Morreu Carlo Ambrosini (desenhou o Tex Gigante “O Preço da Vingança”)

Carlo Ambrosini (15 de Abril de 1954 – 1 de Novembro de 2023)

(15 de Abril de 1954 – 1 de Novembro de 2023)

Esta é uma das notícias que nunca queremos dar, mas que a lei da vida a isso nos obriga. Carlo Ambrosini grande autor do fumetto italiano, faleceu nesta quarta-feira, dia 1 de Novembro, aos 69 anos, deixando a banda desenhada mais pobre.

O Tex Gigante desenhado por Carlo Ambrosini

Por Mário João Marques

Carlo Ambrosini nasceu em 1954 em Azzano Mella, perto de Brescia, na Lombardia.Oriundo de uma família de operários citadinos, cedo denotou uma evidente inclinação para o desenho, o que o levou a seguir uma formação artística, que se concluiu com um diploma em pintura na Academia de Belas Artes de Brera. Autor completo, Ambrosini cresceu artisticamente num período em que experimentar era uma obrigação, numa época cujas referências eram nomes como Guido Buzzelli, Sergio Toppi, Guido Crepax ou Dino Battaglia, o que o vai influenciar na criação de trabalhos pessoais que não renegam, em si mesmo, aquele desejo relaxante e de diversão que muitos leitores procuram na banda desenhada. Basta ter em atenção o mercenário Nico Macchia, uma série criada em 1984, cujas aventuras são ambientadas numa época medieval, inquietante onde exorcismos e seres fantásticos, misturam-se com uma ambientação histórica detalhada.

A sua carreira na banda desenhada teve início em 1976, para a Editoriale Dardo, posteriormente também para as editoras como Corno, Ediperiodici e Mondadori, nesta desenhando alguns episódios de Storia d’Italia a Fumetti e Storia di Roma a Fumetti, ambas de Enzo Biagi. A partir de 1980, trabalha para a editora Cepim, desenhando várias aventuras de Ken Parker. Entra na Sergio Bonelli Editore em 1987 com Dylan Dog e a aventura Canale 666, escrita por Tiziano Sclavi, série onde terá a oportunidade de desenvolver horizontes integrantes e inexplorados tão a seu gosto, pelo que as suas aventuras, que posteriormente também terá a oportunidade de escrever para a série, são disso reflexo, com ampla liberdade para desenvolver temas atuais numa perspetiva mais onírica e reflexiva.

De entre os seus muitos trabalhos produzidos para o Detetive do Pesadelo, merece destaque para o público português O Imenso Adeus (Il lungo addio),que a editora A Seita teve ocasião de publicar. Considerada como uma das mais belas histórias de sempre de Dylan Dog, O Imenso Adeus é também uma das mais complexas que Tiziano Sclavi escreveu, muito por força do seu profundo onirismo. Dylan recebe uma visita inesperada em Craven Road,uma antiga paixão de adolescência, o que o leva a viajar até à localidade costeira de Moonlight, acabando por se cruzar com memórias do seu passado e recordar uma paixão de juventude nunca confessada. Uma viagem aos meandros da memória, servida pelo grafismo poético e onírico de Carlo Ambrosini.

Carlo Ambrosini

No final dos anos 1990,a Sergio Bonelli Editore atravessava um período de renovação e estava pronta a lançar novas séries e personagens. Surgiram assim Brendon, Julia, Dampyr, Gea e,em setembro de 1997, Napoleone, um projeto muito pessoal de Carlo Ambrosini. Inspirado em Marlon Brando, Napoleone di Carlo nasceu na Etiópia e é filho de pai italiano e mãe francesa que lhe deu uma educação ocidental. Proprietário do hotel Astrid em Genebra, Napoleone é o oposto do homem de ação, preferindo a reflexão e a análise, duvidando antes de ter certezas, o que o torna racional e lúcido. Deambulando entre o policial e o noir, entre Hitchcock e Chandler, o pano de fundo é, no entanto, a profunda anomalia que grassa na imaginação de Napoleone, onde interagem Lucrezia (uma espécie de Sininho de Peter Pan), Caliendo (um mordomo pedante) e Scintillone (intolerante com regras e disciplina), três bizarras criaturas visíveis apenas para Napoleone e que com ele convivem quotidianamente, confirmando a existência de um mundo metafísico que acaba por intervir e subverter o julgamento das situações. Uma das melhores séries da Sergio Bonelli pela sua qualidade, originalidade e aprofundada análise.

Em 2005, Ambrosini  desenhou o Tex Albo Speciale 19, Il Prezzo della vendetta (O Preço da Vingança),  uma aventura escrita por Claudio Nizzi onde Tex, Carson, Kit e Tigre confrontam-se com a hostilidade entre um grupo de índios Cheyennes e um rancho de colonos, devido ao facto destes terem adotado em tempos uma criança índia sobrevivente de um massacre efetuado à sua aldeia. Nesta sua participação em Tex, o desenho de Ambrosini vai-se afirmando ao longo das páginas da aventura, através de um traço denso e grosso, mas seguramente eficaz. Pleno de bons planos e rigoroso nas cenas de ação, este foi um trabalho árduo para Ambrosini, mas também do agrado do autor, já que o western sempre foi o território que mais o apaixonou na sua infância e adolescência. Em Tex, Ambrosini trabalhou numa personagem que não é sua, assim como num argumento que não foi escrito por si. Mas o facto de poder desenhar todo o ambiente do western e as suas indumentárias, deixaram um enorme prazer no autor, uma vez que, apesar de Tex ser a personagem clássica por excelência, oposta aos trabalhos mais experimentais de Ambrosini, a tarefa representou uma certa cedência do autor ao gosto que nutre pela prática do desenho.

Com o final de Napoleone, sempre foi vontade de Ambrosini continuar a explorar projetos pessoais. É assim que surge Jan Dix (inicialmente Jan Pollock, em homenagem ao pintor abstrato Jackson Pollock), uma série centrada no mundo da arte. inspirado em Jeremy Irons, Dix é uma espécie de investigador, não no sentido clássico do termo,  já que em vez de se ocupar de roubos e homicídios, Dix trabalha em aquisições, recuperações e buscas de obras de arte, sejam estas pinturas, esculturas ou outros objetos, uma espécie de consultor de arte que trabalha para 0 Rijksmuseum de Amesterdão. A arte é o elemento central na série, tal como para Dix, uma vez que além de providenciar 0 seu sustento, esta atividade permite-lhe conhecer e aprofundar a ação humana e o seu desenvolvimento contraditório. Quando comparada com Napoleone, Dix assume-se como uma personagem mais positiva, até porque os espaços e ambientes onde 0 especialista deambula são mais claros, belos, ritmados e harmoniosos.

Destaque ainda para os trabalhos de Ambrosini publicados em Le Storie, o primeiro dos quais, No Smoking, traz-nos uma trama escrita por Pasquale Ruju, ambientada em Chicago em 1936,em plena época turbulenta de gangsters. O autor assinou argumento e desenhos de Cuore di Lupo, história em que Jeff Cardiff, um jovem repórter de origem índia, procura a verdade e justiça sobre o assassinato de um grupo de operários quase todos índios. Finalmente, realce ainda para Neogenesi, história escrita por Ambrosini e desenhos de Giulio Camagni, cuja ação se desenrola num futuro próximo,quando a humanidade encontra-se atacada por uma epidemia que desagrega uma civilização onde grassa o caos e a violência.

Neste seu rico percurso, Ambrosini nunca procurou revoluções estilísticas, limitando-se a acompanhar o rigor de uma narrativa que induza o leitor a questionar-se, a aprofundar os seus conhecimentos para além do que é palpável. Um percurso, no fundo, que possa estar sempre em sintonia com a liberdade proporcionada pela sua veia criativa. E quando perguntamos ao autor em que pele se sente melhor, a de escritor ou a de desenhador, a resposta de Ambrosini é certeira quando sublinha que também escrevemos quando desenhamos, assim como também desenhamos enquanto escrevemos. A palavra traz-nos a imagem e a imagem leva-nos à palavra, até porque escrever e desenhar seguem o mesmo objetivo, o de representar uma ideia, e todos os meios são bons para a tentar transmitir.

Carlo Ambrosini na companhia de José Carlos Francisco e Mário João Marques, no Festival de Beja; 2021

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)

2 Comentários

  1. Que notícia tão triste! Estive também presente em Beja 2021, com esse grande desenhador Carlo Ambrosini, a sua simpatia e mestria de excelência. Os meus sentimentos a toda a família e amigos

  2. Ótima biografia, Mário .
    Não conheci, mas, digo que foi grande. A propósito, ontem em live, citei seu passamento e disse-lhe: Carlo tinha um grande defeito: ele escrevia e desenhava. Agora, descanse em paz.

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