Tex, um Irresistível Clássico sem Idade

Por Mário João Marques*

Em 30 de setembro de 1948 saía para as bancas italianas o primeiro número da Collana di Tex, uma publicação que apresentava um novo fumetto western. A aventura Il Totem Misterioso,  publicada num formato de tiras 17cm x 8cm, com 32 páginas a preto e branco e capa a cores, ao preço de 15 Liras, marcou o início de uma verdadeira epopeia editorial que vai perdurar ao longo de várias décadas e que, ainda hoje, se mantém plena de vitalidade.

No entanto, para conhecermos a génese da nova publicação, recuemos um pouco no tempo, até 1940, quando Gianluigi Bonelli adquire a editora Audace, onde já então colaborava como autor. Ajudado pela esposa, Tea Bertasi, Bonelli tornou-se também editor até 1944, quando se interrompe a atividade devido à guerra.

Gianluigi Bonelli

Em 1946, já divorciada, Tea decide reabrir a editora, continuando a contar com a colaboração do ex-marido, agora apenas como autor de fumetti. Juntamente com Aurelio Galleppini, Gianluigi Bonelli vai criar o justiceiro mascarado Occhio Cupo, uma série ambientada na guerra franco-britânica no Canadá, assim como Tex Willer, que vai nascer na sombra do primeiro. Se Occhio Cupo é alvo de um grande cuidado, quer ao nível dos enredos e do desenho, como do grafismo e do formato, La Collana di Tex será menos exigente, apresentada em striscia, um formato mais económico e que permitia uma rápida leitura, nascido no pós-guerra em virtude das dificuldades no fornecimento de papel e do fraco poder económico dos leitores de fumetti. Numa época onde tudo era ainda artesanal, a editora funcionava praticamente como uma família, ao ponto de Galep ter estado inicialmente hospedado na casa de Tea Bertasi, mesmo junto ao quarto de Sergio Bonelli, onde se ocupava de Tex durante a noite.

Aurelio Galleppini (Galep)

A verdade é que será este “patinho feio”, como na altura foi apelidado por Galep, que se vai tornar no porta estandarte da editora, derrotando Occhio Cuppo (que desaparece ao fim de poucos meses), assim como, sucessivamente, todas as outras principais publicações, nomeadamente Capitan Miki, Il Grande Blek ou Il Piccolo Sceriffo. As “pobres” tiras (inicialmente com uma tiragem de 45000 cópias) que apresentavam aventuras frescas e dinâmicas, com um herói nobre no ânimo, audaz e com um sentido de honra imaculável, acabam por impor-se, projetando Tex Willer para uma cavalgada sem limites, à conquista de cada vez mais leitores, e que viria a conquistar gerações de todas as idades e de todos os extratos sociais, tornando-se numa das mais famosas marcas italianas no mundo e uma das personagens com maior longevidade no panorama da banda desenhada mundial.

Não foi uma conquista fulminante ou uma paixão à primeira vista. Pelo contrário, a série teve que fazer o seu percurso, tornear obstáculos, mas acabou por se impor mercê dos seus enredos movimentados, dos diálogos velozes, duros e corrosivos, e dos valores fundamentais que foi imanando como justiça, lealdade, igualdade entre todos, luta contra os poderes instituídos, contra a corrupção ou ainda contra a obtusidade militar. Se as primeiras aventuras mostram um desempenho do herói improvisado e ainda contraditório e pouco estruturado, muito próximo dos códigos específicos do entretenimento popular, com o decorrer das aventuras Tex vai evoluir e o jovem irrequieto que galopava e disparava vai dar lugar a uma personagem madura, irónica e psicologicamente convincente.

Gianluigi Bonelli

As razões deste enorme sucesso, que ainda hoje se mantém, não são fáceis de individualizar, antes representam uma mistura de variadas condições, entre as caraterísticas da própria série e a capacidade da editora em adaptar-se à evolução do mercado e dos leitores ao longo destes setenta anos. Gianluigi Bonelli conseguiu construir um universo coerente, sustentado por aventuras com um ritmo sem igual. Um universo perfeitamente definido, onde existem os bons e os maus em campos perfeitamente opostos, um mundo onde a justiça mais tarde ou mais cedo triunfa e onde os fora da lei acabam sempre por pagar pelos seus actos. Tal como definiu o próprio autor: “Nas histórias de Tex sempre tentei recriar a atmosfera do Velho Oeste onde, infelizmente, os homens justos eram forçados a usar o velho colt como juiz para reprimirem os abusos e a violência postos em prática por gente sem escrúpulos… Tex não tem qualquer fundo psicológico e eu nunca pretendi dar-lhe algum”. A divisão entre justo e injusto torna-se numa regra, claramente necessária num ambiente violento e perigoso e Tex acaba por encarnar aquele que todos nós gostaríamos de ser, o justiceiro que não olha a meios para defender aquilo que acha justo, mesmo que tenha que ultrapassar a lei dos homens.

Um elegante Gianluigi Bonelli com um amigo, no início dos anos 1930

Para além do carisma da personagem, outro dos fascínios da série reside nos cenários e nos ambientes, com a sucessão das suas aventuras a permitir-nos descobrir a América mítica e lendária do Velho Oeste. As suas cavalgadas permitiram-nos viajar desde o Arizona até aos desertos do Nevada, desde os bosques do Utah até ao Grande Norte, do Rio Grande ao Oceano Pacífico, testemunhando as variadas transformações vividas pelo herói, de fora da lei a ranger, de herói solitário a líder dos Navajos, ao lado do filho Kit Willer, do velho Carson e do leal Jack Tigre. Sem esquecermos o facto do autor ter contemplado a série com um vasto conjunto de personagens que rapidamente entrou no imaginário do leitor. Amigos como Montales, El Morisco, Gros-Jean, Pat Mac Rayan ou Jim Brandon; inimigos, uns bem terrenos, outros oriundos de ambientes mais ou menos fantásticos, obrigando o ranger a mergulhar em lutas com seitas, bruxos, feiticeiros, aliens, mundos e povos perdidos, com Mefisto e o filho Yama à cabeça.

Uma muito jovem Tea Bonelli no seu escritório da editora

O sucesso leva a que a produção aumente, justificando a entrada de novos autores que vão contribuir para consagrar o mito. Primeiro de uma forma tímida, com os “ghost artist” que vão sobretudo auxiliar Galep; posteriormente, desenhadores a tempo inteiro, que não se limitarão a auxiliar o trabalho de Galep, mas que vão assumir na plenitude os seus próprios trabalhos, tornando-se assim elementos oficiais da equipa de desenhadores de Tex. As vendas atingem recordes nos anos setenta, quando as tiragens ultrapassam o milhão de exemplares mensais, levando Tex a sair das suas próprias páginas e a afirmar-se como um fenómeno mediático.

Um jovem Sergio Bonelli, envergando a farda militar, com a mãe Tea e a secretária Liliana Gentini, no escritório da editora, situada agora na via Ferruccino nº 15 em Milão

Um filme, uma aventura radiofónica, desenhos animados, uma coleção de cromos, um puzzle, uma linha de moda, jogos, juntam-se a um sem número de estudos, teses, análises sociológicas, mostras, exposições, homenagens. Fenómeno social, expoente da cultura popular, o sucesso de Tex acompanha toda a evolução geracional: Sergio Bonelli dá continuidade à obra do seu pai, escrevendo, também ele, argumentos para a série, enquanto, junto dos leitores, as aventuras de Tex vão passando de pai para filho.

Hoje, lado a lado com a série principal e as suas duas reedições, surgiu recentemente o Tex Classic, que apresenta as aventuras de Tex Willer republicadas tal como o foram inicialmente desde 1948. Publicações que acompanham anualmente o habitual Texone, o Tex Magazine (que veio substituir o Almanacco del West), o Maxi Tex, o Color Tex e o Tex Romanzi a Fumetti. Recentemente, a Sergio Bonelli Editore entrou também no circuito das livrarias, apresentando obras temáticas e edições de prestígio sobre a personagem. No final de 2017 surgiu o Monopoly di Tex, o mais famoso jogo do mundo ambientado no mundo de Tex, assim como Tex – Fino all’ultima pallottola, um jogo de tabuleiro inspirado na mítica personagem.

Prancha de Galep, juntando 3 tiras (ou bandas) das publicações iniciais de Tex

Aurelio Galleppini faleceu em 1994. Gianluigi Bonelli juntou-se-lhe nas pradarias celestes há dezassete anos atrás. Mas, graças a Tex Willer, a memória de ambos perdurará junto de nós para sempre. Como escreveu um jornalista do La Nuova di Venezia: “se a força de uma personagem da banda desenhada se mede pela capacidade de sobreviver aos seus autores, então a Tex Willer devemos reconhecer um estatuto de… super-herói. Sejam quais forem as explicações, através das quais os caminhos misteriosos e ilusórios de uma personagem fictícia se impõem ao imaginário popular, elas sublinham como Tex é agora um ícone da nossa imaginação… um monumento da nossa cultura, da nossa sociedade, não esquecendo do nosso quotidiano”.

Gianluigi Bonelli

Aurelio Galleppini e a sua paixão

Tea Bonelli no seu escritório com Liliana Gentini

* Texto de Mário João Marques publicado originalmente na Revista nº 8 do Clube Tex Portugal, de Junho de 2018.

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima clique nas mesmas)

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