Texto da Revista Mundo de Aventuras nº 277, de 25 de Janeiro de 1979
Por Jorge Magalhães*
OS PIONEIROS DO “WESTERN”
DE BRONCHO BILL E TOM MIX A WILLIAM (SHAKESPEARE) HART:
QUANDO NOS FILMES DE “COW-BOYS” SÓ O QUE MUDAVA ERA O CAVALO…
«A vida do homem não vai do berço ao túmulo. É o percurso percorrido do animal e do físico ao espiritual»
KING VIDOR
A TRADIÇÃO ROMÂNTICA
O mito da «cow-boy» resiste à passagem do tempo, confirmando a vitalidade de um dos géneros mais antigos e espectaculares do cinema.
Ao princípio, de facto, a única preocupação do «western» era o espectáculo. Nessa tradição se insere ainda hoje, apesar de ter ganho características dramáticas que o requintaram, intelectualizando-o e elevando-o à categoria de tragédias colectivas, como as obras-primas do teatro grego — caso de «Shane», de George Stevens, e «Consciências Mortas» de William Wellman.
As raízes do filme de «cow-boys» foram o folclore e a epopeia, assim como a música e a literatura típicas desse período da História americana. O cinema dos primeiros «westerns» — segundo Jean-Louis Rieupeyrout — prolongava a música e o livro, trazendo para os habitantes das grandes cidades a epopeia trepidante das pradarias, um sopro dos vastos espaços livres.
Numa entrevista concedida por cinco famosos astros da televisão e dos filmes de «cow-boys» à revista americana «SBI» diz-se a certa altura:
«O filme de «cow-boys» é uma forma especial de entretenimento, exactamente como o foram as sagas dos países escandinavos ou as crónicas dos países anglo-escoceses. Todas elas são o reflexo das crises de crescimento dos respectivos países. Os factos reais transformam-se em lendas, e as lendas foram traduzidas em formas poéticas ou teatrais, incluindo o drama. As lendas do Oeste são muito semelhantes às lendas românticas da literatura inglesa. O «western» assenta, no período romântico da expansão americana».
Tudo começou com «The Great Train Robbery» («O Grande Assalto ao Comboio»), filmado em 1903 por Edwin S. Porter.
Porter foi o mais importante cineasta americano do período pioneiro que medeia entre 1900 e 1910. Além de inovador da linguagem cinematográfica, Porter trouxe para o cinema algo ainda mais importante: um novo género, uma nova atmosfera, uma nova mitologia, que depressa conquistaria multidões, estabelecendo uma espécie de diálogo — como diz Manuel de Pina — entre os homens de uma época com os seus antepassados, numa lúcida reconsideração do que foram, do que são, do que querem vir a ser.
OS INVENCÍVEIS PALADINOS
O mito estava criado. Multiplicavam-se os filmes de «cow-boys», esculpia-se a figura do que viria a ser o herói típico do «Far-West». Formaram-se companhias dedicadas exclusivamente à produção de filmes de «cow-boys». Surge Bronco Bill, o primeiro grande ídolo das plateias, intérprete de uma película por semana, durante trezentas e setenta e seis semanas. Bronco Bill — aliás, Max Anderson — foi o produtor dos seus próprios filmes. Com o sentido do negócio de um autêntico financeiro de Wall Street dizia:
« — O assunto dos filmes de «cow-boys» não precisa mudar; só o cavalo.»
Depois, é o advento de Tom Mix, o «cow-boy» branco da América, de Buck Jones, de Hopalong Cassidy, de Rio Jim, paladinos invencíveis que simbolizavam a luta vitoriosa do Bem contra o Mal.
Foi Thomas Harper Ince, realizador da série de Rio Jim, interpretada por um actor de admiráveis recursos chamado William Shakespeare Hart, o primeiro homem que se preocupou com a importância dramática dos seus filmes. Para Ince, o cinema era mais do que um jogo maravilhoso de imagens: era um instrumento de criação. Com Ince, o filme de «cow-boys» começou a impor-se pela forca lírica dos seus temas e das suas paisagens.
Bronco Bill, Tom Mix, Rio Jim, são os astros que perpassam na tela, heróis legendários sempre um pouco maiores que qualquer criatura humana. Mas, à medida que o filme de «cow-boys» começa a humanizar-se, esses ídolos desvanecem-se, perdem importância e significado. O herói do Oeste surge despojado da sua aura ingénua e simplista.
Já não basta saber manejar a pistola, cavalgar os broncos selvagens e derrubar a murro os antagonistas; o homem do Oeste deve também reflectir os sentimentos e as preocupações de índole moral, psicológica e social do homem adulto. O filme de «cow-boys», de raízes mergulhadas na História e no folclore do velho Oeste, adquire assim uma perspectiva nova, transformando-se num género cinematográfico maior, inalterável à passagem do tempo e da moda.
Cria-se uma espécie de nova mitologia, um novo ciclo de «western», que tem em David Wark Griffith o seu primeiro e mais alto expoente.
A EPOPEIA HISTÓRICA
Griffith foi o mais importante cineasta da sua geração. Além das suas obras-primas, «O Nascimento de Uma Nação» e «Intolerância», deixou uma obra de génio como teórico da linguagem cinematográfica. Foi ele o primeiro a utilizar conscientemente o grande plano, a iluminação, o «travelling», e a descobrir o sentido rítmico e narrativo da montagem. Pode dizer-se que foi Griffith, quem libertou definitivamente o cinema das três unidades teatrais de tempo, acção e lugar.
«Nascimento de Uma Nação» foi o primeiro painel grandioso inspirado na História dos Estados Unidos da América. Filho de um oficial sulista, que tomara parte na Guerra Civil, Griffith, tentou compor, à maneira do «Quo Vadis» — obra-prima do cinema de artes italiano — um fresco, uma epopeia colectiva, em homenagem aos Estados do Sul, às suas tradições românticas e aristocráticas, que nem mesmo a guerra e a derrota fizeram desaparecer.
Muitos anos depois, «E Tudo o Vento Levou», de Vitor Fleming, consagraria definitiva e espectacularmente essa forma sui generis de epopeia, lírica, violenta e grandiloquente, que fugia, embora, sem as abandonar completamente, às linhas de rumo do «western» tradicional.
Griffith não hesitou em atribuir aos negros as culpas da Guerra Civil e em enaltecer a acção do próprio Ku-Klux-Klan. O racismo aflora de uma ponta à outra do seu filme. Para ele, todo o americano mau ou era católico ou judeu. Reaccionário e segregacionista, Griffith ficou, porém, na historia do cinema como um dos seus génios, um dos homens que mais contribuíram para que ele se tranformasse numa arte maior.
JORGE MAGALHÃES
Copyright: © 1979 “Mundo de Aventuras nº 277″; Jorge Magalhães.
* Editor, autor de banda desenhada (argumentista), autor de numerosos textos de estudo, análise e história da BD, em livros, revistas, jornais e fanzines e também leitor e coleccionador de Tex Willer.
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