Um caubói de corpo fechado

Diário do Nordeste

Texto do CADERNO 3 do “Diário do Nordeste” (Fortaleza, Ceará), de 17 de Agosto de 2009.
Por DELLANO RIOS

Um caubói de corpo fechado
Tex no Jornal Diário Do Nordeste de 17-08-09

Em “O Mocinho do Brasil”, o jornalista Gonçalo Junior reconstitui a trajectória de “Tex” no Brasil, tendo como pano de fundo a história editorial dos quadradinhos no País.

Sem trajes colantes de cores fortes, ou músculos a dar na vista, nem mesmo poderes extraordinários. Nada disso impede de descrevermos o jornalista Gonçalo Junior como um super-herói. O baiano é um dos incontáveis fãs dos quadradinhos espalhados pelo Brasil. O que o distingue da quase totalidade deles é o compromisso em pensar esta arte/ mídia e de resgatar sua história.

Em “O Mocinho do Brasil“, o jornalista Gonçalo Junior reconstitui a trajectória de “Tex” no Brasil, tendo como pano de fundo a história editorial dos quadradinhos no País.

Gonçalo Junior é autor da mais consistente bibliografia dedicada à história das histórias em quadradinhos no Brasil. É dele o clássico instantâneo “Guerra de Gibis”, que narra a origem da moderna indústria dos quadradinhos no Brasil, movimentada pela disputa de décadas entre jornalistas e editores Adolfo Aizen e Roberto Marinho. Historiou, ainda, a editora Abril, que foi lar de Mônica, Mickey e outros; e os mestres do erotismo italiano. Trabalhos de conteúdos inéditos, que levam os quadradinhos a sério, na condição de objectos de estudo. Num país em que a bibliografia acerca das BDs é formada por minguadas páginas, que conhecedores da nona arte abarrotam de achismos e preconceitos, trata-se de uma obra de leitura incontornável.

O Mocinho do BrasilO novo trabalho de Gonçalo Junior também tem esse quê de livro obrigatório: “O Mocinho do Brasil – A história de um fenómeno editorial chamado Tex“. Nele, o jornalista reconstitui a trajectória do caubói Tex Willer no País (e aproveita para comemorar os 60 anos de criação da personagem).

Dono de uma base de fãs invejável, o caubói italiano foi criado pelo roteirista Gian Luigi Bonelli (pai do célebre editor Sergio Bonelli) e pelo desenhador Aurelio Galleppini, em 1948. Ele fez sua primeira aparição, por estes lados, em 1951, na revista Junior, editada por Roberto Marinho.

De 1971 para cá, Tex não saiu mais das bancas (e, mais recentemente, gibiterias). Passou por quatro editoras e hoje é publicado pela Mythos, que mantém activos quatro títulos da personagem: “Tex“, série principal, com histórias inéditas, que já chega ao número 477; “Tex Coleção“; “Tex Edição Ouro“; e “Tex Edição Histórica“, todas elas dedicadas a reedições de aventuras antigas – e clássicas.

Spaghetti ou caviar?
Das personagens do fumetti (as BDs italianas), Tex não é o único habitante do Oeste Selvagem. No entanto, é o mais romântico. Com tramas menos políticas que “Mágico Vento” (que toca na ferida dos massacres das populações nativas norte-americanas), Tex é um cavaleiro sóbrio, um homem da lei que luta limpo contra criminosos e corruptos, num Velho Oeste de mentirinhas, dos filmes mais “limpinhos”, de Hollywood. Este tom “ingénuo” é um dos alvos dos detractores da série. Em alguns sites dedicados aos quadradinhos, Tex sequer é mencionado – sinal de um olhar “cabeça”, que o vê como obra menor, produto industrial e leitura vulgar.

Tex por Fred MacêdoO livro de Gonçalo Junior sai em defesa da personagem, como obra de arte digna de ser lida, apreciada e, mais urgente, estudada. “Este livro é, na verdade, uma provocação minha à arrogância e à prepotência de muitos que se dizem conhecedores, estudiosos e especialistas em quadradinhos. Muitos desses caras não gostam da minha postura provocativa em relação à mediocridade que marca boa parte da pesquisa sobre revistas de banda desenhada no país – pela sua pobreza temática e superficialidade. Assim, faço dessa obra mais uma cutucada ao preconceito que essas pessoas têm e que só reforçam a imagem ruim contra as revistas de BD como forma de expressão, de comunicação e de arte. Essas pessoas são as mesmas que generalizam e dizem que mangá e Tex são subprodutos do mercado, criados para venda fácil (exploração comercial) e em larga escala. Na verdade, isso me estimulou a fazer a obra, pois, claro, eu sempre soube que Tex merecia um livro por muitas razões e não apenas uma“, afirma Gonçalo Junior.

Tex é, antes de tudo, um fenómeno editorial no Brasil. E, como tal, merece ser estudado e melhor compreendido. Sem dúvida que tem uma fórmula que, graças à competência de seus editores italianos, consegue se manter interessante a um grande público. Ao mesmo tempo, traz elementos folhetinescos que sempre alimentaram a literatura de entretenimento, como acontece também com o mangá. Só que, em diferentes momentos, várias aventuras extrapolaram essa receita e se destacaram como clássicos do faroeste- Num nível tão marcante que se aproximam de grandes filmes, como os de Sergio Leone e Jonh Ford, dois mestres do género que mais gosto. Existem muitas outras observações que justificam o livro e eu convido o leitor do seu jornal a conhecê-las melhor“, instiga.

O fenómeno Tex, não apenas no Brasil, surpreende se pensarmos na perda de popularidade enfrentada pelo género de faroeste, tanto nas BDs, como no cinema e na TV. Gonçalo explica que o género se retraiu, mas nunca chegou a sair de cena. Além disso, ele aponta o VHS e, mais recentemente, o DVD, como suportes que facilitaram a redescoberta do bang-bang por novos públicos.

60 anos de Tex por Fred MacêdoMas creio que o leitor de Tex é particular um pouco em relação a tudo isso: ele é fiel e se renova muito lentamente. Tanto que a revista não vende mais 150 mil por edição, como nos anos de 1980. Vale ressaltar que faroeste lida com vários elementos que pegam firme no emocional de grandes plateias: aventura, drama, romance e senso de justiça. Isso não morre nunca, sempre vai atrair pessoas interessadas“, avalia o jornalista, que encontra parentescos entre as narrativas do fumetti e as telenovelas brasileiras.

Tanto no Brasil quanto na Itália existem várias revistas de Tex em circulação e, à excepção da série original, que traz novos títulos, todos os outros apresentam exaustivamente republicação de histórias antigas. Isso se reflecte na manutenção da personagem como bom produto de vendas. Acho que, de forma competente, o Grupo Bonelli tem conseguido investir na concepção dos roteiros, apesar de descambar, às vezes, para o terror e o sobrenatural. As histórias actuais continuam eficientes como leitura de entretenimento, mas não são mais marcantes e antológicas como nos tempos de Gian Luigi Bonelli. É como dizer que Janete Clair continua imbatível como criadora de telenovelas“, compara.

Pão e água
A bibliografia crítica sobre os quadradinhos, editada no Brasil, é pouco extensa e carece de profundidade. Clássicos como “Shazam!” (1970), colectânea de ensaios publicada por um dos grandes nomes da área, Álvaro de Moya, é bastante irregular – e não se decide entre o estudo rigoroso, académico, e o depoimento de admiradores das BDs. Os livros de Will Eisner, “Quadrinhos e Arte Seqüencial” e “Narrativas Gráficas”, são bons apenas como manuais, mas carecem de uma conceituação mais consistente. Isto, só para ficar nos exemplos mais famosos.

Tex e seus amigos por Fred MacêdoMoacy Cirne, um dos autores referenciais no Brasil, também tem uma bibliografia bastante irregular. Em “Uma introdução política aos quadrinhos” (1982), faz uma leitura marxista desta mídia, que é bastante agressiva com seu conteúdo de entretenimento. Para Gonçalo Junior, obras como esta ainda influenciam o olhar que se tem sobre as BDs, entre a “crítica” e a academia. “Esse discurso ultrapassado de anti-imperialismo aparece até hoje na discussão pela reserva de mercado para o artista brasileiro. Sou contra isso, acho que não tem de haver paternalismo, que leva ao parasitismo e só destrói ainda mais o mercado. Creio que nossos artistas deveriam trabalhar mais, ler mais, tornar-se competitivos como em qualquer profissão. No livro ´Enciclopédia dos Quadrinhos´ (2006), comento e resenho perto de 700 obras com o propósito de mostrar que existe sim uma ampla bibliografia sobre os quadradinhos, mas pouca coisa de realmente relevante“, opina o autor.

Para ele, a situação não é melhor nas universidades. “A academia passou décadas desprezando as revistas de BD como produto de comunicação de massa. Até mesmo nas críticas implacáveis a chamada Indústria Cultural (pela Escola de Frankfurt) detonam a TV e o cinema, mas ignora-se os quadradinhos. De modo geral, a pesquisa de quadradinhos na academia ainda engatinha e o que tem saído começa a melhorar“, comenta. No entanto, Gonçalo Junior lamenta a falta de senso crítico. “Essa onda de adaptações literárias, por exemplo, tem sido tratada de modo equivocado, até mesmo pelos pretensos críticos, que acolhem tudo sem qualquer juízo de valor e apenas aplaudem os editores“, dispara, contra um dos actuais filões do mercado editorial não especializado em BDs. “Estão publicando quadradinhos porque querem empurrar qualquer porcaria nos programas de compra de livros do Governo Federal, dos estados e dos municípios“.
(Para ver na plenitude a página do jornal, clique na 1ª imagem)

Copyright: © 2009, Diário do Nordeste; Dellano Rios – Repórter (texto) e Fred Macêdo (ilustrações)

Um comentário

  1. Como estou na cidade em que a notícia foi veículada, e não estava sabendo, vou imediatamente adquirir o jornal, para ficar como mais um item de coleção.

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