Por Moreno Burattini*
Entre 1948 e 1976, ou seja, durante quase trinta anos, as aventuras de Águia da Noite foram realizadas por um conjunto diverso de autores. Nos desenhos, bem ou mal, alternaram-se várias mãos: Galep, Letteri, Ticci e Nicolò, com uma intervenção menos significativa de Francesco Gamba, Virgilio Muzzi e poucos mais. Pelo contrário, os argumentos foram sempre e apenas escritos por Giovanni Luigi Bonelli. Como se o novo ano de 1975 marcasse uma nova época, o álbum de Tex, Caccia all’uomo (n° 183) apresenta uma surpresa, um par de autores em tudo inédito: Sergio Bonelli e Fernando Fusco. Como se sabe, Sergio assinava os seus trabalhos com o pseudónimo de Guido Nolitta, de modo a não ser confundido com o seu pai. Assim, “texto de G. Nolitta” era a habitual indicação que constava no início de cada aventura de Zagor. Ao invés, na sua estreia em Tex, as suas histórias foram, na sua primeira aparição, atribuídas ao pai. Apenas nas reedições mais recentes se restabeleceu a verdade, a qual sempre foi bem evidente para quem tivesse um pouco de atenção.
No correio de TuttoTex 194 e 195, o editor informa o seguinte: “o volume 183 da série Gigante foi o primeiro a não ter sido escrito pelo meu pai que, graças ao seu invejável estado de saúde e não menos invejável potencial criativo, tinha até então produzido, sem interrupções, a extraordinária cifra de cerca de vinte mil páginas plenas de socos, perseguições e tiroteios. Traído pela sua paixão pelo esqui que, na bela idade de sessenta e oito anos, ainda o empurrava como um jovem para as pistas das montanhas Dolomiti, Bonelli pai foi vítima de uma daquelas quedas que matariam um bisonte, mas que ele acabou por superar com uma desenvoltura particular, devido à sua fortíssima fibra. No entanto, foi obrigado a aceitar a sugestão de refrear o “tour de force” que o levava a escrever as cento e dez páginas, necessárias para garantir a publicação do álbum mensal. Identificada a emergência, soaram os alarmes, como em certos filmes, quando o capitão pede a intervenção de um voluntário para uma missão quase suicida. Alguém acabou por dar o famoso passo em frente, avançando perante a fila de soldados hesitantes. O kamikase fui eu, mesmo se, na realidade, não tinha necessidade de abraçar outros desafios, uma vez que, no âmbito da editora, já me ocupava da tipografia, da distribuição, da administração, da correção de rascunhos e, no tempo que sobrava, fornecia duzentas páginas mensais para os álbuns de Zagor e Mister No! Oferecendo-me como autor, contava muito com a ajuda do meu distinto progenitor. Na realidade, o criador de Águia da Noite tomou em mãos o desafio de ler quase diariamente as páginas que eu escrevia, alterando os diálogos que não lhe pareciam ajustados ou então aconselhando-me sobre o desenvolvimento de determinadas sequências particularmente complicadas para as minhas forças de escritor texiano recém chegado. Qual foi então a reação do público? Uma parte não reparou minimamente, mas muitos, devo confessar, não deixaram de observar que o Tex daquela aventura, apesar de todo o meu esforço em camuflar o meu estilo, era ligeiramente diferente. E talvez eles não estivessem errados. Talvez no meu Tex haja uma tendência para refletir mais, a ser tolerante à dúvida. Talvez até a uma dúvida surgida diante da cruz de um túmulo, o que leva Tex a assemelhar-se às duas personagens que são verdadeiramente minhas, Zagor e, sobretudo, Mister No. Se consigo reconhecer ter involuntariamente traído alguma característica de Águia da Noite, pelo contrário tenho a consciência tranquila no que respeita ao aspeto aventuroso e dinâmico do meu argumento, pleno de emboscadas e duelos mortais, confrontos com índios e foras da lei, mergulhos nos rios e até mesmo um feroz conflito com um indigno representante da lei. Portanto, tudo como manda a tradição!”.
O argumento da diferença de estilo entre Nolitta e Bonelli pai é interessante e merece ser aprofundado. Respondendo a uma questão colocada durante a entrevista publicada na obra “Tex, tra la leggenda e il mito”, Sergio afirmou: “A personagem criada pelo meu pai representou para mim uma aflição devido à altura em que tive que, por exigências imprevisíveis, transformar-me no autor das suas histórias. Apesar de ter escrito com facilidade milhares de páginas para Zagor e Mister No, neste caso sentia-me extremamente emocionado perante o pesado fardo de ter que substituir um grande autor, muito amado e, sobretudo, tão pessoal como o meu pai. Na verdade, ninguém mais do que eu podia saber o quanto Tex, no seu comportamento, estava intimamente ligado ao caráter autêntico de Bonelli pai, um caráter, de facto, bem diferente do meu. Por isso, tive que trabalhar duramente na realização destas histórias, logo a partir daquele momento em que continuamente me questionava sobre a maneira em como elas seriam escritas pelo seu primeiro autor. Escrever Tex foi para mim muito difícil, seja pela dificuldade em reproduzir o caráter e o comportamento do protagonista, seja por ter que inventar aqueles diálogos que, pelo contrário, com o meu pai resultavam muito fluidos. Em suma, direi que respirei de alívio quando Claudio Nizzi demonstrou estar à altura da situação, revelando ser um profundo conhecedor de Tex e demonstrando aquela capacidade de seguir o estilo do meu pai que a mim, como já o disse, tornava-se deveras difícil. (…) Sinceramente, nunca cheguei a estabelecer se o balanço das histórias que escrevi foi positivo ou negativo. Certamente que guardo uma boa recordação de algumas, enquanto que de outras estou consciente que poderia ter feito melhor. No entanto, para não me debater demasiado com esta tormenta mental, tenho sempre bem presente um certo álibi pessoal que, acreditem, não se trata de uma desculpa: infelizmente, tive sempre que escrever estas histórias em condições difíceis, de noite, em viagem, ou mesmo durante as escassas horas concedidas pelas muitas e frequentes questões comerciais”.
O Tex de Nolitta
Um estudo cuidado do Tex de Nolitta, que no total escreveu cerca de vinte aventuras de Águia da Noite, foi publicado por Angelo Palumbo no segundo número da revista Dime Press (setembro 1992). O Tex nolittiano, explica Palumbo, mantém a tradicional característica de duro, mas por vezes vê-se perante situações atípicas que revelam a sua faceta humana. “Na aventura Il Segno di Cruzado, por exemplo, vêmo-lo a suar: não se sente à vontade para abater um jovem Navajo que implora-lhe para colocar um ponto final no seu sofrimento causado por uma tortura cruel. Giovanni Luigi Bonelli teria evitado colocar Tex numa situação tão ambígua”. Exemplos deste género são inúmeros: algumas vezes ouvimo-lo a pronunciar palavras de forte desconforto, noutras ocasiões podemos vê-lo no papel de um pai atencioso perante o seu filho Kit, noutras, ainda, deixa de lado a sua conhecida e firme serenidade para explodir em clamorosas manifestações de raiva e indignação. O Tex de Sergio Bonelli é também menos infalível e invulnerável que o do seu pai, demonstrando não ter certezas absolutas. E não é tudo: Nolitta concede a Águia da Noite banhos restauradores em banheiras fumegantes e permite-lhe assobiar para as bailarinas num saloon. Outra característica são os gags que Sergio Bonelli, hábil escritor humorista, não pode também deixar de inserir nas aventuras do Ranger.
Aquele toque nolittiano, que Palumbo muito justamente considera como perfeitamente reconhecível, manifesta-se sobretudo em “Giungla Crudele” (1981), uma história onde o autor consegue ainda colocar-se magistralmente ao serviço da personagem, mesmo quando o transporta para o meio dos índios das florestas tropicais do Panamá e o obriga a atuar num ambiente inédito na saga texiana. A personagem de Tex, longe de ser distorcida, ganha humanidade e espessura psicológica desde a primeira sequência, assim como, algo poucas vezes demonstrado anteriormente, com a personagem de Kit Willer. O filho de Tex fica perturbado com a morte de um amigo índio; escutamos as sentidas palavras de conforto dadas pelo pai para o animar; sentimos a preocupação de Águia da Noite pelo tormento interior de Pequeno Falcão que se arrasta no tempo; notamos a indiferença do jovem ídolo perante os seus pares da aldeia navajo e perante a squaw (de sublinhar o facto de que Kit tem, naturalmente, uma vida social e sentimental da qual nunca fala). Quanta humanidade nesta longa introdução! A mesma atitude paterna de Tex continua a manifestar-se quando, depois de ter aconselhado Kit a viajar alguns meses, acompanhando um seu amigo até ao Panamá, ele próprio parte em sua busca quando toma conhecimento de uma ameaça que paira sobre o filho. A dramática aventura que se irá desenrolar, a partir destas premissas, é portanto vivida pelo herói ao lado do filho: algo pouco frequente nas aventuras escritas por Bonelli pai e pelo seu herdeiro Nizzi, que preferiam ambos a dupla Tex e Carson, enquanto Nolitta tende a apresentar um Tex solitário ou com outros parceiros (o filho, Tiger, Jim Brandon).
O fotógrafo do Oeste
A propósito de “Giungla Crudele”, o toque especial nolittiano também se identifica não apenas na opção em inserir entre os protagonistas da trama uma personagem histórica, o fotógrafo Timothy O’Sullivan (outro exemplo da atenção dada pelo autor à documentação), mas também em caraterizá-lo de modo perfeito, como uma das suas clássicas personagens sempre tão animadas e divertidas. Nascido em 1840, em Nova Iorque, e falecido em 1882 em Staten Island, O’Sullivan foi considerado como um dos mais importantes fotógrafos do século XIX. Foi pioneiro sobretudo na fotografia de documentação histórica, antropológica e geográfica. “Quem diabo é você?“, pergunta Tex ao homem que desce de uma carroça, afortunadamente ileso, depois de ter escapado de um ataque de índios. “Sou Timothy O’Sullivan, fotógrafo de profissão – apresenta-se o viajante – em viagem de trabalho entre Lees Ferry e Gallup“. “Que me caia um trovão! – dispara o ranger – quer dizer que você anda a passear sózinho pelo Oeste a tirar fotografias?“. “Precisamente, mister“, é a resposta. Na realidade, Timothy O’Sullivan atravessou a América documentando com os seus “flashes” a vida da fronteira e a beleza selvagem da natureza ainda não contaminada do Oeste Americano. Mas não só: foi também o percussor da reportagem fotográfica de guerra. Antes dele, apenas outro fotógrafo tinha fotografado um campo de batalha: Roger Fenton, que tinha tirado fotos na Crimeia, limitando-se, no entanto, a imortalizar oficiais e soldados e a retratar cavalos e artilharia.
Por seu lado, seis anos após o seu antecessor, O’Sullivan interpretou de modo completamente diferente o papel de repórter fotográfico, fotografando os combates e mostrando as suas consequências: mortos, feridos, destruição, dor. O fotógrafo relata isto mesmo a Tex, mostrando-lhe uma foto tirada em Gettysburg: “Eu estive lá, assim como estive noutras batalhas, não menos sangrentas, como as de Bull Run e Appomattox. Ali, por várias vezes vi a minha máquina saltar-me das mãos devido ao deslocamento do ar provocado pelas bombas“. No entanto, desta vez O’Sullivan tem outra tarefa. De facto, foi encarregue pelo governo dos Estados Unidos de juntar-se a uma expedição técnica que deverá verificar a fiabilidade de um ambicioso projeto: o corte do istmo do Panamá, para escavar um canal que una o oceano Atlântico com o Pacífico. Também neste caso, é evidente a atenção de Nolitta aos factos relatados pela História com H maiúsculo e aos livros da sua vasta biblioteca. Na realidade, O’Sullivan participou na missão de reconhecimento do comandante Thomas Selfridge no Darién, no Panamá, ocorrida em 1879. A aventura de Tex, na qual o fotógrafo participa na expedição destinada a preparar o projeto do canal entre o Atlântico e o Pacífico, tem efetivamente fundamento histórico. O’Sullivan embarcou no navio a vapor Guard e começou logo a fotografar todos os momentos da viagem, conseguindo guardar em imagem as várias fases da perigosa caminhada na selva, mesmo em condições quase impossíveis para as máquinas fotográficas da época.

Tex Willer no interior de uma elegante mansão no centro de Cartágena, Colômbia, onde o cônsul americano recebia personalidades da cidade, esmurrando um oficial do exército colombiano
“A expedição será composta por especialistas botânicos, geólogos e engenheiros, assim como de um contingente militar que deverá escoltar todos através da selva, para os defender de eventuais perigos“, explica o fotógrafo a Tex no início da aventura. E os perigos, com efeito, não faltam: trata-se de enfrentar pântanos, areias movediças, chuvas torrenciais, doenças tropicais, mas também serpentes à espreita de uma presa, perigosos insetos, aranhas venenosas, animais ferozes. Mas, principalmente, ter em atenção os índios Bravos, os habitantes selvagens das florestas da América Central que têm por hábito receber os estranhos com disparos de flechas envenenadas. O’Sullivan está habituado a correr riscos e, como sempre, transporta o seu equipamento (uma pesada máquina, o cavalete, as placas, uma botija de detergente) para qualquer lado onde possa saciar o seu desejo de tirar fotografias que documentem a realidade: portanto, ele é a pessoa perfeita para levar para o seu país todas as imagens que melhor possam sustentar o projeto deste canal. Mesmo que ele não seja alguém que fuja perante as dificuldades e as ameaças, não é um homem de ação e Tex, que se encontra, apesar disso, envolvido na mesma expedição (à qual se juntou após o filho Kit ter previamente acompanhado o fotógrafo), salva-lhe a vida várias vezes, contra o ataque de uma jibóia ou protegendo-o de vários ataques dos índios. Pena que a última foto que O’Sullivan tirou de Águia da Noite acabe irremediavelmente perdida. A imagem retrata o Ranger a esmurrar, durante uma rixa em Cartagena, um oficial do exército colombiano. Uma imagem extraordinária, nas palavras do próprio autor, orgulhosíssimo de ter conseguido captar o momento: “Apesar de captar Tex e o oficial em movimento, a foto acaba por ser bem focada e bastante nítida!“. Nada a fazer, inútil procurar o mesmo clique entre os muitos outros deixados para a posteridade pelo “mais intrépido fotógrafo dos Estados Unidos“, como o próprio se define no final da aventura. A cópia em papel e a placa são destruídas por Phil Turner, coronel do serviço especial do Ministério dos Negócios Estrangeiros americano, o qual entende apagar qualquer marca do sucedido, para evitar incidentes diplomáticos. Uma das primeiras imagens censuradas na história da fotografia.

No coração da Selva Cruel, um dos guias da expedição científico-militar no isto do Panamá da qual participavam Tex e Kit Willer, usando na travessia do rio Coloveboro, o seu facão para desbravar um novo caminho na selva
Por quem toca o medalhão
Todavia, a maior parte dos leitores de Tex recorda sobretudo uma outra personagem criada por Nolitta para a série de Águia da Noite. Não se trata de um amigo, mas sim de um inimigo: El Muerto. “Quero que tu leves uma mensagem ao teu amigo Tex Willer“, diz a Jack Tigre um homem com uma face horrivelmente transfigurada pelo fogo. Tiger jaz deitado no chão, suspirando pela sua vida depois de ter sido cruelmente espancado, mas consegue escutar as palavras do adversário. O homem prossegue: “Deves dizer-lhe que deixe de ser fanfarrão e que chegou a hora dele se retirar para um local tranquilo debaixo de um palmo de terra! Diz-lhe também que há alguém que não tem medo dele e que eu, El Muerto, o demonstrarei, se dentro de uma semana ele for ao “booth hill“ de Pueblo Feliz!“. E para que Tex não possa faltar ao encontro, El Muerto (assim conhecido pelo seu aspeto horrendo) faz tudo para aumentar o ódio: juntamente com o seu bando de homens sem escrúpulos, para além de terem agredido selvaticamente Tiger, assassinam um jovem Navajo, ferem o jovem Kit, espalham sangue inocente na cidade de Wingate. E, em cada uma das vezes, desafia Águia da Noite para um ajuste de contas entre os túmulos do cemitério de Pueblo Feliz. A cena (de antologia) do duelo final com El Muerto é uma homenagem, desde a utilização dos enquadramentos, a Sergio Leone e ao seu Per qualche dollaro in più. Na banda desenhada, tal como no cinema, são as notas musicais de um velho medalhão que avisam os duelistas a sacarem das pistolas. A este propósito, Sergio Bonelli escreveu: “A história retrata pouco as atmosferas do western romântico e fantasioso, mas cada sequência aproxima-se mais daqueles filmes que – pelo seu cru e melancólico realismo – habitualmente são definidos como “crepusculares”.
El Muerto, datado de 1976, é uma das outras histórias que não foram escritas por Giovanni Luigi Bonelli. “O argumento, afirmo pelo meu dever de informação, foi da minha autoria”, explica Sergio Bonelli no seu prefácio de “I grandi nemici“, um conjunto de livros publicados numa caixa pela Mondadori. E prossegue: “Quando da sua primeira publicação, os texianos mais atentos intuiriam que para arquitetar aquele tipo de história não poderia estar o criador de Tex; alguns apaixonados, que também eram leitores habituais de Zagor, rapidamente concluíram que, atrás desta trama, tão pouco comum, poderia estar o próprio pai de Zagor, Guido Nolitta. Receando legitimamente qualquer intromissão externa na saga que tinha conduzido durante décadas, Giovanni Luigi Bonelli tinha aceite a minha candidatura apenas pelo amor paterno. Quando chegou às suas mãos o resultado do meu trabalho, ajustou alguns diálogos, fez-me alterar um par de sequências e depois, após um indecifrável murmúrio, colocou as suas mãos no meu ombro e suspirou de alívio. Provavelmente, esperava bem pior da minha estreia nas páginas de Tex”.

Tex Willer no interior do Mermaid Saloon, em Sunsetville, assistindo impotente à ameaça de Paco Ordoñez, mais conhecido como El Muerto, contra o barman Ratcliff que corria risco de vida
De pai para filho
Contudo, algumas vezes Giovanni Luigi Bonelli interviu para eliminar algumas sequências das histórias escritas pelo filho e que a si não lhe agradavam. Quem conta é o próprio Sergio Bonelli a Franco Busatta: “O meu pai sofria com esta passagem de testemunho e, quando se deu conta que, por exigências de trabalho e por respeito da personalidade dos novos autores, deveria limitar as suas intervenções e as suas correções, não conseguia esconder o arrependimento de tê-lo feito anteriormente. E mesmo que, devido ao afeto que nos ligava, no decurso dos anos nunca tenhamos chegado verdadeiramente a estar em colisão, devo no entanto reconhecer que, em alguns casos, fiquei contrariado com certas alterações efetuadas a esta ou aquela sequência, por mim ajuizadas, pelo contrário, particularmente eficazes. Um perfeito exemplo surge na história “Il segno di Cruzado”: numa atmosfera dramática, no prelúdio de uma guerra índia, Tex é forçado a acalmar com uma bofetada a agressividade de um febril e esgotado Kit Carson. Este gesto, em bom rigor muito habitual nos filmes e nas histórias que tenham por tema a amizade masculina, foi considerado por Gianluigi Bonelli como demasiado sentimental para os clássicos esquemas narrativos da série; e assim acabou por ser retirado, quer da sequência, quer da capa, o que, pelo contrário, na minha opinião resultaria como algo de grande efeito. Obviamente, nunca saberemos quem teria razão, se eu ou o meu pai“. Nolitta, posteriormente, reconhece as diferenças do seu estilo em comparação com o do seu pai.
Mas, conta-nos, a sua intenção inicial era camuflar-se e não ser reconhecido. “Devido ao meu perfeito conhecimento de uma personagem, da qual tinha lido as aventuras dezenas de vezes, o meu objetivo inicial era reproduzi-la exatamente de acordo com a receita cozinhada ao longo dos anos Bonelli. Contudo, com o decorrer do tempo, dei-me conta que se tratava de algo que não era assim tão simples. Inevitavelmente, todos os autores, mesmo os de banda desenhada, tendem a inserir nos seus trabalhos algo da sua própria personalidade e a minha visão da vida é bastante diferente da do meu pai. Consequentemente, por vezes o comportamento do meu Tex não tem a segurança, a ousadia e mesmo a arrogância que tem o do seu criador. Embora também seja hábil no manejo das armas e dos punhos, revela-se mais refletido nos momentos de perigo, a ponto de aceitar, por vezes, compromissos que, pelo contrário, o “genuíno” Águia da Noite nunca teria sequer considerado. Fazendo um balanço à posteriori, poderei dizer que a minha versão da personagem é mais realista e afasta-se muito do herói sem mácula e sem medo de alguma literatura e de alguns filmes que tinham inspirado o meu pai. O Tex clássico tem a capacidade inata de distinguir apenas com um olhar os bons dos maus, num contexto caraterizado por uma nítida divisão entre o bem e o mal. Pelo contrário, o meu Oeste é interpretado por personagens mais espessas e, nesse sentido, a busca por um inimigo escondido nas sombras, da parte do Tex nolittiano, é mais articulada e motivada e, porque não, mais sujeita a dúvidas e erros”.
Bestiário fantástico
Uma história onde surge bem evidente a marca de um Nolitta que, mesmo não assinando, não se consegue camuflar com o estilo paterno (enriquecendo, no entanto, a saga texiana e não a desnaturando) é “Sasquatch“. Se Martin Mystère já tivesse sido criado, seria ele que certamente se ocuparia do “yeti” americano. Mas, quando esta nova aventura de Tex surge nas bancas italianas, estávamos em abril de 1979, e o Detetive do Impossível de Alfredo Castelli ainda era um projeto por definir. No final dos anos setenta, as histórias mais “misteriosas” da Daim Press eram as que geralmente se publicavam em Zagor, escritas por Guido Nolitta, efetivamente um grande apaixonado de tudo o que fosse mistério, lendas, magia. E é portanto Sergio que insere em Tex o elemento fantástico, representado pelo Sasquatch: uma criatura misteriosa, ainda desconhecida da ciência oficial, todavia avistada por diversas vezes no Canadá ocidental, entre as Montanhas Rochosas e a costa do Pacífico. Veio também a ser chamado de “Big Foot” pelas enormes pegadas que deixava no terreno e, de acordo com vários testemunhos, fisicamente era semelhante com o Yeti dos Himalaias. Em 1965 foi reunido um conjunto de outros 120 casos de avistamentos do Sasquatch nos estados americanos da Califórnia, Washington e Oregon.
E é precisamente no Oregon que decorre esta aventura, com Tex na pista desta enorme criatura. Uma região magnífica em termos de cenário, habitada por peles vermelha com usos e costumes insólitos, os únicos que, historicamente, esculpiam totens. Um detalhe que não escapou a Nolitta que, assistido por Nicolò, não deixa de fornecer a justas informações antropológicas aos leitores texianos, no passado geralmente habituados a ver tribos índias todas muito semelhantes entre si. A história começa quando Tex e Tiger oferecem-se para substituir um velho amigo, Fred Lindeman, como guias de uma expedição científica chefiada pelos professores Brokman e Sears que ruma em direção ao Oregon em busca de antigos fósseis de dinossauros. Chegados ao destino, os dois cientistas juntam-se ao seu antigo docente, o pacífico professor Crosby, que desde há cerca de um ano vive com os índios Klamath para “procurar velhos ossos”. Tudo parece correr bem até ao momento em que Brokman e Sears pretendem capturar o Sasquatch, perante o qual os Klamath, que desconhecem estas intenções, parecem nutrir uma particular veneração.
“Gostaria que compreendesse – diz Brokman a Tex numa tentativa de justificar a sua conduta, que arrisca inquinar a convivência pacífica com os índios – que a ciência tem os seus direitos“. “Deixe a ciência de fora – responde-lhe Tex – e pense pelo contrário nos direitos sagrados destes índios que até agora viveram em paz, seguindo as suas antigas tradições e os seus costumes, e aos quais vocês estão prestes a tirar brutalmente algo que para eles, correto ou incorretamente, consideram como sagrado“. As belas palavras de Tex caiem, no entanto, em saco roto. Fingindo deixar cair as suas intenções, Brokman e Sears organizam uma emboscada para capturar o Sasquatch, não hesitando mesmo em matar. Acabarão por pagar com a sua própria vida os seus atos criminosos, no poste de tortura da aldeia Klamath, enquanto Tex, Tiger e o professor Crosby são salvos in extremis pela própria intervenção do Sasquatch. O professor Crosby está convicto em não falar da descoberta desta misteriosa criatura ao mundo científico: “Quando no futuro se recordar desta história – diz-lhe Tex – deverá sentir-se orgulhoso, uma vez que o seu silêncio permitiu que aquela misteriosa criatura pudesse continuar a correr livre e feliz nestes bosques”.
Uma outra história fantástica protagonizada por incríveis criaturas è “Artigli nele tenebre“, onde inicialmente a ameaça surge em algumas estranhas caixas mantidas no porão do navio “Mariposa”. Contendo algo que um estudante encontrou nas selvas da América do Sul, algo vivo e perigoso, algo que apenas alguns soporíferos conseguem manter num estado adormecido, mas que pode acordar repentinamente se ocorrer algo de inesperado. Algo que realmente vem a acontecer, libertando dinossauros em carne e osso, prova viva de uma espantosa descoberta científica, repentinamente regressada à vida. Monstros que massacram os habitantes de Brooke, um espécie de Jurassic Park ante litteram. Nolitta é muito hábil em criar um ambiente de tensão, mesmo sem ter recebido aulas de Spielberg.
* Texto de Moreno Burattini publicado originalmente na Revista nº 7 do Clube Tex Portugal, de Dezembro de 2016.
(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima clique nas mesmas)
Belo texto. Nolitta/Sergio sempre foi demais. No Top 10 das minhas histórias favoritas de Tex, 5 são de Nolitta, 3 de Bonelli, uma de Nizzi e outra de Boselli. E El Muerto é uma obra de arte em todos os sentidos. Digna de um filme.
Geniais.