Texto originalmente da Revista Selecções BD nº 27, de Janeiro de 2001, mas actualizado e complementado propositadamente no presente, para o blogue do Tex.
Por João Miguel Lameiras [1]
CAVALGANDO DE NOVO:
O WESTERN NA BD CONTEMPORÂNEA
Género cinematográfico americano por excelência, o Western é um bom exemplo da capacidade de Hollywood em exportar o sonho americano. Apesar de ter como ponto de partida a realidade concreta dos EUA durante o século XIX, o Western eleva essa realidade a uma categoria arquétipica, facilmente reconhecível em qualquer parte do mundo. Mais do que a história do Oeste americano, o Western codifica a sua lenda, uma lenda que se revela ainda mais atraente para aqueles que nunca puseram os pés naqueles espaços míticos.
O WESTERN NA EUROPA
Daí que não admire que, em termos de Banda Desenhada, o género tenha conhecido o desenvolvimento que conheceu na Europa, de tal forma que ninguém tem dúvidas de que os mais interessantes “Westerns de papel” nasceram deste lado do Atlântico. O caso da série Blueberry é um dos melhores e mais populares exemplos, só com paralelo com o italiano Tex Willer, à sombra do qual o editor Bonelli construiu o seu império. Mas não é o único… Basta lembrar clássicos da BD franco-belga, como o Jerry Spring de Jijé (com quem Giraud fez o seu tirocínio), Buddy Longway, Comanche, Jonathan Cartland, e McCoy. E se muitas dessas séries estão já em fase claramente descendente (Comanche e McCoy acabaram mesmo em consequência das mortes de Greg e Palacios, enquanto Blanc Dumont trocou Jonathan Cartland pela Juventude de Blueberry e Guy Vidal não conseguiu substituir Charlier de forma eficaz em Los Gringos ), o retomar de outras como Buddy Longway, que Derib interrompeu em 1987 para se dedicar à série Celui qui est né deux fois e à sua continuação, Red Road, são apenas um sinal, entre outros, do reviver de um género que nunca chegou a morrer verdadeiramente. Mesmo que o próprio Derib regresse a Buddy Longway para matar o herói que criou em La Source , álbum de 2006, em que Buddy vê a morte chegar ao lado da sua amada Chinook, na mesma cabana onde se tinham conhecido pela primeira vez, pondo um fim lógico e inevitável a uma série que se distinguiu pela forma como o protagonista cresceu e arranjou uma família, ao lado da qual envelheceu, por oposição aos cowboys solitários que normalmente enchem os westerns de papel.
Durango, o Western-spaguetti que Yves Swolfes criou em 1981, tendo como evidente ponto de partida o filme Il grande Silenzio de Sergio Corbucci, aonde Swolfs vai buscar o herói e o vilão da série, é a primeira de um conjunto de novas séries que optam por uma aproximação mais actual ao género, com aparente sucesso comercial. Talvez por isso Swolfs, ao mesmo tempo que prossegue com Durango, tenha escrito o argumento do Western psicológico Black Hills, para os desenhos de Marc-Renier, e a Soleil, uma editora mais virada para o género “heroic fantasy”, tenha decidido editar também um western, a série Wanted de Simon Rocca e Thiery Girod (desenhador que não apresenta semelhanças com Jean Giraud apenas no nome) protagonizada por um caçador de recompensas com a cara marcada por uma cicatriz em forma de W.
Ainda no catálogo da Soleil, que acolheu a série Durango, na nova fase em que Swolfs cede os desenhos a Girod, encontramos outra série claramente filiada no Western spaguetti, mas com a particularidade de ser protagonizada por mulheres. Essa série é Fleurs Carnivores, a série de Djian e Penet, uma promissora incursão pelo género, que apenas durou dois álbuns, devido a divergências entre os autores.
Mesmo na colecção Vecú que a Glenat dedica à BD histórica, o western está presente através de duas séries: Sundance, escrita por Corteggiani e ilustrada por Suro, em que o actual argumentista de A Juventude de Blueberry decide pegar na figura do Sundance Kid, que com Butch Cassidy formou um dos mais famosos bandos do Velho Oeste, oferecendo-lhe uma segunda oportunidade de vida, sem os constrangimentos de uma história que se transformou em lenda. História essa que marca a acção de Les Carnets de la Sécession , de Guimin, série dedicada às aventuras de um jovem fidalgo francês que decide explorar as planícies americanas no preciso momento em que estala a Guerra da Secessão.
NOVAS ROUPAGENS PARA UM GÉNERO CLÁSSICO
Também a Delcourt abriu o seu catálogo ao Western através de dois projectos a que aparece associado o desenhador Olivier Vatine, em que a violência e as paisagens mexicanas características dos Westerns Spaguettis estão presentes. São eles Adios Palomita de Lamy,Vatine, Clement e Rabarot, um Western no feminino, desenhado num estilo semi-caricatural por Fabrice Lamy, que foi premiado com um Alph-Art de Angoulême e viu um estúdio de Hollywood comprar os direitos de opção para uma eventual adaptação cinematográfica; e 500 Fusils, também desenhado por Lamy que aqui adopta um grafismo mais realista. Esta violenta aventura de Wayne Redlake, um cowboy convertido em taberneiro num México assolado pela luta entre o exército francês e os rebeldes juaristas, foi escrita por Cailleteau e Duval e planificada por Olivier Vatine, o que deve estar na origem dos enquadramentos pouco habituais na BD europeia, que aproximam este western da estética da editora Image. E Fabrice Lamy parece ter-se tornado um especialista no género, mesmo sem a colaboração de Vatine, a avaliar por Colt Walker, um violento Western para adultos que ilustrou para a Dargaud em 1997, a partir de um argumento do versátil Yann.
Bastante mais clássico no seu desenho “linha clara” é Cães da Pradaria, de Berthet e Foester, título que volta a reunir a dupla de O Olho do Caçador, também oriúndo do catálogo Delcourt e já editado em Portugal pela Meribérica. E se a história de um pistoleiro envelhecido que quer honrar a memória de um velho amigo, transportando o seu corpo para o enterrar junto da mulher que amou, apesar de perseguido por um grupo de caçadores de prémios, faz lembrar o Imperdoável de Clint Eastwood, filme que já nos anos 90 trouxe de novo o Western para a ribalta de Hollywood, a presença de lendas vivas da história americana, como Wild Bill Hicock e Calamity Jane, e a referência ao massacre de Little Big Horn, onde morreu o General Custer, remetem para essa dimensão épica e lendária que encontramos nos grandes clássicos de John Ford e Howard Hawks.
Ainda mais bem conseguido é L’Etoile du Desert, de Marini e Desberg, um Western crepuscular, protagonizado por um político de Washington (com as feições de Sean Connery, o que facilita bastante as coisas, no caso de uma adaptação cinematográfica… ) que empreende uma autêntica descida aos infernos em busca do homem que matou a sua família. Uma história cativante e de grande densidade psicológica, que permite ao suiço Marini um dos melhores trabalhos da sua carreira.
Repetindo uma fusão entre o Western e as artes marciais, muito em voga nos anos 70, de que chegaram a Portugal algumas histórias desenhadas pelo espanhol José Ortiz, Chinaman de Letendre e Taduc, apresenta a particularidade de ter como protagonista um chinês especialista em artes marciais, à semelhança da série televisiva O Sinal do Dragão, protagonizada por David Caradine e que parece estar na origem desta incursão de Le Tendre e Taduc pelo Western, repetindo uma formula semelhante à que tinham usado na série Les Voyages de Takuan, em que um monge Budista deambula pela Europa durante a Alta Idade Média.
Também Snake, que a Albin Michel lançou em 1999), permite ao leitor ver Abuli e Bernet, a dupla criadora de Torpedo, aplicar ao Western o seu habitual cocktail de sexo, humor negro e violência, que tanto contribuiu para o sucesso mundial das aventuras de Luca Torelli. E se para Abuli esta é a primeira incursão de vulto no Western (se exceptuarmos duas ou três histórias curtas), Bernet, que foi o desenhador do Tex anual de 1996, que já tinha abordado o género em L’Ultimo Sceriffo, uma história em episódios que desenhou para uma revista italiana nos inícios dos anos 80, tem voltado ao western com alguma frequência ilustrando alguns episódios da série Jonah Hex (entre os quais, a origem da personagem) nas nova versão do pistoleiro da cicatriz, escrita por Jimmy Palmiotti e Justin Gray.
Para além de Abuli e Bernet, o humor, embora numa versão muito mais politicamente correcta, também está presente nos clássicos como Chick Bill de Tibet e Lucky Luke de Morris, duas séries que tendo ultrapassado largamente a meia centena de álbuns, prosseguem imperturbáveis um caminho de sucesso. Um sucesso que já está a gerar seguidores, como o Cotton Kid, de Pearce e Leturgie, argumentista regular da série Lucky Luke nos últimos anos de vida de Morris.
E ainda falta falar no regresso pontual ao género de grandes nomes da BD franco-belga, como Franz, com Wyoming Doll, ou em On a tué Wild Bill, o primeiro Western desenhado por Hermann em cores directas (e que cores!) para a colecção Aire Libre da Dupuis. Mas o mais importante western europeu do século XXI é indiscutivelmente Bouncer, a incursão conjunta de Boucq e Jodorowsky pelo Oeste selvagem, numa série em que o universo particular de Jodorowsky (que realizou ele próprio um Western spaguetti psicadélico, El Topo) se casa de forma harmoniosa com as convenções do Westerns em histórias trágicas com uma dimensão shakespereana e que o magnífico desenho de Boucq faz saltar da página em belíssimas vinhetas em formato cinemascope. Grande sucesso crítico e comercial e série de culto, muito por forças do trabalho gráfico de Boucq, Bouncer faz-nos lamentar ainda mais que o projecto de colaboração com Giraud em Blueberry 1900 nunca se tenha concretizado.
O WESTERN NA AMÉRICA
Nos EUA, onde o Western sempre viveu muito ligado aos sucessos do cinema e da televisão, a ressureição do Western nos anos 90 também surge associada à fusão com outros géneros, o que não é propriamente novidade, pois Stan Lee e Jack Kirby já tinham ensaiado nos Westerns, em finais dos anos 50, a mesma receita que tornaria tão característicos os super-heróis da Marvel.
Nos anos 90, a renovação começa por se dar dentro da linha Vertigo da DC Comics, normalmente associada ao terror e ao fantástico, numa fusão de géneros que já tinha sido ensaiado em França nos anos 80, em moldes algo diferentes, na série L’Indien Français de Ramaolli e Durand, e mais recentemente por Jean Giraud, na série Jim Cutlass, criada por Charlier, mas a que Giraud e Rossi deram uma outra orientação mais esotérica. É precisamente a DC que vai convidar o escritor Joe R. Landsdale para recuperar Jonah Hex, um pistoleiro com a face desfigurada por uma cicatriz, criado nos anos 70 por John Albano e que ganhará a sua imagem definitiva em episódios desenhados por Tony Dezuniga, que foram publicados em Portugal em revista própria. Landsdale vai juntar o terror e o western em histórias desenhadas por Timothy Truman, em que Hex enfrenta criaturas fantásticas como o falecido Wild Bill Hicock transformado em zombie pelo inquietante Doc “Cross” Williams. O sucesso desta nova versão de Hex, levou a que a dupla Timothy Truman e Joe Landsdale tenha sido igualmente escolhida para fazer reviver o Lone Ranger, um mito da cultura americana, que agora se vê a combater um demónio vindo do espaço que se faz passar por uma divindade azteca, ao lado do seu fiel companheiro Tonto. Esta peculiar mistura do Western com o fantástico está também presente na série Desperadoes, que Jeff Mariotte e John Cassaday criaram para a Image, em que um peculiar grupo de heróis, que inclui um detective da Pinkerton, um negro e uma prostituta enfrentam um serial killer com poderes sobrenaturais e um grupo de fantasmas que não se apercebeu do fim da Guerra da Secessão.
E, mesmo que a nova versão de Jonah Hex, de Gray e Palmiotti, cuja publicação se iniciou em 2005, tenha abolido o sobrenatural, ele continua presente nas diferentes histórias dos Desperadoes, em que Cassaday dá lugar a diversos desenhadores, de John Severin a Alberto Dose.
Também a série Preacher, de Garth Ennis e Steve Dillon, que conta a história de um pregador do Texas que parte à procura de Deus, acompanhado da namorada e de um vampiro irlandês, pode ser considerada como um Western moderno na linha do filme Vampires de Carpenter. E o próprio Garth Ennis é o primeiro a reconhecer o Western como uma das referências fundamentais no seu trabalho, não sendo pois de admirar que Jesse Custer, o personagem principal, tenha John Wayne como anjo da guarda e que o Saint of Killers, o Anjo Exterminador usado por Deus para os “trabalhos sujos”, seja um pistoleiro inspirado no personagem interpretado por Clint Eastwood no filme Imperdoável, a quem o desenhador Steve Dillon deu as feições de Lee Marvin. E os cenários míticos do Western são abundantemente usados em Preacher, começando pelo Monument Valey, onde o Saint of Killers enfrenta o exército americano, para terminar em El Alamo , onde tem lugar o combate final.
Provando a vitalidade do género, um dos grandes êxitos de vendas da Marvel foi a mini-série Blaze of Glory de John Ostrander e Leonardo Manco. Ostrander, que já tinha abordado o género em The Kents , uma série desenhada pelo inevitável Tim Truman, em que a saga da família de Superman se mistura com a lenda do Oeste americano, narrou em Blaze of Glory os últimos dias das lendas do Oeste da Marvel, como o Rawhide Kid, Kid Colt, Gunhawk e Ghost Rider, juntando-as num último e épico combate contra um bando de desperados contratados por um poderoso proprietário. Um Western crepuscular que a própria Marvel anunciou como o equivalente do filme Imperdoável se tivesse sido filmado por John Woo. A dupla de Blaze of Glory voltaria às planícies poeirentas do velho Oeste com Apache Skies, uma mini-série em que o Rawhide Kid vai vingar a morte do Apache Kid, contando com a ajuda de Rosa, a antiga namorada deste, cuja coragem e perícia com os colts fazem inveja a muitos homens.
Curiosamente, a versão entre o mítico e o realista que Ostrander traça de Johnny Bart, o Rawhide Kid, tem muito pouco a ver com o cowboy gay em que Ron Zimmerman o transforma em Slap Leather , a mini-série de 2003, em que o traço clássico do veterano John Severin está ao serviço de uma divertida história que antecipa em alguns anos o filme Brokeback Mountain.
Todas estas abordagens, das mais respeitosas, às mais revisionistas, são bem a prova de que, passados os tempos áureos de Hollywood e dos Western-spaguettis de Sergio Leone, mais do que nas telas do cinema, o mito do velho Oeste mantém-se bem vivo nas páginas de Banda Desenhada que continuam a ser (bem) feitas dos dois lados do Atlântico.
João Miguel Lameiras*
* Com um agradecimento especial a José Carlos Francisco, cujo convite para recuperar este texto (publicado originalmente na revista Selecções BD, em 2001) no blogue do Tex, me deu o pretexto ideal para o actualizar.
JOÃO MIGUEL LAMEIRAS
Copyright: © 2001 “Selecções BD nº 27″; João Miguel Lameiras
[1] Argumentista, crítico e divulgador de Banda Desenhada.
(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)
Não há dúvida de que esta nova e actualizada versão ficou um trabalho excelente, que dá um panorama completíssimo das transformações que a BD “western” sofreu nos últimos anos, acompanhando as novas tendências dos autores e do público – nem sempre benéficas, a meu ver, mas isso é outra história… Se eu fosse o Professor Marcello Rebello de Sousa (risos…), não hesitaria em dar nota 20 ao Lameiras por este trabalho.
Jorge Magalhães