Entrevista conduzida por Lu Vieira, também responsável pela tradução e revisão.
Vamos começar falando sobre Western, conta para nós quais os teus primeiros contactos e o que te fez se apaixonar pelo género!
Carlo Ambrosini: Eu me apaixonei por western porque os norte-americanos nos conquistaram e venderam o seu produto! Eles já estavam muito avançados na linguagem televisiva quando a televisão chegou na Itália em 1954 (ano em que nasci).
Me lembro que nós aos 10 anos víamos a TV dei Ragazzi, passava Walt Disney, Rin-Tin-Tin, Zorro, Notizie dal Mondo (um telejornal para crianças) e filmes. Passavam muitos filmes hollywoodianos produzidos em 1948 e 1949 que contavam a epopeia western, e eu com 12 anos enlouqueci por esses filmes!
Nesse período pós-guerra a Itália tinha o neo-realismo, com grandes diretores e escritores, Fellini, Pasolini, De Sica… um filme que teve um sucesso internacional foi o “Ladrões de bicicletas” (1948), esses filmes falavam da condição italiana de pobreza absoluta.
E os EUA tinham filmes western: aventura, grandes espaços, cavalaria, soldados, cavalos, a exaltação do mito americano. John Ford fez 4 ou 5 filmes já com uma tecnologia incrível… a poeira do deserto parecia poeira de estrelas, os cavalos pareciam voar…
Tu achas que um menino olhava “Ladrões de bicicletas”?
Então, simplesmente o que se produzia na Itália não atraía as crianças…
Carlo Ambrosini: Não, porque era a realidade em que viviam, de miséria, de sofrimento… e chegava esse mundo de sonhos dos EUA. Não somente eu, mas toda a minha geração foi conquistada!
Se falava de cowboy, mas o que eram os cowboys?…
Eram andarilhos… que tinham trabalhos temporários de transporte de gado de um local ao outro, com todo o discurso do heroísmo, da aventura desses homens levando animais por locais selvagens que enfrentavam todo o género de risco. E tornaram-se heróis, e nós no Carnaval usávamos fantasias de cowboys.
Uma coisa que eu me questionei muito depois foi: O western nunca mostrou nem uma só película o matadouro, o açougue. E talvez a realidade dos matadouros era ainda mais importante que as dos cowboys, que eram simplesmente os que faziam o transporte, a verdadeira força eram dos açougues, que organizavam a distribuição da carne em todo o país. Isso negligenciaram completamente, porque não era um espetáculo, ao contrário… poderia causar até repulsa.
Esses heróis “salvavam’ as vacas, quando estavam em perigo, mas na verdade as estavam levando ao matador. Totalmente negligenciado, eu nunca vi um filme onde mostrava realmente o final dessa aventura.
Por isso tem uma hipocrisia de fundo, no mito western. Essa informação nunca chegou às crianças… crianças nunca se perguntam de onde vem a carne que comem. E a exportavam em todo mundo, isso eu gostaria de sublinhar. Crianças precisam de sonhos, mas os construtores de sonhos sabem que estão construindo sonhos… e omitem dos sonhos tudo o que possa ser problemático.
Outra coisa… aqueles que domavam cavalos “selvagens” nos rodeios.
É real que às vezes era preciso domesticar um cavalo selvagem, mas os que acabavam nos rodeios não o eram… eram cavalos com as bolas amarradas, e isso é uma enorme hipocrisia.
No território das Lagunas Pontinas, Itália, que era uma zona pantanosa enorme tinham os butteri (vaqueiros). E quando o Buffalo Bill chegou na Itália, com o seu circo, os butteri foram vê-los, e não entendiam nada do que estavam fazendo… eles não domavam cavalos daquele jeito.
Os butteri pegavam o cavalo, o amarravam com uma corda, e o faziam correr em círculos… quando o cavalo era morto de cansaço se colocava a sela e se montava! Essa técnica era muito mais rápida, e eles não entendiam o porquê os cowboys correrem todo aquele risco.
Essa era a lógica de como construir um mito, inventando coisas…
Eu sou perdidamente apaixonado por Western por causa de John Ford!
Tem uma cena noturna girada no Monument Valley que me lembrarei sempre… em campo longo, um grupo de soldados que estão voltando ao forte depois de ter sofrido um ataque dos indígenas, com feridos… toda rodada com uma lua perfeita, todas as montanhas (que já parecem construções de sonhos) com essa fila de soldados, os cavalos correndo ao longo da linha do horizonte, a luz da lua iluminando a poeira dos cavalos… parecia um sonho.
Todos seus filmes são construídos com esse fascínio…
Então… como eu sou apaixonado por western? Porque fui conquistado quando era criança.
A tua formação académica é em Belas Artes-Pintura, como que tu te tornaste um quadrinista?
Carlo Ambrosini: Por que fui fascinado pelos filmes de John Ford!
Eu era transportado a um mundo sonhado, que nos foi vendido como o mais maravilhoso dos sonhos… e nós, crianças italianas, tínhamos sido salvos do fascismo (isso é o que se acredita) graças à intervenção norte-americana.
E outra coisa que eu sempre amei foram cavalos, eu comecei a desenhar cavalos quando estava na creche, e os cavalos dos filmes pareciam voar! E éramos completamente apaixonados.
Se construiu o mito americano sob a base do heroísmo do invasor, a coragem, a capacidade de enfrentar territórios selvagens como o elemento mais extraordinário do heroísmo e da capacidade do homem de controlar o desconhecido.
Na verdade o western é realmente um género extraordinário! Abraça não somente a aventura, mas também todos os valores (digamos ocidentais) que estabelecem a qualidade da existência.
Nesses fortes se mostrava os soldados defendendo a liberdade, e nós os víamos como um gesto de coragem. Mas na verdade defendiam um abuso.
Como é que tu começaste a desenhar fumetti?
Carlo Ambrosini: Oh, Deus, eu não tenho uma data precisa… o primeiro quadrinho que eu desenhei foi sobre a freira que administrava a creche. Com 3 anos eu já gostava muito de desenhar… coisas que claro que não imaginava que fossem fumetti… minha mãe, meu pai… meu pai era um caçador e eu desenhava o meu pai com o rifle. E eu era apaixonado por uma freira que se chamava irmã Anna, uma mulher belíssima. Em um momento não pôde mais cuidar de nós porque deveria fazer uma cirurgia de amígdalas, e nos foi contado que ela a foi ao hospital de Torino, que pegou o ónibus, que o médico tirou as suas amígdalas… e eu, obviamente não sabia o que significava. Mas, simplesmente eu desenhei toda a sequência dessa história… com os balões… e isso absolutamente era um fumetto! Por isso eu não “comecei” a desenhar quadrinhos, quadrinhos é uma linguagem muito eficaz de um ponto de vista expressivo, porque tem desenhos e palavras que descrevem um movimento. É aquele mais imediato, o mais simples para praticar, e obviamente uma criança fala com os instrumentos que tem, e quanto mais afina os instrumentos a linguagem se torna mais articulada. Também porque crianças antes de serem alfabetizadas já têm todo um código expressivo feito de desenhos, se expressam através de formas gráficas, e já têm a capacidade de ver as coisas representadas através de seu modo de viver e de sentir, como dos homens das cavernas que desenhavam as figuras dos animais que deveriam caçar, esperando que assim já os possuíssem.
Porém, francamente não acredito que se possa aprender a desenhar quadrinhos, precisa nascer sabendo.
Então, ser um quadrinista é simplesmente uma forma de expressão mais natural para ti…
Carlo Ambrosini: Absolutamente, mais imediata, mais fácil de utilizar, unir as palavras às imagens que representam o conteúdo da fala!
Por exemplo, na revolução mexicana, os peões para marcarem um encontro, como não eram alfabetizados, desenhavam usando carvão o lugar onde deveriam se encontrar nas paredes das casas. Por isso, não tem nada de mais imediato. Outro exemplo, tem uma belíssima igreja que era dedicada ao Santo António de Padova com afrescos de Tiziano Vecellio que se chamam “A História do Milagre“. Onde se vê seis quadros de um milagre feito por esse santo. Um marido ciumento esfaqueia a mulher, a fere quase mortalmente, mostra o momento em que ele a esfaqueou, logo depois se arrepende do que fez, e invoca o santo… o santo chega, socorre a mulher e o perdoa.
Isso é um fumetto de 1500! Lógico e construído por sequência… essa é a linguagem dos quadrinhos.
E Como tu viveste a revisão de narrativa do western que começou em 1970?
Carlo Ambrosini: Então, digamos que desde 1958 até os anos 60 nós realmente éramos submetidos a proposta cultural do sistema norte-americano. Porém, no final dos anos 60 nasce primeiro o movimento Hippie, que começa a reavaliar os valores etnológicos da existência, da liberdade, em viver em harmonia com a natureza, sem pensar em produzir coisas que geram dinheiro, a refutar a homologação do consumo. E logo depois nasce uma forma de protesto generalizada, contra as multinacionais, que monopolizam os mercados, muito crítica com o sistema capitalista. Uma contestação sob a base da revolução de Outubro, precursora dos valores socialistas que procuravam construir uma equidade social, mais fraterna, não gerada sempre na base da eficiência económica, produções de bens de consumo, etc… Foi um movimento que gerou toda uma crítica, também dentro do sistema norte-americano, por isso também uma releitura do western.
Naqueles anos tínhamos tanta esperança, pensávamos que realmente poderíamos mudar as relações de poder. Por isso, um pouco pelo discurso Hippie, um pouco pelo discurso do socialismo fraterno, se precisou fazer uma releitura dos direitos dos indígenas.
Aqueles soldados não eram mais heróis, talvez fossem simplesmente proletários que se alistavam por não ter outra forma de viver, mas eles matavam os indígenas! Nem se davam conta do papel que estavam cumprindo, mas sabemos que quem os estava governando sabia muito bem como usá-los.
Por isso foi necessário entender quem eram os peles-vermelhas, os nativos americanos. E quais direitos tinham, quais eram as suas culturas, e essa nova geração de filmes mudou muito o conteúdo, aconteceu realmente uma revisão cultural do género western, e muito interessante porque finalmente os bons não eram mais os casacos-azuis, mas eram os indígenas.
Vivi isso muito feliz porque me parecia que vinha realmente restaurada a observação sobre aquele período histórico.
Porém, a esse ponto eu não posso fazer uma revisão do prazer que eu senti vivendo essa representação muito sonhada, fantasiosa dos cowboys.
Onde entra o Fumetto dentro de toda essa revisão histórica, como é que os quadrinhos podem ajudar na formação de pensamento crítico social?
Carlo Ambrosini: O fumetto é uma linguagem muito imediata e espontânea, mas de qualquer forma é um produto cultural que absorve a temperatura social… do desenvolvimento e contraste social, de guerras e luta entre os seres humanos. Quadrinhos não são avulsos.
Lembre-se que Tex é o maior western produzido na Itália, nascido em 1948, praticamente 3 anos depois do final da guerra. Portanto, o Tex nasceu sob essa regra do que era o mito western, que era o homem forte, que conquistava territórios, essa era a mística de Tex.
Obviamente Tex está durando mais do que a própria epopeia western, que foi da metade dos 1800 até 1890… paradoxalmente deveria contar um arco temporal muito superior do que àquele que se refere!
O Fumetto, também o fumetto western, absorveu muito disso, e lembrando que se tem uma grande dependência da linguagem do cinema. Pois também nasce de um copião, nasce de sequência, diálogos escritos… obviamente a sequência do cinema é diferente dos quadrinhos, porém o conteúdo tende a remanescer o mesmo.
E a Bonelli, que é uma editora de aventura, a certo ponto não podia permanecer estranha a esse movimento, porém Tex sempre permaneceu aquele herói de tipo medieval. Até que chegou Ken Parker, onde levava em consideração todo esse trabalho de revisão de leitura do western.
O western se tornava um protagonista muito mais aberto do que poderia ser a intenção dos que promoviam o heroísmo americano como modelo.
Requalificava os direitos, a razão dos nativos, dos sentimentos de prioridade, que não são aqueles do acúmulo, tinha realmente uma releitura da conquista de um território, e sobretudo dos valores jogados em campo e a Bonelli precisou integrar às suas produções um personagem como Ken Parker que contrastava Tex, paradoxalmente era uma alternativa ao western texiano.
Não quero dizer algo antipático, mas Tex continuou existindo e Ken Parker foi cancelado há anos, quer dizer que as qualidades, as virtudes são menos cativantes do que o prazer da conquista, da aventura. Isso é um pouco amargo de admitir, mas na realidade é isso… o ser humano tem pulsões primárias que vêm antes da revolução intelectual, mas tudo bem… eu também não fiquei indiferente ao prazer de ver aqueles cavaleiros.
Mas dito isso, sou muito feliz que tenha sido feita essa releitura, dos papéis dos nativos e dos ocidentais sobre um território que não tinham nenhum direito a não ser o direito das armas.
Tu já escreveste algumas histórias ambientadas no Brasil, em Napoleone e Jan Dix, quais são os elementos da cultura brasileira que te atraem?
Carlo Ambrosini: Confesso que não sou um grande conhecedor do Brasil. Porém, naturalmente sempre me interessou muito o papel que desempenha no mundo um território que tem uma imensa floresta que produz oxigénio para o resto do planeta. E também pela condição económica do desfrutamento que oprime os nativos usando um critério de expansão económica de natureza capitalista, como criou raízes se produziu e reproduziu achando que fosse o sistema mais democrático, o capitalismo não é a democracia. É um sistema económico em que dentro de suas regras tem uma forma de imoralidade profunda onde coloca uma ampla parte da população como absolutamente sacrificável.
Eu escrevi algumas histórias sobre o Brasil…
A primeira que me vem em mente é uma de Napoleone desenhada por Paolo Bacilieri, era uma história ambientada na Amazónia com indígenas Yanomami, e a sua relação com a cultura que governava esse território brasileiro. Me interessava a figura de um xamã que buscava não perder a grande sabedoria que está e governa a floresta, mas contemporaneamente muito atento de como é possível produzir dinheiro jogando na bolsa, uma figura muito ambivalente. E eu o faço falar sobre a potência da floresta, sobre a quantidade de conexões de organismos vivos de uma floresta a respeito do mais complexo sistema informático do mundo. A floresta tem realmente uma infinidade de relações de sistemas que faz conviver espécies diferentes dentro de uma relação pacífica, se não pacífica mas ao menos funcional.
E o meu xamã fala que a bolsa de Nova York em comparação às conexões e escambos que tem dentro de uma floresta é uma coisa ridícula, por isso é que ele é um grande jogador de bolsa e todo o dinheiro que ganha usa para salvaguardar a floresta.
Aconteceu uma coisa muito interessante com o desenhador dessa história: Eu tinha criado dois personagens, o xamã e o seu filho adolescente, eu tinha pensado em fazer o pai com as vestimentas yanomami, e o filho com roupas modernas. Então o Paolo me fez notar que talvez a geração posterior a do pai teria mais consciência etnológica, por isso o filho que se vestia com um traje indígena tradicional e o pai, da geração precedente, já estava contaminado do consumismo e da influência da cultura ocidental. E fiquei muito feliz e de facto eu usei essa sugestão, eu fiz o filho que recuperava os valores dos habitantes da floresta e o pai que consertava motores e tinha telemóvel. E enfim, depois eu fiz outra história sobre o Brasil, essa mais crua e mais recente.
Mas o paradoxo extraordinário do ser humano no ocidente é que para se expressarem fizeram duas guerras mundiais, isso sem contar as anteriores. Com a intenção de provavelmente se chegar a um aperfeiçoamento através de um conflito de interesses, e a guerra continua uma opção como a que estamos vendo hoje, que é a coisa mais nojenta que se possa imaginar. Se o ser humano não entende que a guerra não é uma opção, seremos sempre crianças que não conseguiram encontrar uma resposta, portanto o Brasil é carente de respostas tanto quanto todo o lugar do mundo, talvez mais acentuado porque não teve políticas que prevejam a abolição completa do racismo, e outras formas de discriminações, e mecanismos que evitem corrupções ligadas ao nepotismo e relações criadas dos detentores do poder, por exemplo. Essas guerras que o ocidente viveu talvez evoluiu o nível de consciência… mas não sou seguro disso, digo talvez porque ainda vivemos situações de conflito. Talvez tenha um pequeno progresso em relação à consciência.
Quais desenhadores brasileiros tu mencionarias?
Carlo Ambrosini: Primeiro a Laerte, uma senhora de uma inteligência refinadíssima e uma habilidade gráfica monstruosa. E do ponto de vista técnico, que desenhou western, sem dúvidas João Mottini, um desenhador extraordinário que eu olhei muito! Realmente mítico e muito atento aos grandíssimos desenhistas western norte-americanos .
Os desenhadores norte-americanos de aventura fizeram escola no mundo, porque tinham mais recursos, mais material de apoio, de consulta, e Mottini sem dúvida os olhou. Ele trabalhou na Argentina junto com Hugo Pratt… deve ter visto Alex Toth, Milton Caniff, Sickles e outros grandes desenhadores que trabalhavam em jornais e ganhavam bem, logo podiam aprofundar os estudos.
Não digo que os EUA produziram somente coisas desprezíveis, produziram também grandes quadrinhos que influenciaram todas as escolas do mundo.
E para finalizar, queres acrescentar mais alguma coisa?
Carlo Ambrosini: Quero dizer que eu constatei com muito prazer visitando o Brasil, em virtude da minha namorada que me levou para visitá-lo. Eu percebi que nesse país, apesar de ter um mercado muito mais restrito, tem uma relação de respeito cultural profunda em respeito à linguagem de quadrinhos e cartuns, e mesmo com todas as dificuldades de sobreviver fazendo esse trabalho, os conteúdos são muito estimados, bem desenvolvidos e respeitados. Um respeito que na Itália nunca foi reconhecido no fumetto, e eu fiquei muito contente em ver que no Brasil tem um grande respeito cultural.
(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)
Maravilhosa entrevista da Lu Vieira com Carlo Ambrosini, que também tive o privilégio de publicar em Brett 2.
Mas o release aqui em cores, é muito lindo.
Parabéns Lu Vieira e Pard Zeca.