Por Jorge Magalhães*
Lembro-me de que fui pela primeira vez a Barcelona em Maio de 1984, com a Catherine Labey e uma comitiva de que faziam parte José Ruy, Luís Diferr, Geraldes Lino, António Alfaiate, Eugénio Silva (que partiu um pé a dançar e teve de regressar a Portugal de muletas!) e o saudoso dr. Chaves Ferreira, director da Editorial Futura e da 5ª série d’O Mosquito (que eu coordenei), cujo 1º número, saído pouco tempo antes, nos serviu de “cartão de visita” no Saló del Comic, onde toda a gente lhe teceu os maiores elogios.

À chegada a Barcelona: Dr. Chaves Ferreira, Juan Espallardo, Catherine Labey, José Ruy, Jorge Magalhães, António Alfaiate, Eugénio Silva (ajoelhado).
De certa forma, foi também o pretexto para visitarmos, pela primeira vez, a magnífica mansão da família Blasco, onde, depois de um saboroso repasto e de animada cavaqueira, tive o privilégio de ser convidado pelo irmão mais novo, Adriano, a acompanhá-lo ao seu vasto atelier, cheio de preciosas relíquias, entre as quais várias pranchas de uma história do Águia da Noite que “los hermanos” Blasco estavam a realizar nessa altura. Como Jesús Blasco se estreou na saga texiana em 1986, com o episódio Delitto al Morning Star (“A Volta da Mão Vermelha”), presumo, portanto, que se tratava nada mais nada menos do que dessa primeira e emblemática aventura, com argumento de Claudio Nizzi.
Ora, até então, eu não era coleccionador, nem sequer comprador eventual das revistas brasileiras que surgiam nas nossas bancas com a imagem de Tex. Para mim, portanto, este grande herói do western (um género que sempre apreciei) e da BD italiana, era quase um desconhecido. Confesso que, ao folhear distraidamente, algumas vezes, as revistas com o selo da Rio Gráfica e da Globo não me sentia muito atraído pelos desenhos de Galleppini, Letteri, Muzzi e outros artistas que, nessa época, davam expressão gráfica ao famoso ranger do Texas. Andava mais entretido com as aventuras de Blueberry, Comanche, Jonathan Cartland, Jerry Spring e outras séries franco-belgas que tinham recriado a temática western, renovando os seus cânones tradicionais tanto formal como esteticamente e, sobretudo, ao nível do argumento, numa altura em que o western cinematográfico já estava em declínio. Por isso, Tex parecia-me um pouco antiquado, nas versões brasileiras que eram, ainda, as únicas que chegavam ao meu conhecimento.
Culpa minha não ter observado com mais atenção e interesse o trabalho (altamente meritório) dos primeiros autores de Tex Willer; mas a verdade é que nessa fase das minhas leituras bedéfilas eu partilhava a opinião de uma certa “elite” que desprezava as revistas de pequeno formato, geralmente impressas em papel ordinário e a preto e branco. Por más razões, como aprendi mais tarde, confundia Tex com as dezenas de colecções de bolso que inundavam as bancas, a maioria sem grande interesse. Muitas dessas revistinhas, de formato menor que o do Tex brasileiro, eram oriundas da própria Agência Portuguesa de Revistas onde eu trabalhava. Por dever de ofício, tinha de revê-las quase todas… mas isso só me fazia detestá-las ainda mais!

Dr. Chaves Ferreira, Jesús Blasco, Angel Puigmiquel (2º plano) e Catherine Labey (que na altura ainda fumava…).
O certo é que, nessa época, sentindo necessidade de diversificar as minhas leituras, dei toda a importância aos álbuns e às revistas como Pilote, (À suivre), Charlie, Cimoc, Cairo, Comix, de apresentação mais vistosa e sumário mais variado.
Revistas de BD não faltavam, efectivamente, na imprensa internacional desse período e algumas, como as espanholas Cimoc e Comix, serviram até de modelo para a 5ª série d’O Mosquito que, em Abril de 1984, chegou pela primeira vez às bancas.
“COUP DE FOUDRE”
Mas, voltando à bela mansão da família Blasco, numa frondosa colina de Barcelona, e ao meu primeiro encontro com Adriano, o irmão mais novo… e com Tex Willer em versão original!… Tudo o que posso dizer é que senti um enorme frémito de emoção ao entrar no estúdio de três mestres mundialmente famosos, reunidos numa equipa que trabalhava, sob uma identidade comum e com perfeito espírito de união, para as mais importantes editoras europeias, entre elas a Sergio Bonelli, a fábrica de “nuvenzinhas” — isto é, de fumetti – onde tinham nascido Tex, Zagor, Ken Parker, Mister No, Martin Mystère e tantos outros heróis de prestígio da BD popular, com tiragens que faziam inveja aos seus concorrentes noutras áreas.

Na mansão Blasco: Luís Diferr, Catherine Labey, Jesús Blasco, Dr. Chaves Ferreira e Eugénia Silva (de costas).
Mas o que me causou mais surpresa e prazer foram os originais que Adriano tinha em cima de uma enorme mesa pejada de papéis, revistas e documentos de toda a espécie, a condizer com a dimensão e o recheio daquele pitoresco “santuário” artístico, coberto por uma larga clarabóia, onde ele e os irmãos passavam muitas horas do dia, isolados do resto da casa de três pisos, como se vivessem num mundo à parte… O mundo da sua fantasia, o mundo onde Tex já começava, naquela altura, a transfigurar-se, adquirindo os traços que o mágico sortilégio de uma nova “escola”, mais expressionista e enérgica (para não dizer mais sensual), lhe imprimiria indelevelmente.
Foi com intenso fascínio que contemplei o traço de Jesús Blasco (para mim era o único que emergia naquelas manchas de tinta que pareciam animar-se com vida própria), examinando um a um os magníficos originais de invulgares dimensões que Adriano me mostrou, com uma figura que reconheci imediatamente, apesar de nunca ter lido nenhuma das suas histórias. Sim, era mesmo Tex Willer, o destemido ranger do Texas, que tinha passado, pela primeira vez, de mãos italianas para as do mais famoso trio de desenhadores do velho continente… Tex Willer que, depois daquele coup de foudre que senti perante os originais dos “hermanos” Blasco, iria tornar-se também meu inseparável companheiro de aventuras!

Página do Tex nº 214 – argumento de Claudio Nizzi e desenhos de Jesús Blasco- edição brasileira (da Globo),que Jorge Magalhães terá adquirido na estação do Rossio.
Enquanto me mostrava os originais, Adriano falava com entusiasmo desse novo trabalho. Tive a sensação de que para o clã Blasco — Pili, “la hermanita”, também era presença constante na casa, mas já não desenhava — aquele episódio de Tex não constituía simplesmente uma tarefa rotineira, que eles executavam com o seu habitual e consumado profissionalismo… mas algo diferente e mais importante, como que a “chave mágica” que lhes permitiria abrir as portas de outro “reino” que também os fascinava. Fosse ou não impressão minha, sob o efeito das animadas palavras de Adriano, do brilho que lhe via no olhar e da satisfação que lhe sentia na voz, a constatação final é que esse sonho se realizou, durante os últimos e frutuosos anos da carreira artística dos três inseparáveis fratelli (que se tornaram tão populares em Itália como na sua própria pátria).

Capa do Tex nº 214 – argumento de Claudio Nizzi e desenhos de Jesús Blasco- edição brasileira (da Globo),que Jorge Magalhães terá adquirido na estação do Rossio
Escusado será dizer que, quando relatei esta inolvidável experiência aos meus companheiros de viagem, ficaram todos (sobretudo o Geraldes Lino) roídos de inveja! Que fizera eu para merecer tal honraria? Na verdade, não sei… Mas quem os mandou a eles ficar no paleio, enquanto eu me esgueirava com o Adriano para o sítio mais discreto e especial da casa, a sua verdadeira “alma”, naquele vasto sótão onde se respirava a atmosfera de um “ninho” de artistas?!…
Passei, desde então, a percorrer os quiosques, à cata de novos exemplares das revistas brasileiras que chegavam regularmente ao nosso mercado. E passei também a apreciar com outros olhos o traço dos primitivos criadores de Tex, como Gallepinni, Letteri e Ticci, embora, devo confessá-lo, a minha preferência continuasse a recair sobre os autores da “nova vaga”, a carismática “escola” ibérica em que, depois de Jesús Blasco, também pontificariam Victor de la Fuente, José Ortiz, Antonio Segura e Alfonso Font.

Página do Tex nº 214 – argumento de Claudio Nizzi e desenhos de Jesús Blasco – edição brasileira (da Globo).
Aliás, não eram os únicos, pois nessa época coleccionava igualmente a Epopeia-Tri, da Ebal, com a trepidante Storia del West do Gino d’Antonio, e o Ken Parker, da Vecchi, que me encantava devido aos seus guiões profundamente humanistas, sobretudo quando eram desenhados por Ivo Milazzo.
Hoje, com tantos dos meus ídolos já desaparecidos, as coisas mudaram muito, mesmo no universo de Tex… mas, na maioria dos casos, até para melhor. Claudio Villa, Fabio Civitelli, Andrea Venturi, Pasquale del Vecchio, Maurizio Dotti, os irmãos Cestaro, entre outros, são bons exemplos disso. Nunca tanta qualidade gráfica (e não só) reinou nos domínios do Águia da Noite, graças a uma renovada equipa de desenhadores e argumentistas, em boa hora escolhida por Sergio Bonelli!
UMA VIAGEM “ACIDENTADA”
Mas deixem-me voltar à fantástica viagem que fizemos, nesse soalheiro mês de Maio de 1984, ao Saló del Comic de Barcelona, onde reencontrámos ou ficámos a conhecer outras grandes figuras da BD espanhola e mundial, como Manfred Sommer, Mariano Ayuso, Juan Espallardo, Angel Puigmiquel, Juan Iranzo, Juan Gimenez, José Ortiz, Jordi Bernet, Alberto Breccia, Luís Bermejo (alguns infelizmente já falecidos), que nos acompanharam na festa de encerramento do Salão, depois da atribuição dos prémios, seguida por baile que durou toda a noite numa das maiores discotecas de Barcelona.

Na mansão Blasco: Jorge Magalhães, Geraldes Lino e Eugénio Silva (de costas): 2º plano: Adriano, Alejandro e Luís Diferr.
Foi durante esse animado baile que o Eugénio Silva, que tem uma costela espanhola e era danado para dançar, escorregou e partiu um pé, obrigando-nos a deixar a festa à pressa e a levá-lo ao hospital, onde permanecemos o resto da noite, sem sabermos se lhe dariam alta a tempo de regressar connosco a Portugal. Felizmente, a fractura não era grave e o Eugénio lá se conseguiu amanhar com o pé engessado e as “canadianas”… embora a dança, agora, fosse outra!
Nunca mais esqueci essa cena infeliz, mas ao mesmo tempo caricata, que quase tinha posto “fora de combate” um dos nossos elementos. Passámos a viagem de regresso (tínhamos ido e voltámos todos de autocarro, menos o Geraldes Lino, que preferiu o avião) a contar anedotas sobre o importuno acidente, para animar o Eugénio Silva. De tal jeito, que um casalinho que tinha aguentado o nosso entusiasmo, à ida, durante todo o trajecto… desabafou, a páginas tantas, pedindo que os deixássemos dormir um pouco, pelo menos dessa vez! O que acabámos por fazer, devido ao cansaço, mas o frio que rapámos naquela noite, ao atravessar a serra de Guadarrama, por causa do aquecimento do autocarro se ter avariado, roubou-nos toda a disposição para o sono. É que nem mantas havia a bordo!…

Na mansão Blasco: Alejandro, Eugénio Silva, Diferr, Geraldes Lino; de pé: Jorge Magalhães e Adriano Blasco.
Tempos depois, num quiosque da estação ferroviária do Rossio, em Lisboa — lembro-me disso tão bem como se fosse hoje! —, encontrei finalmente à venda o primeiro exemplar de Tex com uma história desenhada pelos irmãos Blasco (nº 214 da edição brasileira)… a mesma que eu tive o privilégio e a ventura de admirar no meu primeiro encontro “a sério” com aquele que é hoje um dos meus heróis favoritos e a referência máxima e sempre viva (depois da passagem à “reforma” de Blueberry) do genuíno western em banda desenhada.
* Texto do saudoso Jorge Magalhães (escritor, tradutor, coordenador editorial, autor de banda desenhada e ilustre sócio do Clube Tex Portugal) publicado originalmente na Revista nº 1 do Clube Tex Portugal, de Novembro de 2014.
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