Por Mário João Marques*
O Danúbio que aqui nos traz não é o célebre rio que atravessa o continente europeu de oeste a leste, classificado pela Unesco como Património Natural Mundial, e que inspirou uma das mais belas valsas vienenses, Danúbio Azul, composta por Johann Strauss II, em 1867. O Danubio (sem o acento agudo) de quem falamos e que se apresenta nas próximas linhas é um desenhador italiano, nascido em Caltagirone (Catânia) em 1967, precisamente um século depois da célebre valsa. Giacomo Danubio, nome pelo qual é conhecido no meio fumettistico, desenha Tex desde 2011, como veremos mais abaixo, e a ele se devem as capas deste número da revista, em cuja génese esteve o nosso querido associado, mas sobretudo amigo, Francesco Micoli.
Tudo começou em Beja, durante o Festival Internacional de Banda Desenhada de 2018, quando a organização convidou o também desenhador Rossano Rossi a estar presente, o qual se fez acompanhar dos seus amigos Francesco Micoli e Aldo Carlo Valdambrini. Assim, foi em terras alentejanas que pude conhecer pessoalmente e conviver com o trio italiano, privilégio que se estendeu até Lisboa, conde tive o grato prazer de passear e mostrar um pouco da beleza da capital portuguesa. Meses mais tarde, fui surpreendido com um envelope, enviado pelo Francesco, que continha vários desenhos feitos pelo seu amigo Giacomo Danubio, devidamente personalizados para mim, para o José Carlos Francisco, Carlos Moreira, Orlando Silva e António Lança-Guerreiro, os texianos que tiveram oportunidade de estar em Beja. Uma forma de agradecimento do Francesco que a todos, naturalmente, sensibilizou, e que acabou por não se resumir a este gesto, já que também foi dele a iniciativa de convidar Giacomo Danubio para desenhar as capas da revista, desafio prontamente aceite pelo autor, que apenas precisou de saber qual o prazo de entrega.
Apesar de ter nascido na Sicília, motivos profissionais familiares levam-no a mudar-se muito cedo para Milão, tinha o futuro desenhador apenas um ano de idade. Precoce foi também a sua paixão pelos lápis: “Digamos que eu já gostava de desenhar desde a infância, desde a escola primária até ao ensino secundário, os meus professores felicitavam os meus pais pela minha habilidade no desenho. Tendo começado muito cedo a ler “fumetti”, no secundário eu já criava as minhas próprias personagens, que depois apresentei na “Scuola del Fumetto” de Milão para poder inscrever-me após terminar o ensino secundário”.
O curso durou três anos, um período de intensa aprendizagem que o preparou para os desafios do futuro. Danubio começou a trabalhar aos 16 anos, desenhando a lápis algumas histórias para Luigi Merati, “um grande e extraordinário profissional, com quem trabalhei muitos anos. Comecei a desenhar (sempre a lápis) histórias de guerra (Collana Eroica e SuperEroica), histórias eróticas (Ediperiodici, Edifumetto, etc), e tantas outras que proliferavam nos anos oitenta, numa época em que abriam e fechavam editoras. Tiramolla, I Fantastici 3 Supermen, La Boccaccia, Il Paninaro e tantas outras que já não me recordo. Enquanto isso, esporadicamente criava storyboards para várias agências de publicidade, desenhando para casas de prestigio como Fininvest, Omnitel, Ferrari, Freddy, Peugeot e tantas outras. No início dos anos noventa fui recrutado para a equipa de desenhadores de “Demon Hunter” das edições Xenia. Éramos todos jovens desenhadores que, sob a direção de Giuseppe Calzonari (reitor e fundador da “Scuola del Fumetto” de Milão, a primeira em Itália), deveríamos produzir uma história estilo “Bonelliano” de 95 pranchas em pouco menos de dois meses. Uma tarefa árdua que conseguimos levar a bom porto, no início comigo a passar a tinta os esboços de dois desenhadores Alfio Buscaglia e Simona Denna, de modo a uniformizar o estilo. Passei a tinta os esboços de outros desenhadores, no entanto, alguns anos mais tarde as edições Xenia infelizmente mudaram de Direção e, excetuando alguns, tivemos que abandonar a casa, mudando quase toda a equipa. Poucos meses depois as vendas caíram drasticamente e a editora cancelou todo o seu catálogo de fumetto”.
Foram anos de intensa atividade, que permitiram aperfeiçoar estilo e técnica, assim como desenhar uma plenitude de géneros e ambientes. “Aquele a que provavelmente mais me afeiçoei foi “Death World” escrito por Gino Udina (o mesmo criador de “Demon Hunter”) para a SF Edizioni (da mesma “Scuola del Fumetto” de Giuseppe Calzonari). Era um horror-western com zombies e personagens western num futuro pós-nuclear. Estava dividido em episódios, com um número zero e algumas capas, e eu desenhei cerca de 150 pranchas. Fiz tudo, esboços e arte final. Deu-me muito prazer, uma vez que, desde miúdo, sempre gostei de desenhar o western”. Adoro desenhar cavalos, pistolas, ambientes naturais, personagens que disparam e batem uma na outra, com os bons e os vilões perfeitamente distintos e separados. Adoro o western, porque acho que exalta tudo isso. Infelizmente, esta série, apesar de ter sido totalmente produzida por Giuseppe Calzonari, nunca foi publicada”.
Esta paixão pelo western incentiva o desenhador a mostrar a Mauro Boselli alguns estudos de Tex, corria o ano de 2006. “Eram pranchas totalmente inventadas por mim, com as várias situações que normalmente encontramos nas suas aventuras: a diligência, os índios, a algazarra no saloon, as armas, os cavalos e o Grande Canyon. Ele gostou e submeteu-as ao grande Sergio Bonelli. Também ele as apreciou, mas como não podiam entregar uma história de Tex a um estreante desconhecido, propuseram-me que eu fizesse provas, primeiro para Zagor e depois para Magico Vento. Naturalmente que as fiz, uma vez que eu estava pronto a fazê-las para qualquer personagem da Bonelli para poder começar a trabalhar para eles. Algum tempo depois pediram-me para fazer quatro pranchas de estudo para Tex. Depois de as desenhar, graças a Deus Sergio Bonelli decidiu entregar-me uma história de Tex (La città del male), publicada no Almanacco del West 2011, com argumento de Mauro Boselli, a quem não me canso de agradecer por ter sempre acreditado em mim e sobretudo pelo tempo que dedicou a ensinar-me como se desenha Tex, o que ainda hoje acontece, pois estamos sempre numa aprendizagem contínua. Estou muito grato a Sergio Bonelli e a Mauro Boselli por terem acreditado em mim e a Deus que me permitiu conhecê-los”.
E como acontece com qualquer desenhador na hora de enfrentar o desafio de trabalhar para Tex, a maior dificuldade reside na composição do ranger, algo que Giacomo Danubio também reconhece, não se coibindo de agradecer a ajuda dada pelo curador da série: “Graças a Boselli consegui enfrentar o desafio e superar o pavor que uma personagem tão importante pode incutir a quem o desenha. A semelhança do rosto de Tex e o dos seus pards, apesar de cada desenhador fazer ao seu jeito, as proporções das armas, dos cavalos e tudo aquilo que faz parte do Oeste, desde as panorâmicas às roupas. Eu acho que o ritmo é também muito importante, devemos prestar atenção a este aspeto, pois ele é determinado pela forma como cada vinheta é apresentada. Claro que, como em qualquer boa história, deve ser compreensível o que acontece já por si só através do desenho”.
No desenho de Giacomo Danubio encontramos um pouco de tudo. Desde uma forte influência de Villa no seu geral, a uma diversidade de referências, como Monti, Civitelli, Seijas ou Piccinelli, e é o próprio autor que sublinha não ter um estilo ainda tão maduro que possa defini-lo como “o meu estilo”. “Há certamente algo meu, a minha personalidade está lá, porque não podemos pura e simplesmente afastar-nos daquilo que somos. De qualquer forma, tentei usar o meu modo de desenhar, aproximando-o de Tex, até ao estilo de todos os grandes desenhadores do ranger. Apesar dos meus 52 anos, acho que estou apenas no início. O grande problema de qualquer desenhador que se aproxima de Tex é que não deve inventar nada, Tex é tal como é, com cânones que não se podem transgredir!” Com tantas referências, normalmente seríamos levados a concluir que o resultado final denotasse alguma falta de personalidade, mas a verdade é que Giacomo Danubio consegue misturar com sucesso as várias referências e o resultado acaba por ser limpo e legível. E legibilidade é talvez o termo que melhor caracteriza o traço do autor, detalhado, mas simples. “Acho que o meu Tex é claramente clássico, mas este meu classicismo ajudou-me a atrair a atenção da Casa Bonelli. Mas agora é preciso ter cuidado para eu não me afastar demasiado do Tex clássico, que acima de tudo seja sempre ele, aquele que os leitores tanto apreciam. Até me arrepio só de pensar que isso possa acontecer! Que Deus me ajude!”
Apesar das dificuldades, a carreira do desenhador vai melhorando lenta e constantemente. Danubio encontra-se atualmente a trabalhar para Tex “… e para um desenhador que ama desenhar o Oeste não existe personagem mais carismática e duradoura. Por isso, nesta altura é para mim importante estar à altura do desafio e poder continuar a desenhá-lo, melhorando harmoniosamente entre texto e desenho, tentando desenhar o melhor possível de modo a transportar o leitor para a atmosfera western, para poder viver momentos de pura aventura ao lado do amigo mais leal que possa ter, como é Tex. Tal como fizeram os seus criadores GianLuigi Bonelli e Aurelio Galleppini, que conseguiram manter vivo durante mais de setenta anos aquele espírito de aventura que todos nós temos. Tenho a certeza que todos os autores a quem foi entregue o legado de Bonelli e Galleppini, todos os argumentistas, com Mauro Boselli à cabeça, mas também todos os desenhadores, desde Ticci, Villa, Civitelli e tantos outros, estarão preparados para continuar a fazer sonhar. Peço desculpa a todos os que não mencionei, são realmente tantos e tão bons que espero que algum que possa ter esquecido não venha bater-me! Para mim, Tex é aquilo que todos gostaríamos de ser. Um homem de palavra, o amigo que todos gostaríamos de ter ao nosso lado, defende-nos ao soco, está junto a nós a beber cerveja e a saborear uns bons bifes com batatas, é o pai que todos os filhos gostariam de ter. Tex é aquele que chora de raiva junto ao túmulo de Lilyth. Para mim, GianLuigi Bonelli foi um mestre ao criar Tex, que nunca mais olhou com os mesmos olhos para uma mulher depois do desaparecimento de Lilyth. Adoro-o por isto. Tex é Tex e basta! É como uma rocha que te abraça e protege, mas se vais contra, ela esmaga-te. Grande Tex! Honestamente, não há nada que me desagrade em Tex. Talvez quando ele enfrentar sozinho mil adversários, porque nessa altura eu terei que desenhar essas… mil personagens!”. Algo que Danubio já sentiu, se considerarmos a extensa manada galopante que nos é apresentada na aventura “Cowboys”, publicada em 2017, no Color Tex 11. Nela, o leitor não pode deixar de estar em permanente atenção ou baixar a guarda por um segundo para contemplar o espetáculo paisagístico magnificamente representado pelo traço de Danubio. O seu desenho de tão belo e expressivo faz-nos mergulhar completamente na história, tanto que acabamos por ouvir o som das manadas, o rugido dos cavalos, o galope das centenas de pernas ou o bafo dos animais. Mas também o crepitar da chuva incessante ou o cansaço dos homens.
Para que esta interpretação tão fiel dos acontecimentos possa ser possível, é muito importante a forma como o desenhador entende o roteiro que lhe é entregue e a técnica que utiliza para transformar em esboços e posteriormente em desenhos as instruções e as indicações recebidas. “Começo naturalmente por estudar o roteiro, depois passo para os esboços, primeiro de uma forma mais sintética de modo a que tenham sentido depois de visualizados, em seguida aperfeiçoo-os para que possam ser submetidos ao controle editorial. Se tudo estiver bem e não houver alterações a fazer, porque se as houver é nesta fase que as faço, passo tudo a tinta, esperando que, quando terminar a história, não tenha que fazer outras correções, ou pelo menos que sejam poucas. Assim como se revela fundamental o papel do roteirista. Tendo já trabalhado com Tito Faraci, Pasquale Ruju e Mauro Boselli, Giacomo Danubio não se coíbe de salientar a especial relação com o curador de Tex, uma vez que “trabalhar numa história de Mauro Boselli é exaltante, ele dá-me muitas indicações, e como é o curador e supervisor torna-se muito difícil haver enganos na interpretação do roteiro. Também me dá indicações do que pretende, o que me ajuda a variar os enquadramentos corretamente. No entanto, eu também me dou bem com outros autores, são todos muito bons e ajudam-me com todas as indicações daquilo que pretendem, ou seja, eu só tenho que dar o meu melhor, e desenhar Tex não é uma tarefa fácil”. Por isso, há que trabalhar arduamente, “… desenhar, desenhar e desenhar… desenho todos os dias, em média das 8 da manhã ao Meio-dia, sete dias por semana. Aos sábados e domingos trabalho apenas cerca de oito horas, aproveito para descansar mais. Quando perco horas de trabalho devido a afazeres familiares ou outro motivo qualquer, tenho que recuperar, chegando a desenhar durante 14, 16 horas consecutivas, ou mesmo um dia inteiro. Contudo, o meu dia ideal é quando consigo desenhar desde as 4 da manhã até às 19 ou 20 da tarde. Para mim, este é o dia “perfeito”. Normalmente, levo dois dias para desenhar uma prancha completa, desde que não surja algum problema”.
E quando, para finalizar, questionamos o autor sobre os seus projetos imediatos, nada de mais explícito e sincero: “entregar as pranchas da história que estou a desenhar logo que possível. Naturalmente continuar sempre a desenhar Tex!”. E antes de terminar, gostaria de abraçar o meu amigo Francesco Micoli que tornou possível este encontro. Obrigado Francesco Pard Micoli! Um abraço caloroso a todos os texianos! Parabéns meus amigos e um abração!!!”
Obrigado nós, que tivemos o privilégio de poder contar com a colaboração de mais um valor em ascensão no firmamento texiano. Obrigado Giacomo! Obrigado Francesco, que tornaste possível tudo isto, mas também pelas palavras com que sublinhas a tua relação com o teu irmão Giacomo: “o seu estilo suave e quente parece envolver-te como um cobertor numa noite fria e escura. Observei-o em silêncio no seu estúdio, enquanto traçava com o seu lápis as imagens, as dimensões, as perspetivas daquilo que pretende criar, depois mergulha os seus pincéis na tinta e com movimentos lentos, mas seguros, esculpe o papel, que ganha vida e parece elevar-se a uma dimensão real. A precisão que aplica ao traço é a mesma que Tex exprime com o seu revólver e os seus punhos, perfeita e sem hesitações, direta ao centro e o problema está resolvido! Giacomo é um pard em quem se pode confiar, podemos fechar os olhos e repousar, ele cuidará de ti e por isto eu escolhi Giacomo como irmão!”.
* Texto de Mário João Marques publicado originalmente na Revista nº 10 do Clube Tex Portugal, de Junho de 2019.
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