O PERFECIONISTA – O TEX DE CLAUDIO NIZZI

Por Moreno Burattini*

Claudio Nizzi

Um artigo do crítico Andrea Sani, publicado no número 6 da revista Dime (fevereiro de 1994), analisava as histórias de Tex realizadas pela dupla Claudio Villa e Claudio Nizzi: o primeiro, herdeiro de Aurelio Galleppini, o outro de Giovanni Luigi Bonelli. Histórias que, segundo o analista, “podem colocar-se facilmente no topo da produção da banda desenhada contemporânea, acima de qualquer distinção entre banda desenhada popular e de autor”. A chegada de Nizzi ocorre dois anos antes da de Villa, mas os motivos que estiveram na base da entrada de ambos no mesmo período na equipa texiana foi a necessidade do editor em rodear-se de novos colaboradores, justificada quer pelos problemas de saúde de Giovanni Luigi Bonelli e de Aurelio Galleppini (devido ao natural envelhecimento daqueles que durante trinta anos personificaram o rosto resistente de Tex), quer para refrescar as características das histórias e dos desenhos.

Capitan Erik e Larry Yuma, de Claudio Nizzi

Claudio Nizzi, nascido em Setif (Argélia) em 1938, estreia-se como autor de banda desenhada em 1960, nas páginas do Vittorioso. Em 1969 inicia a sua colaboração com Il Giornalino, criando para as suas páginas personagens de grande sucesso como Larry Yuma e Capitan Erik, enquanto escreve Mino e Lia para Il Messaggero dei Ragazzi. Em 1980 abandona o seu emprego na Fiat e é contratado para editor das Edizioni Paoline, como responsável pelo sector da banda desenhada. Em 1981 cria Rosco & Sonny e, logo de seguida, Nicoletta. São também notáveis alguns argumentos que escreveu baseados nos clássicos da literatura para jovens. Em 1987, Nizzi transfere-se em definitivo para a Sergio Bonelli Editore, com quem já tinha colaborado no final de 1981, inicialmente com Mister No e, posteriormente, com Tex. Durante algum tempo, o trabalho de Nizzi para Águia da Noite manteve-se anónimo, até obter o merecido reconhecimento de “herdeiro” oficial de Giovanni Luigi Bonelli. Em 1988, Claudio Nizzi idealizou Nick Raider, a primeira série policial da editora de Milão.

Mister No e Nick Raider com aventuras escritas por Claudio Nizzi

Na edição nº 196 de TuttoTex, Sergio Bonelli escreveu: “O primeiro episódio escrito por Nizzi para a série Gigante de Tex intitulava-se ‘La Valanga d’acqua’, desenhado por Erio Nicolò, que se iniciou na página 53 do número 273 (apesar de, na realidade, o primeiro argumento que Claudio elaborou para nós, ‘Il Ritorno del Carnicero’, ter sido publicado em segundo). No que me toca, a escolha de Nizzi como sucessor do meu pai em Tex não nasceu casualmente: de facto, sempre fui um seu grande admirador desde a época onde, nas páginas de Il Giornalino, inventava tramas aventurosas para Larry Yuma”. Por seu lado, Nizzi conta numa entrevista: “No início da colaboração com Tex fui avisado que ‘por um certo período de tempo’ não poderia assinar as minhas histórias. O receio de Sergio Bonelli era que os leitores, habituados desde sempre ao fatídico ‘Tex by G.L. Bonelli’, pudessem reagir negativamente. A preocupação era legítima. No entanto, quando o ‘certo período de tempo’ começou a durar muito, o facto de não assinar o meu trabalho pesava-me sobremaneira. De certa forma, entre mim e Sergio Bonelli começou um braço de ferro. Até que, finalmente, depois de uma abstinência de cinco anos, em 1988 surgiu a minha assinatura no Texone de Buzzelli e, a partir de dezembro do mesmo ano, também na série normal. Por sorte, a minha assinatura acabou por não afugentar ninguém”. 

Edições de Tex com a assinatura de Claudio Nizzi

Um dos traços distintivos dos argumentos de Claudio Nizzi é a capacidade em continuar a grande tradição dos textos de Giovanni Luigi Bonelli, através de um esquema narrativo moderno, colocando em prática os ensinamentos de maneira funcional e eficaz. “No início, os meus argumentos eram constantemente supervisionados – refere Nizzi em Dime Press nº 2 – seja porque eu escrevi poucos (e sem pressa), seja porque precisava de estar seguro que me mantinha dentro da ortodoxia mais absoluta. Naquela altura ainda éramos três a escrever para Tex: G.L. Bonelli, Sergio e eu. De seguida, o pai Bonelli refreou, depois também Sergio, e eu encontrei-me a escrever sozinho dez histórias ao mesmo tempo. Hoje, quer seja pela pressão da urgência, quer seja porque entretanto ganhei uma certa confiança, o controlo diluiu-se um pouco, mas a ‘lavagem cerebral’ inicial ainda funciona (demais!) e dou comigo a auto-censurar-me devido ao facto de não sair dos trilhos tradicionais. (…) A linguagem típica de Tex é uma das grandes invenções de G.L. Bonelli, o meu segredo está no facto de a ter estudado, tal como estudei a psicologia da personagem e o ritmo da narração. O fascínio intemporal de Tex deve-se ao respeito por estas características e por isso sinto-me também obrigado a respeitá-las. Até porque, se não obedecermos, Tex torna-se numa outra coisa”.

Claudio Nizzi e Mauro Boselli

Ao contrário de Nolitta, que pôde deixar a sua originalidade brilhar, o Nizzi do primeiro período texiano consegue de forma magistral camuflar-se, tornando como seu o próprio estilo do criador da personagem, arejando-o com o seu toque pessoal. Esta camuflagem de Nizzi não induz em erro. É fruto do seu grande profissionalismo e não de uma servil imitação. Narrador poderoso e com grande experiência, hábil nas tramas do feuilleuton e ainda mais em misturar o thriller com o western, Nizzi não é seguramente o clone de alguém. De qualquer modo, a sua personalidade acabou por se manifestar evidente e, à posteriori, pôde ser facilmente identificada a brilhar mesmo nas histórias que na época surgiram não assinadas. Depois do seu nome ter começado a surgir, também a sua técnica de escrita tornou-se mais pessoal e reconhecível, embora sempre na esteira da tradição. Já na incontornável aventura desenhada por Ticci, onde através de flashback se conta o primeiro encontro entre Tex e Jack Tigre (Furia Rossa, Tex nº 385 e seguintes, 1992), o ritmo da narração é veloz, as didascálias são suprimidas ou reduzidas ao mínimo necessário, os estados de alma são identificados pelo jogo de olhares e pela actuação das personagens, em resumo, o “mais acérrimo defensor da ortodoxia texiana”, como o próprio Nizzi se definiu, acaba por conduzir a série até módulos expressivos de grande (mas inteligente) modernidade.

Uma história como La Ballata di Zeke Colter, publicada no Almanacco del West 1994, escrita propositadamente para os desenhos de Renzo Calegari, é outro exemplo de uma excelente aventura escrita por um Nizzi decididamente mais solto do que é habitual dos laços da ortodoxia, uma vez que se trata de um álbum fora da série regular. “Queira-se ou não, as personagens refletem as características dos seus autores, e eu sou sem dúvida mais pacato, menos exuberante, menos instintivo e menos otimista que G.L. Bonelli – refere o autor – e, fatalmente, daqui resulta que também o meu Tex seja assim. Esforcei-me por imitar o estilo de narração de G.L. Bonelli e em respeitar a espessura psicológica das ‘suas’ personagens, mas como eu não sou assim, as diferenças saltam à evidência. (…) Se há algo que possa ser censurado é que o meu Tex é menos arrogante do que era habitual. Tex entrava num saloon, reparava em alguém que o olhava malevolamente e agredia-o logo de seguida. (…) Eu procuro estimular mais os seus comportamentos e as suas ações. Por outro lado, mudaram os tempos e os desenhadores. E isto tem muita influência. Naquela altura, quando um adversário acabava no chão, desenhava-se por cima da sua cabeça um conjunto de pássaros a chilrear. Consegue-se imaginar uma cena do género, com o desenho detalhado e expressivo de Claudio Villa?”.

La ballata di Zeke Colter; Argumento de Claudio Nizzi

Em 2012, Nizzi diminui a sua produção de argumentista, quase até parar de escrever, mas sem nunca ter cessado por completo. No espaço de trinta anos (1982-2012) e de mais de trinta mil páginas, houve inevitavelmente altos e baixos, mas as obras primas são tantas que acabam precisamente por se destacar. Respondendo às questões colocadas por Roberto Guarino no livro entrevista “Tex Secondo Nizzi”, o autor conta muito de si, analisando uma a uma todas as histórias que escreveu para Tex, demonstrando uma enorme lucidez sobre o seu trabalho. Talvez fosse útil a publicação de outro livro onde, com o mesmo rigor, o entrevistador insistisse com o autor sobre o resto da sua infindável produção. Aguardando, portanto, por uma análise de Larry Yuma ou de Nicoletta, neste livro transparece, desde já, o talento demonstrado por Nizzi em colocar-se ao serviço, quer do leitor, quer da personagem, quer do desenhador. Do leitor, porque a variedade de personagens criadas por si para alvos muito diversos, testemunha a sua capacidade em saber comunicar com os mais jovens e com os adultos, com os homens e com as mulheres, assim como saber fazer rir, tal como comover e emocionar. Da personagem, porque apesar de ter tomado as rédeas de characters não seus, o autor conseguiu respeitar as suas características. Do desenhador, porque Nizzi, como muitas vezes sublinhou, ajusta os seus argumentos para valorizar o traço de quem os ilustrará, procurando oferecer ao desenhador os cenários, as situações e as atmosferas mais indicadas para si.

Claudio Nizzi e o livro ‘Tex Secondo Nizzi’

Em resumo, um grande profissional. No entanto, por vezes, quando utilizamos este termo queremos apenas referir que alguém sabe o que está a fazer. Mas não basta dominar a técnica para ser necessariamente o melhor comunicador de emoções. As obras primas texianas (como “Fuga da Anderville”, a história sobre o passado de Jack Tigre, a primeira aventura com o Tigre Negro, aquela onde Kit Willer perde a memória, o Texone de Magnus, assim como tantas outras), demonstram, por sua vez, como Nizzi também sabe tocar o coração e fazer arrepiar a pele. Em suma, qualquer argumentista tem muito a aprender com ele.

* Texto de Moreno Burattini publicado originalmente na Revista nº 8 do Clube Tex Portugal, de Junho de 2018.

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5 Comentários

  1. Fiquei feliz em ler o Tex Anual 24, com roteiro do Nizzi, gostei muito da história.
    Será que tem outras inéditas para serem publicadas no Brasil?
    Devido aos 85 anos Nizzi deve se aposentar, mas, é preocupante não ter substituto à altura.

  2. Conheci e aprendi a gostar de Tex na “voz” de Claudio Nizzi, ainda que meus escritores favoritos da série sejam o saudoso Antonio Segura e Tito Faraci.

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