As Leituras do Pedro*
Júlia #9 (nova série)
Histórias originalmente publicada em Julia #208 (SBE, Itália, 2016)
Giancarlo Berardi e Maurizio Mantero (argumento)
Antonio Marinetti (desenho)
Mythos Editora
Brasil, Julho de 2022
160 x 210 mm, 128 p., pb, capa cartão
R$ 37,90
Tex #638/#3 O Manicómio
Tex #639/#4 Os Mistérios de São Francisco
Tex #640/#5 O Hospício dos Horrores
Histórias originalmente publicadas em Tex #738 a #740 (SBE, Itália, 2022)
Mauro Boselli (argumento)
Raul Cestaro e Gianluca Cestaro (desenho)
Tex #641/#6 Sierra Nevada
Tex #642/#7 O Retorno de Padma
Tex #643/#8 No Calor do Deserto
Tex #644/#9 O Triunfo de Mefisto
Histórias originalmente publicadas em Tex #741 a #744 (SBE, Itália, 2022)
Mauro Boselli (argumento)
Fabio Civitelli (desenho)
Mythos Editora
Brasil, Dezembro de 2022 a Junho de 2023
160 x 210 mm, 112 p. (cada) 128 p. (Tex #644), pb, capa cartão
R$ 29,90 (cada); R$ 31,90 (Tex #644)
Qualquer série de banda desenhada (o que me interessa no presente caso) obedece a um determinado número de regras e princípios. São eles definem o que a série é, que lhe dão consistência e continuidade e que permitem ao leitor saber o que deve esperar quando se abeira dela – é isso que faz dele leitor fiel (ou não).
Paradoxalmente, a quebra dessas regras ou os desvios a esses princípios não são necessariamente negativos e, nalguns casos, até podem (e)levar a sua leitura a um outro nível.
Esse tipo de regras e de princípios estão presentes – de forma muito vincada – na Disney, na Marvel, na DC Comics ou na Bonelli – empresas detentoras das personagens – ou, mesmo que de modo mais diáfano, em qualquer outra série que vos possa ocorrer.
Pego num primeiro exemplo: Júlia, a criminóloga de Garden City, belíssima criação de Giancarlo Berardi e presença regular nas minhas leituras e neste blog, é um exemplo. Sabemos que se move num mundo realista e que a sua acção surge fundamentalmente no estudo psicológico das motivações pessoais como base para encontrar as razões para o crime, mais do que na simples busca de culpados. Há uma galeria de personagens fixos, com características e comportamentos próprios e determinadas situações que balizam os relatos.
Por isso, quando a protagonista se transforma demasiadamente numa heroína de acção, perdendo o seu lado humano, a leitura torna-se algo incómoda e menos credível. E quando, como no caso desta edição, regressa “o carrinho esperto”, com vontade própria e capacidade de decisão para lá da sua condição de máquina, ela fica completamente destruída e leva o leitor a pensar se não se enganou na série…
[Curiosamente, a um outro nível, a presença recorrente de Myrna – arqui-inimiga jurada, para apropriar um conceito que não tem (grande) lugar num universo vincadamente de contornos realistas – consegue conferir um aliciante diferente às narrativas, pela relação de obsessão amorosa/ódio que a assassina em série expressa para com Júlia. Mas convém realçar que isto apenas funciona porque essas aparições são esparsas e contidas…]
Num mesmo paralelismo, curiosamente, as presenças de Mefisto em Tex têm o mesmo efeito, ao introduzirem uma nota de fantástico num western, também ele realista em termos narrativos, embora tradicionalista no sentido da quase “omnipotência” do ranger que o protagoniza.
No entanto, se tenho um carinho especial pelas histórias que efectivam os confrontos improváveis entre um representante da lei no Velho Oeste e um mago com (reais) poderes mágicos – até porque é de um desses embates que são feitas as memórias mais antigas que tenho de Tex – confesso que o seu mais recente regresso – ao longo de sete longas edições(!), artisticamente entregues aos irmãos Cestaro e a Fabio Civitelli – me deixou dividido.
Se por um lado o confronto com alguém com capacidades que ultrapassam a compreensão humana torna o protagonista menos invencível e, logo, mais humano, sabia de confrontos anteriores que, no final, ultrapassadas as situações limite em que tudo parecia perdido – e em que Mefisto literalmente não quis dar o golpe final – Tex, Carson, Kit e Tigre acabarão por vencer, mesmo que apenas temporariamente, esse inimigo e os seus aliados ocasionais.
Só que, desta vez – sinal dos tempos e de leitores mais exigentes? – Mauro Boselli optou por proporcionar amplas explicações para os poderes sobrenaturais de Mefisto e Yama – e também de Padma e Narbas. Se em termos narrativos isto até torna a história mais forte e consistente, reconheço, a verdade é que exponencia o desvio da mesma em relação às ‘regras e princípios’ que geralmente norteiam Tex.
O diabo em pessoa, ressurreição e apropriação de corpos, projecções mentais e outras situações semelhantes, lógicas no contexto específico desta narrativa, no entanto fazem dela um ‘não-Tex’ e afastam-no do western tradicional que os leitores esperam.
Suponho que, estarei quase sozinho nesta apreciação de uma história – que também por isso se estende mais do que o habitual e até do que o desejável – mas a minha impressão de leitura foi esta. Arriscando que alguns leiam nestas palavras uma contradição, senti que a não explicação – ou o deixar desta em zonas sombrias a que o leitor só se acerca se quiser – patente em anteriores confrontos de Tex e dos seus pards com Mefisto as tornavam mais passíveis de aceitação no âmbito de um universo forte e solidamente construído, baseado em regras e princípios que todos entendem.
* Pedro Cleto, Porto, Portugal, 1964; engenheiro químico de formação, leitor, crítico, divulgador (também no Jornal de Notícias), coleccionador (de figuras) de BD por vocação e também autor do blogue As Leituras do Pedro
(Imagens disponibilizadas pela Mythos Editora; clicar nelas para as apreciar em toda a sua extensão)