Por Jesus Nabor Ferreira*
O universo Bonelli, e o de Tex em especial, é tão rico e variado, que navegar pelas suas páginas constitui
sempre uma emocionante e rica aventura. E para aqueles, como nós, fanáticos colecionadores, que estão sempre um passo mais à frente que os leitores “comuns”, nós que não nos conformamos em “apenas ler” as aventuras do Ranger, mas também em conhecer os bastidores, os detalhes que envolvem a criação destas aventuras, o que está por detrás do pano, como usualmente se diz, sempre existe algum detalhe que nos chama a atenção, algum mistério que tenha passado despercebido para os olhos menos treinados, mas não para nós, velhos perdigueiros batedores de pistas, que quando nos deparamos com estes enigmas, não descansamos até conseguir a explicação de tais factos.
Drama na Pradaria, Mesa dos Esqueletos, Trilhos Ensanguentados, Raposas Vermelhas (O Uivo do Coiote e O Renegado), Um Mundo Perdido, O Massacre de Red Hill, Alma Envenenada e O veneno do Cobra. Aqueles mais familiarizados com o universo Bonelli já devem ter dado conta que todos estes títulos são referentes a grandes aventuras de Tex e seus pards. No entanto, estas histórias possuem algo mais, algo em comum, algo em especial. Para além de serem protagonizadas pelo grande herói, o que é que as une? Qual o denominador a todas elas e que faz com as possamos chamar de “especiais”?
With a little help from my friends
Vamos contar um pouco de história, recordando factos, detalhes que talvez não sejam conhecidos do grande público, daqueles compradores que apenas se interessam em ler todos os meses as aventuras do Ranger, sem aprofundar as histórias e o que está por trás das histórias. Talvez para os mais dedicados colecionadores e aficionados estes detalhes não sejam novidade, mas lembremos que nem sempre todos têm acesso a informações de bastidores e também porque é que muitas destas informações costumam vir à luz do dia muito tempo depois da publicação sair para as bancas. Vamos aos factos.
Em função do crescente trabalho, desde os primeiros anos Galep começou a receber ajuda de outros desenhadores, como Angelo Corrias, Mario Uggeri ou Guido Zamperoni. Não a dividir literalmente os pincéis com outros ilustradores, já que uns limitavam-se a tarefas como os esboços, outros poderiam fazer esta ou aquela passagem a tinta, ou outros ainda, limitando-se a este ou aquele cenário. Estes desenhadores acabaram por ficar conhecidos como “desenhadores fantasmas”, uma vez que era sempre o nome de Galep que aparecia e o único que assinava. Para além dos já referidos acima, Virgilio Muzzi, Francesco Gamba, Lino Jeva, Raffaelle Cormio ou Franco Bignotti, eram os mais recorrentes e da confiança do editor, dividindo o trabalho com Galep, ou melhor dizendo, auxiliavam o grande desenhador em diversos trabalhos, muitas vezes para que fosse possível produzir atempadamente as quantidades de tiras, que os famintos leitores aguardavam e que os levavam semanalmente a correr às bancas italianas, em busca das novas aventuras do Ranger e seus pards. Muitas vezes, Galep apenas desenhava os rostos das personagens principais, sobretudo Tex e Carson. Todos os demais detalhes das histórias, cenários, fundos, personagens secundárias, era um trabalho a que Muzzi, Gamba, Uggeri e os demais artistas deitavam mão. Quando nos debruçávamos na leitura destas primeiras aventuras, quantos de nós verdadeiramente percebemos que o trabalho era feito por mais do que um ilustrador?
A partir do momento em que a editora começou a adotar um novo formato para as revistas, o chamado formato gigante, o editor Sergio Bonelli compreendeu que seria praticamente impossível Galep encarregar-se solitariamente da produção das páginas mensais que o novo formato exigia, atendendo ao novo padrão de 130 páginas por edição, e ainda dedicar-se a todas as capas das edições. Galep teria forçosamente necessidade em dividir com outros desenhadores os roteiros que Gianluigi Bonelli produzia incessantemente para atender ao mercado consumidor. E foi assim que, no espaço de poucos anos, Virgilio Muzzi e Francesco Gamba deixaram de apenas auxiliar e passaram, também eles, a desenhar por completo algumas histórias, assim como foram chegando à série outros grandes nomes como o Erio Nicolò, Guglielmo Letteri, Giovanni Ticci, Ferdinando Fusco, Alberto Giolitti ou Vincenzo Monti, juntando-se assim a Galep, numa época onde as aventuras de Tex eram cada vez maiores, estendendo-se por grande número de páginas, entre 250 e 400.
Histórias a quatro mãos
Mas ainda precisamos de falar sobre o verdadeiro motivo deste texto: qual o ponto comum que liga todas aquelas histórias mencionadas acima? É isso que vamos começar a descobrir em seguida.
Em 1964, com o episódio ‘Drama na Pradaria‘ (Tex nº 07 Editora Vecchi, 1ª edição), surge um novo desenhador, Erio Nicolò, o qual, por algum motivo que desconhecemos, acabará por não concluir esta aventura, que vai ser finalizada por Galleppini. De entre os novos desenhadores que chegaram à série, Nicolò perdeu assim, para Letteri, a oportunidade de ser o primeiro desenhador a responsabilizar-se por uma história completa de Tex, talvez por conta de algum outro projeto onde estivesse envolvido na altura, uma vez que, apesar de recém-chegado à série, Nicolò era um artista requisitado, principalmente
para o mercado inglês.
Em ‘A Mesa dos Esqueletos‘ (Tex nº 124 Editora Vecchi, 1ª edição), um grande artista era apresentado aos leitores do Ranger nas primeiras páginas desta empolgante aventura, a qual, inclusive, serviu de inspiração para as cenas iniciais do mítico filme de Tex. ‘A Mesa dos Esqueletos‘ trouxe os traços marcantes de Alberto Giolitti, um autor que construiu uma carreira de sucesso nos Estados Unidos, desenhando diversos títulos de aventuras e ficção. Foi do seu estúdio que Giovanni Ticci surgiu para a indústria da banda desenhada, tornando-se seu pupilo e amigo, e a quem coube terminar a aventura iniciada por Giolitti, que na época abandonou o trabalho por querer regressar aos Estados Unidos, país onde já trabalhara e onde inclusive tinha adquirido a respetiva nacionalidade.
‘Trilhos Ensanguentados‘ e ‘Raposas Vermelhas‘ também foram motivo de mudança de desenhadores antes do final da aventura, no entanto, apesar das nossas leituras e investigações, não nos foi permitido saber ao certo das respetivas razões.
‘Um Mundo Perdido‘ será iniciada por Erio Nicolò, autor que acabará por falecer antes de desenhar as mais de 200 páginas desta aventura, a qual será concluída por Vicenzo Monti.
Como vimos acima, Alberto Giolitti deixara incompleto o seu trabalho em ‘A Mesa dos Esqueletos‘, devido ao seu regresso aos Estados Unidos. O desenhador acabará por voltar a Itália e colaborar em definitivo para Tex, assinando o Texone ‘Terra senza legge‘. Depois de mais duas outras aventuras (‘La mano nella roccia‘ e ‘Lo sceriffo de Wickenburg‘), a aventura ‘O Massacre de Red Hill‘ será também finalizada por Ticci. Quis o destino que esta aventura violenta, escrita pelo mítico Guido Nolitta, fosse, uma vez mais, concluída por outro desenhador, desta vez devido ao falecimento de Giolitti. Também mais uma vez, o seu grande amigo, na época já um dos mais adorados desenhadores do Ranger, Giovanni Ticci, assumirá a arte e concluirá a história.
‘Alma Envenenada‘ – Vicenzo Monti inicia esta aventura com o seu estilo clássico e competente. Infelizmente, novamente a mão negra da morte interfere e uma vez mais caberá a outro artista a tarefa de concluir a trama. Neste caso, o artista em questão é Bruno Brindisi. Curiosamente, em ‘Um Mundo Perdido‘, Vicenzo Monti tinha substituído Erio Nicolò numa situação semelhante.
Guglielmo Letteri, o autor apelidado de “o homem mistério”, por se ter especializado em histórias envolvendo seitas misteriosas, causas sobrenaturais, misticismo, enredos fantásticos, onde geralmente os vilões eram mexicanos ou os “diabos amarelos”, os chineses, encarrega-se de ‘O veneno do Cobra‘, mais uma trama envolvendo as gangues chinesas. Em 2 de fevereiro de 2006, depois de mais de 40 anos ao serviço da banda desenhada, Letteri sobe aos grandes campos de caça de Manitu e a conclusão desta aventura fica a cargo do talentoso Raffaele Della Monica.
Em 2003, o espanhol Manfred Sommer estreia-se em Tex com a aventura ‘Mercanti di Schiavi‘, publicada no Texone daquele ano. A sua carreira a desenhar para o Ranger será, no entanto, curta, já que, depois da sua estreia na série mensal, com ‘L’ultima diligenza‘, Sommer vai falecer quando estava a trabalhar em ‘Capitan Blanco‘, aventura que será concluída por Leomacs.
Chegou, então, a altura de responder à questão lançada acima, uma vez que o ponto em comum destas aventuras é o facto do desenhador que as terminou não ter sido o mesmo que as iniciou. Na maior parte dos casos, esta troca deu-se devido ao falecimento do desenhador inicial, mas nem mesmo o desaparecimento de um autor pode impedir que, mês após mês, o leitor seja abastecido com a sua dose vital de aventura e ação, proporcionada pela maior editora de banda desenhada popular da Europa. Cabe aos editores fazer com que o sonho não se esgote e nunca termine, mas é também uma forma de prestar uma última homenagem aqueles que, com o seu trabalho ao longo de décadas, proporcionaram a tantos viverem grandes emoções. O show não pode parar…
Ticci, substituto titular
Vou pedir licença ao grande colecionador, crítico, tradutor e texiano Julio Schneider, para mencionar aqui o feliz artigo que ele produziu para a edição de Tex Ouro nº 73 (Mythos Editora), onde fala sobre algumas curiosidades a respeito da aventura ‘Golden Pass‘ e que tem muito ou tudo a ver com o que tratamos aqui. ‘Golden Pass‘ não foi idealizada da maneira como acabou por vir a ser publicada nos números 466 a 469 da coleção mensal italiana do Ranger. A versão final que foi para as bancas italianas não tinha nem o argumento, nem o desenho da primeira versão original. A grande maioria dos leitores de Tex, questionados sobre quem são os autores deste belo trabalho, não hesitaria em responder Mauro
Boselli e Giovanni Ticci. E, realmente, são estes dois grandes astros da casa Bonelli que assinam a aventura tal como todos a conhecemos. Mas aqui também temos uma história de bastidores muito emocionante e que merece ser contada e vir a ser conhecida por todos aqueles que apenas colecionam a série mensal e que não compraram ou leram o mencionado Tex Ouro nº 73, pois envolve aquele que deveria ser o derradeiro trabalho do grande Aurelio Galleppini.
O veterano artista tinha concluído a edição especial do número 400 (da série mensal italiana) e estava novamente a trabalhar num argumento que o amigo e editor Sergio Bonelli (sob o pseudónimo de Guido Nolitta) tinha escrito especialmente para si. Tratava-se de um argumento festivo, com o reencontro de grandes e velhos amigos, tanto nas páginas impressas como na vida real, pois era uma nova produção de Nolitta/Galep que já tanto tinha legado aos fãs de Tex, onde o grande mestre poderia novamente desfilar a sua técnica, com personagens conhecidas e uma trama harmoniosa. Mas então veio o infortúnio, a doença e a morte e o grande Galep partiu para as pradarias celestiais.
Naturalmente, com o falecimento do seu grande amigo e colaborador, Sergio Bonelli não teve ânimo para prosseguir com a história e esta acabou por passar para as mãos de Mauro Boselli. E uma vez mais, o desenhador chamado foi Giovanni Ticci, agora para não só concluir o trabalho de outro, mas desta vez para retomar toda a trama desde o início. Com a mudança de autores, também mudou o enfoque dado à história, antes uma aventura leve e descomprometida, agora um autêntico tiroteio dos velhos tempos, cheio de ação e situações explosivas, como é timbre nas melhores aventuras dos Rangers. E Giovanni Ticci é um mestre neste tipo de história.
Uma pequena ajuda a um amigo
Quero terminar este artigo salientando que não foram somente os momentos difíceis ou tristes que fizeram com que as aventuras do nosso Ranger fossem conduzidas ou finalizadas a quatro mãos. Temos um exemplo na história ‘O Fugitivo’ (Almanaque Tex nº 27), onde se estreia um novo desenhador, Rossano Rossi, da cidade italiana de Arezzo, conterrâneo do reputado Fabio Civitelli, que acabou por vir justamente em seu auxílio. Com humildade, discrição e a simpatia de sempre, o famoso e experiente autor conduz o colega, sem no entanto impor o seu próprio estilo. Civitelli produz as 35 páginas finais da aventura, tendo Rossi como arte-finalista, conseguindo uma perfeita harmonia em todo o trabalho. Este foi um caso em que uma aventura foi finalizada por um artista diferente do inicial por razões totalmente altruístas, pois foi a boa vontade em ajudar o seu colega que levou Fabio Civitelli a assumir os pincéis na última parte da história, quando Rossi percebeu que não conseguiria entregá-la a tempo.
Estas histórias de bastidores da criação das grandes aventuras texianas, acabam por vir à tona em artigos publicados por fãs ou colecionadores em edições especiais, muitas vezes republicando estas histórias de forma encadernada, em revistas especializadas ou em entrevistas com os autores, que também gostam de desvendar para os seus leitores um pouco destes detalhes, servindo, em minha opinião, para enriquecer o universo dos nossos heróis e deixar-nos um pouquinho mais por “dentro” da vida editorial destas amadas personagens.
* Texto de Jesus Nabor Ferreira publicado originalmente na Revista nº 6 do Clube Tex Portugal, de Junho de 2016.
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