DE GALEP A TEX

Por Sandro Palmas*

Aurelio Galleppini

Quando nasceu TexWiller? A resposta parece ser muito simples: em 30 de setembro 1948, com o aparecimento, nas bancas italianas, do primeiro álbum de tiras da aventura O Totem Misterioso. Mas como se chegou até à publicação deste número histórico? Para podermos descobrir, será necessário recuarmos um pouco no tempo…

Estamos na primavera de 1945. Terminada a guerra e liberto da aviação, Aurelio Galleppini, na altura com 28 anos, encontra-se na sua Sardenha (considerava-se mais sardo do que toscano), em Cagliari, e sem uma Lira no bolso. Nesta cidade em reconstrução, cujo centro histórico tinha sido arrasado pelos bombardeamentos, Galep vive um momento de impasse artístico e é o seu amigo Marcello Serra, com quem divide o pequeno estúdio na Via Sardenha, que o vai apresentar gradualmente no ambiente literário e cultural da cidade. O encontro com o pintor Fantini revela-se decisivo, um famoso retratista com quem Galep, autodidata, vai aprender muito do ponto de vista da técnica. Ao longo do ano, prepara-se para duas mostras pessoais e participa com alguns dos seus trabalhos em mostras coletivas. Com os amigos Marcello Serra, Vittorio Stagno e Beppe Marongiu, dá vida ao semanário satírico L’Arcobaleno di Sera. Jago Mazza, proprietário de dois cinemas na Via Roma, o Éden e o Olimpia, encomenda-lhe os cartazes para os filmes, dada a dificuldade em fazer chegar os originais da Península, uma vez que as vias marítimas e aéreas ainda se encontram interrompidas.

O quadro de San Vincenzo (São Vicente) pintado por Galep, em 1947

Em agosto de 1946, Galep começa a colaborar com o diário l’Unione Sarda, para o qual ilustra as páginas de verão com caricaturas e retratos grotescos das figuras mais importantes da cidade, personalidades que se alternam na rotunda do Lido e do Poetto, a praia da cidade, onde à noite também se exibem os cantores populares da Rádio Sardenha. É mesmo no Poetto que Galep encontra pela primeira vez Gianluigi Bonelli, que se instala na ilha em férias. O pai de Tex fica fascinado pela beleza dos cartazes de cinema realizados por Galleppini!

As Surpreendentes Aventuras do Barão de Munchausen com ilustrações de Aurelio Galleppini

Com a pintura, através da qual passa a ser um dos nomes célebres da cidade, o artista consegue apenas um sustento modesto, sendo obrigado a alternar a sua atividade pictórica com o ensino em duas escolas de Cagliari, os Institutos Industrial e Salesiano. Naqueles anos, contará Galep, não era bem visto trabalhar nos fumetti. Não lhe restará senão abandonar a Sardenha, de modo a encontrar uma oportunidade na Península.

A ocasião chega com a editora florentina Nerbini, com quem já tinha colaborado durante o período da guerra. Nesta altura, nascem trabalhos como As Surpreendentes Aventuras do Barão de Munchausen e As Aventuras de Pinóquio de Carlo Collodi, este último realizado apenas em banda desenhada. Ao mesmo tempo, Galep retoma a colaboração com a editora Universo, para quem realiza outras ilustrações para clássicos da literatura como Os Três Mosqueteiros, As Mil e Uma Noites e Os Noivos de Alessandro Manzoni. No entanto, adensam-se nuvens negras no futuro do artista. De facto,no decorrer do ano, a editora Nerbini encontra-se em grandes dificuldades económicas e Galep é, infelizmente, obrigado a regressar a Cagliari.

As Aventuras de Pinóquio de Carlo Collodi com arte de Aurelio Galleppini

Estamos no final de 1947, quando Tea Bonelli, esposa de Gianluigi Bonelli e responsável da editora Audace de Milão, que naquela altura republicava episódios da série Furio e pensava em novas publicações destinadas aos jovens para relançar a sua atividade, vai contactar com Galep, pedindo-lhe para colaborar em regime de exclusividade para a sua editora. As novas publicações acabarão por ser Occhio Cupo e Tex, e é Galleppini quem propõe a Tea Bonelli um fumetto western. O género sempre lhe foi familiar, desde 1925, quando veio da Toscana instalar-se com a sua família na Sardenha, na cidade mineira de Iglesias, onde o tio era proprietário do único cinema e onde o jovem Galep tinha naturalmente livre acesso para admirar as películas de Tom Mix, Ken Maynard e de todo o cinema mudo de western. Nem mesmo um sucesso do fumetto western como Il Piccolo Sceiffo escapou a Galep, uma série que desde há algum tempo vinha sendo publicada, com genial intuição editorial, no conhecido formato de tiras. Na mente de Galep, onde sem dúvida ainda permanecia bem viva a recordação dos seus cartazes de cinema feitos para Jago Mazza, assim como, acrescentamos nós, os de Bonelli, o projeto começava a delinear-se lentamente: um western em formato de bolso, o preferido dos jovens pela facilidade com que se podia esconder, numa época onde o fumetto era ostracizado pelas cabeças bem pensantes. Restava apenas convencer Tea Bonelli!

Occhio Cupo, com arte de Aurelio Galleppini

O artista leva a peito a iniciativa, trabalhando no duro para desenhar a partir de recortes de trabalhos de Walter Molino, uma das suas fontes de inspiração, juntamente com o norte-americano Alex Raymond. Para protagonista, decide inspirar-se em dois atores como Gary Cooper e Randolph Scott, intérpretes de filmes que tinha visto e apreciado na sala do cinema Politeama Margherita em Cagliari. Os cavalos, elementos típicos das paisagens toscanas de Casale di Pari, onde Galep passou a sua infância, era um dos seus temas preferidos desde muito novo. Em 31 maio de 1948, Tea Bonelli escreve uma carta a Galep pedindo-lhe que vá a Milão conhecer as duas novas publicações. Galep apresenta então à senhora Tea os desenhos que tinha realizado, os quais serão em seguida enviados para Gianluigi Bonelli, que dará nome à personagem e escreverá a sua primeira história: Il Totem Misterioso.

Tex – Il Totem Misterioso, com arte de Aurelio Galleppini

O nome da personagem é-lhe sugerido por um armazém de vestuário denominado Tex Moda, localizado na Via XX Settembre em Génova, cidade onde o autor é anfitrião de um amigo editor para o qual estava a escrever curtas histórias, entre as quais a de Red Killer, que não é uma banda desenhada, mas que Galep considera estar na origem do nome de Tex. Não esqueçamos que, dentro de alguns meses, a personagem se chamará na verdade Tex Killer, nome que ainda iremos encontrar, por exemplo, no oitavo álbum de tiras. O nome não agrada muito a Tea Bonelli, uma vez que o herói da nova publicação é um paladino da justiça e a palavra Killer sugere aos leitores uma associação com aqueles contra quem ele se bate: bandidos e assassinos. Galleppini propõe à editora substituir com um V a letra inicial do apelido e Tex torna-se assim Viller. No entanto, esta solução também não agrada à senhora Tea e será ela própria que acabará por escolher para Tex o apelido de Willer, tão conhecido e popular junto dos leitores.

Primeira página original de Tex – Il Totem Misterioso; 1948 – Arte de Aurelio Galleppini

O resto da história já é conhecido. Galep realiza as primeiras tiras de Tex na Sardenha, mas rapidamente se instalará em Milão, trabalhando num pequeno quarto da modesta sede da editora, onde um jovem Sergio Bonelli o encontra a trabalhar horas extraordinárias (desenha Tex das oito da noite até às cinco da manhã) ou num estúdio que divide com um outro desenhador, o qual, para além de lhe oferecer hospitalidade, também escreve as legendas das primeiras histórias do Ranger. Trabalha-se afincadamente, com prazos de entrega obrigatórios. As primeiras tiras são desenhadas diretamente, sem a prévia ajuda dos esboços a lápis. Conforme admitido pelo próprio Galleppini, é um trabalho que no início revela um absoluto desconhecimento do western, por exemplo, com as armas a serem inventadas, caraterística que se manterá até à publicação de um ensaio fundamental elaborado pelo experiente e conhecedor Gattia. Gradualmente, a qualidade das tiras melhora, a começar nas calças pretas que Galep tinha vestido de início à personagem, fruto de um tratamento demorado, mas que se veio a revelar pouco eficaz nas cenas noturnas. As portas para um sucesso à escala mundial, que ainda hoje continua a surpreender os apaixonados, estavam doravante abertas para uma personagem… nascida um pouco por acaso!

Aurelio Galleppini e o jovem Sergio Bonelli

* Texto de Sandro Palmas publicado originalmente na Revista nº 8 do Clube Tex Portugal, de Junho de 2018.

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima clique nas mesmas)

2 Comentários

  1. Boa tarde!
    Como é bom conhecer a história e se aprofundar nos detalhes do mito (Tex) e seus criadores (não menos mitos) por criarem algo tão incrível e duradouro, numa época de terra arrasada (como estava a Europa no pós guerra).
    Uma aula de história.
    Obrigado.

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