinha de modo evidente a dualidade entre a justiça da lei e a lei da justiça como um dos grandes vectores da série. Se numa primeira fase Tex desconhece os motivos que levam os três irmãos a assaltar uma série de bancos e, por vezes, matarem a sangue frio, ao conhecer os factos que marcaram a sua infância e adolescência, depara-se com o dilema da melhor e mais justa decisão a tomar. Será que os atribulados acontecimentos de anos de sofrimento justificam a conduta presente e os anseios de vingança? Será a justiça da lei, aquela que levará Durango, Kid e Dallas até à barra dos tribunais, o desenlace mais justo? Neste sentido, esta é uma daquelas aventuras que o leitor é levado, por força dos acontecimentos, pela personalidade dos intervenientes ou pelos motivos que movem a sua conduta, a torcer por quem não está necessariamente do lado certo da lei. Já na mítica aventura Caçada Humana de Guido Nolitta, Tex, ao conduzir um jovem acusado até um juiz, vai gradualmente mudando a sua opinião em função da força dos acontecimentos e do julgamento que, ao longo da aventura, vai fazendo do jovem. A aventura, ainda hoje considerada por muitos como a melhor de sempre, marcou uma geração de leitores e apresentou um Tex diferente, puramente nolittiano, um Tex que duvida e cuja acção não se reduzia a impor a lei. Na aventura de Boselli, Tex também manifesta as mesmas dúvidas, assume o mesmo comportamento, analisa a situação e interroga-se legitimamente sobre o real valor da lei dos homens quando esta não serve a justiça, afinal e desde sempre, o principal valor para Tex.

Há, no entanto, uma diferença fundamental, porque este Tex que Boselli nos apresenta, acabando por não decidir sozinho, parece adquirir uma nova característica. Este Tex ouve a opinião dos outros pards (a que se junta a de Mike) e aceita a vontade da maioria, mesmo que contrária à sua. Este Tex certamente que também duvida, mantém as suas convicções, continua a seguir os seus instintos, mas adquire outros contornos quando deixa de alguma forma de concentrar em si mesmo a decisão final, fazendo-a depender de prévia discussão e de uma “vontade colegial”.

Não deixando de admitir que uns possam considerar ser esta uma postura “historicamente” inaceitável, que se afasta dos cânones bonellianos, acredito que nesta abordagem de Boselli residirá muito do interesse que a personagem continua a irradiar. Será que as séries e os heróis são imutáveis? Será que o próprio Sergio Bonelli/Guido Nolitta estava errado quando abordou a personagem de modo diferente da do seu pai? Essa visão porventura impediu-o de escrever algumas das melhores aventuras da Tex? Creio no fundo que muito da habilidade de Boselli está bem patente nesta evolução que vem impondo, já que, ao manter as principais características da personagem, o autor não hesita em introduzir alterações capazes de a adaptar às novas realidades e aos novos tempos.

Alfonso Font parece predestinado a desenhar excelentes aventuras texianas, muito por força dos argumentos de Boselli, quase sempre de elevada qualidade. Não é verdadeiramente um desenhador de traço elaborado, por vezes é mesmo acusado de um traço algo caricatural e que tende a ser sintético, mas a verdade é que o autor espanhol consegue ser sempre eficaz na construção de ambientes e compor trabalhos com uma atmosfera de western puro.


O seu Tex fica um tanto longe dos cânones clássicos, mas desde os seus primeiros trabalhos que é notória a evolução de Font na composição do ranger, evidente até nos inúmeros primeiros planos com que o autor não receia em apresentar o herói. Tal como Ortiz, o estilo de Font divide, mas enquanto o desenho deste vinha em decadência, os trabalhos de Font têm vindo a manter o mesmo nível gráfico, aprecie-se ou não o estilo.

Sublinhe-se ainda, e não de somenos, a elevadíssima qualidade das duas capas que Claudio Villa compôs para esta aventura. Se a primeira retrata Tex e Carson perante a campa do casal Rainey, em busca de respostas que escasseavam, a segunda capa revela uma inovação na série normal, já que, pela primeira vez, retrata duas situações diferentes no tempo e no local, contemporaneamente presentes.


Resta-nos agora aguardar pelo prometido regresso de Kid Rodelo (e porque não de Dallas) em duas aventuras que Boselli escreve para Alfonso Font e Giovanni Bruzzo. Aventuras que vão permitir ao leitor retirar algumas conclusões, nomeadamente se a conduta de Tex, baseada num inato sentido de justiça, foi a mais correta, ao permitir uma segunda oportunidade a dois jovens marcados por um passado doloroso, sobretudo a Kid, cuja condição física poderá levá-lo a assumir no futuro outro comportamento, eventualmente com um tom até mais dramático. “Questa volta ho seguito il vostro parere, hombres! Speriamo di non dovercene mai pentire”.

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3 Comentários

  1. Eu parabenizo ao Mário João Marques, o nosso pard Marinho (no Brasil, o diminutivo mais comum de Mário é Mariozinho, enquanto aquele de Portugal geralmente é sobrenome em terras tupiniquins), pela excelente resenha sobre o “Tex” italiano “Giovani assassini” (“Jovens Assassinos“, “Tex” Nº 541, novembro de 2014, Mythos Editora).
    As duas capas, feitas por Claudio Villa, lembram aqueles western de uma época, digamos mais romântica, da Banda Desenhada, principalmente aquela de “Appuntamento con la vendetta” (“Compromisso com a Vingança” ou “Hora Marcada com a Vingança“) com dois planos de desenho.
    Il prigioniero di Yuma” (“O Prisioneiro de Yuma“) por renomados autores texianos, o roteirista italiano Mauro Boselli e o desenhista espanhol Alfonso Font, dois dos meus preferidos a serviço do Ranger do Texas, começa com um texto tradicional em western: “Cuervo Negro, vilarejo na Califórnia Meridional, na fronteira com o Arizona…”
    Tex: “Questa volta ho seguito il vostro parere, hombres! Speriamo di non dovercene mai pentire” – “Essa vez tenho seguindo o vosso parecer, hombres! Esperamos de não nos obrigar nunca a arrepender.
    Um abraço ao meu dilecto amigo Marinho.

  2. Meu caro Afrânio,
    um especial abraço de amizade para si. Em tão poucas palavras conseguiu identificar o lado romântico do velho oeste, bem patente nesta excelente aventura.

  3. Prezado Marinho,
    os dois episódios, dessa história, sairão nos “Tex” números 541 e 542, novembro e dezembro de 2014, Mythos Editora.
    Realmente, uma narrativa no estilo dos grandes faroestes: vingança, assaltos, perseguições, pistoleiros, matadores de aluguel, o poderoso inescrupuloso de plantão, uma bela mulher com uma pistola… e um destino incerto.
    De início, com os jovens assassinos – e sempre que houver jovens pistoleiros -, nos recordamos da aventura, histórica na saga texiana, “Caçada Humana” de Guido Nolitta e Fernando Fusco (“Tex” italiano Nº 183, “Caccia all’uomo“, lançado em 01/01/1976).
    De fato, Claudio Villa fez uma inovação, em “Appuntamento con la vendetta“, em relação às capas da série mãe – o artista já havia usado dois planos na capa de “Maxi Tex” Nº 7 “Figlio del vento“, de Claudio Nizzi e Roberto Diso (“Tex Anual” Nº 6 “O Filho do Vento“).
    Quando puder, acesse o blog de Blueberry, o irmão francês do Ranger.
    Saudações texianas desde a Amazônia.

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