Por Célio Soares (autor do blogue Distração Planejada)
Há um plot que se repete com certa constância nas histórias de aventura, suspense e terror. Os protagonistas saem de suas zonas de atuação em uma missão ou simples viagem de férias e chegam a terras desconhecidas onde, se não são recebidos com ríspida e franca hostilidade, detectam uma simpatia cínica, uma espécie de egrégora opressora, sufocante, que aos poucos desvela uma ameaça mortal contra qualquer um vindo de fora.
No cinema, esse tipo de argumento foi desenvolvido de diversas formas, misturando vários gêneros. Em Dagon, (2001), filme de Stuart Gordon baseado em obra de H.P. Lovecraft, turistas vão parar em uma ilha espanhola onde, a princípio, são auxiliados pelo Padre, mas depois se percebem envoltos por uma seita de híbridos marinhos adoradores de uma besta das profundezas do mar.
Simon Pegg, na comédia Chumbo Grosso (Hot Fuzz, 2007), é um policial metropolitano deslocado para uma pequena vila inglesa onde os habitantes parecem simpáticos e inocentes até demais, mas há algo de podre se escondendo sob o sol. O Homem de Palha (The Wicker Man, 1973) também lança mão do enredo do policial em missão longe de casa, desta vez tentando desvendar o desaparecimento de uma garota. A investigação o leva a uma ilha na Escócia na qual os habitantes levam um estilo de vida explicitamente pagão, causando um choque de costumes e tradições, especialmente religiosas.
O que todas essas histórias parecem ter em comum é a existência de uma comunidade que funciona à parte do resto da nação, sob leis e tradições próprias. Como psicopatas e outros desajustados sociais, têm de manter em segredo seu estilo de vida, sendo hostil a qualquer um que venha de fora. Tais comunidades podem existir, invisíveis, até dentro de grandes cidades, como o condomínio mostrado em 1BR: O Apartamento (1BR, 2019).
O ser humano, vivendo sob a opressão do medo, se torna arredio, avesso ao novo. Foi contra a entrada de novidades que os habitantes de A Vila (The Village, 2004) de M. Night Shyamalan se isolaram. Já os moradores da ilha de Summerisle no já citado O Homem de Palha, sabem que o mundo exterior não comunga da mesma crença pagã que eles, por isso devem ser mantidos à distância. A vila de Dagon, no filme de Gordon, é um local a ser evitado por aqueles que não estão dispostos a serem sacrificados ou transformados em honra ao deus aquático das profundezas.
Com os personagens bonellianos, esse tipo de argumento também costuma render ótimas histórias. Tex, Zagor, Martin Mystère e Dylan Dog volta e meia se encontram em um vilarejo ou cidade obscura, onde os moradores os temem, odeiam ou ambos.
Na história Os Filhos da Noite (republicada mais recentemente como A 13ª Múmia em Tex em cores n° 30, Ed. Mythos) Tex Willer e Kit Carson se veem em Huerta, um paupérrimo vilarejo na fronteira mexicana onde gringos morrem misteriosamente. Logo que chegam ao lugar, já sentem a hostilidade dos habitantes.
Americanos não são bem-vindos e os poucos que restavam foram mortos ou estão de saída, como o barman do único saloon do lugar, um estabelecimento completamente vazio. Toda a população se mostra avessa, mas na realidade estão aterrorizados por uma espécie de seita misteriosa.
Em Os Espíritos do Deserto (Tex mensal nº 237, Ed. Globo), a dupla de rangers se vê, mais uma vez, em outra cidadezinha no meio do nada em terras mexicanas em uma missão de resgate a pedido do bruxo Morisco. Em Riito, pessoas caem mortas repentinamente, vítimas do que chamam de “morte silenciosa”.
No deserto próximo, um homem pode virar um esqueleto apenas em questão de horas, comentam os moradores. Hostilidade e medo, barmen que se recusam a fornecer bebidas, um assassino oculto nas sombras e nenhuma chance de hospedagem ou até de um copo de água para estrangeiros de passagem por Riito.
Mais uma vez em terras além da fronteira mexicana, em O Vale Maldito (Tex mensal n° 302, Ed. Globo) Willer e Montales se veem isolados em um vilarejo no qual um culto de origem asteca dominou corações e mentes, levando a uma luta pela vida em uma das mais longas aventuras texianas já produzidas. A receptividade de uma gente simples dá lugar à selvageria primitiva despertada por um ritual organizado por uma espécie de divindade.
Ao investigar o desaparecimento de índias da tribo Zuni, Tex e Carson chegam em Quemado, uma vila que ostenta um sinistro galpão abandonado em sua periferia. Os habitantes aparentam ser gente comum, apesar de mais ávidos por dinheiro que o normal. Já o padre local parece um tipo bastante estranho. A cordialidade de todos soa falsa, desconfiada. A Marca de Satã (Tex Edição Histórica nº 120, Ed. Mythos) apresenta como antagonista um culto satânico que pratica rituais de sacrifício.
Zagor, talvez o mais viajante do panteão bonelliano, também já chegou em ambientes tenebrosos onde sua presença era indesejada por todos. Em O Templo do Sacrifício (Zagor Anual n°2, Ed. Record), o Espírito com a Machadinha e Chico procuram, a pedido de um Coronel do Exército americano, seu filho e dois amigos que desapareceram há dois meses. A busca leva a dupla à cidadezinha de Summerville, onde são recebidos rispidamente.
Após alguns entreveros com os moradores, Zagor e seu fiel amigo se deparam com uma vila com toques britânicos, escondida no meio de uma floresta. Em Nova Salem os habitantes são liderados por um sacerdote que responde a uma espécie de demônio.
Em O Terror do Mar (Zagor n° 11, Ed. Mythos), Zagor e Chico chegam a Port Whale, um local descrito por Lovecraft, uma vila onde os habitantes são transformados em criaturas anfíbias e adoram a um deus peixe. A taberna, chamada de “Os Sete Pecados Capitais”, onde os heroicos viajantes param para refazer suas forças parece hospitaleira e confortável, mas o clima é quebrado com a chegada de estranhos clientes que cheiram a peixe podre. Envolta por um clima de tensão total, a história desemboca em uma corrida desesperada pelas ruas da cidade perseguidos por figuras encapuzadas.
Quando a tripulação do Golden Baby pede ajuda, a dupla de defensores de Darkwood não hesita em partir para aventuras além-mar. O Suplício de Ramath (Zagor Nova Série nº 03, Ed. Mythos) põe nossos amigos atravessando o vilarejo de Holland, um local envolto em névoa e cercado por pântanos. Os moradores logo se revelam fanáticos religiosos praticantes das técnicas da inquisição medieval. Mais um lugar para riscar do mapa e avisar a todos para passarem distantes.
O arqueólogo Martin Mystère, mais um rodado viajante bonelliano, também chegou a lugares perdidos no mapa nos quais experienciou estranhos comportamentos. Em A Noite do Homem Lobo (Martin Mystère n°3, 1ª série, Ed. Mythos), Martin, Java e Diana vão a Viellaux, na Bretanha. Diana foi a primeira a notar as excentricidades do lugar, como a ausência de postes de eletricidade e de veículos automotores. A primeira acolhida é totalmente hostil. O trio de aventureiros é cercado por alguns moradores, mas o tumulto é interrompido por dois homens que parecem Astérix e Obélix. Se, durante o dia, os habitantes não eram simpáticos, quando a lua cheia se projeta no céu, qualquer resquício de urbanidade desaparece e é melhor correr para se salvar.
Dylan Dog, o investigador do pesadelo, por força da profissão e apesar de sua aversão a aviões, já teve de deixar várias vezes os limites urbanos de Londres em direção a locais esquecidos pelo mundo moderno. Sua primeira história publicada, A Noite dos Mortos Vivos (Dylan Dog n°1, Record, republicada em Dylan Dog n°1, Conrad), o levou, junto de seu assistente Groucho e da cliente da vez, a Undead, uma cidade macabra no interior da Escócia, que parecia totalmente abandonada, mas que nosso herói descobre que há “vida” e que visitas não são bem-vindas.
Dylan já chegou em um local no qual a morte parecia não existir, A Zona Do Crepúsculo (Dylan Dog nº 7, Ed. Record). Os habitantes de Inverary foram mesmerizados e vivem todos os dias da mesma forma, em um ciclo eterno de repetição. Há quem chame isso de inferno e há quem chame de paraíso. Dentro do vilarejo é fácil se perder e parar em locais inusitados.
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