As Leituras do Pedro*
J. Kendall #151 – Aventuras de uma criminóloga
Inclui Julia #192 e #193 (Itália, 1998)
Myhtos Editora
Brasil, Março de 2021
135 x 180 mm, 256 p., pb, capa mole, bimestral
R$ 24,90
A gangue
Berardi e M. Mantero (argumento)
Antonio Marinetti (desenho)
O quarto do pânico
Berardi e M. Mantero (argumento)
Steve Boraley (desenho)
Sem (a) protagonista
Nas histórias de Julia Kendall, é normal que ela partilhe o protagonismo com os criminosos que acabará por investigar. Menos normal, penso eu – confesso que não fui verificar – é que lhes entregue completamente a boca de cena, deixando-se ficar no fundo, quase na sombra.
Escrito de outra forma, nas duas histórias deste volume, Julia apenas aparece em 40 das 126 pranchas de A gangue e em 35 do segundo relato, O quarto de pânico.
No primeiro caso, a história centra-se num assalto bem sucedido a uma carrinha de transporte de valores, que começa a descambar quando as diferentes ambições dos diferentes componentes do bando entram em choque. Análise sociológica por excelência, com tempo – também pela ausência da putativa protagonista – para aprofundar a forma de ser de cada um e os motivos que os fizeram quem são, A gangue leva-nos mais uma vez a questionar o que a sociedade faz de (tantos de) nós.
No segundo caso, a ausência de Julia é ainda mais notória, não por estar ausente em mais uma mão cheia de páginas, mas porque do outro lado – na maioria delas – está Myrna Harrod, a besta danada de Julia, a serial killer que nutre por ela uma estranha combinação de amor, ódio e pulsão sexual, difíceis de explicar.
Tenho escrito algumas vezes que dentro da moderada linha editorial de Julia há alguns relatos que incomodam pelo desvio a essa norma – aqueles em que ela assume um papel mais físico que me parece não combinar com a sua fragilidade e habitual posicionamento.
E depois, existem as narrativas com Myrna, vilã ocasional de serviço, que podendo chocar com o realismo dominante na série, lhe traz ‘um não sei bem o quê’ que torna essas histórias especiais. Mesmo que retirem um pouco da consistência – da pureza…? – à heroína de papel que tantos sentimos de carne e osso. Porque nos garantem uma maior exposição das suas fraquezas – vejam a auto-análise que Julia faz neste número – porque propiciam relatos mais violentos, de modo explícito e, principalmente (mesmo que possa soar estranho), implícito e porque neles sabemos que, mesmo ganhando, Julia ficará a perder – e perdendo perde em (quase) toda a linha. Recuperando, assim, alguma da sua aura humana e frágil, não invencível nem omnisciente.
Não consigo terminar este texto sem – mais uma vez – destacar a mestria narrativa de Giancarlo Berardi que, nestes dois relatos de forma sublime, faz com que os diferentes momentos narrativos – no primeiro: assalto/vidas dos assaltantes/investigação; no segundo o triângulo Charlotte/Myrna/Julia – se vão encadeando de forma tão perfeita, que por vezes quase parece que tudo está a decorrer num mesmo espaço, para além da natural simultaneidade dos acontecimentos.
* Pedro Cleto, Porto, Portugal, 1964; engenheiro químico de formação, leitor, crítico, divulgador (também no Jornal de Notícias), coleccionador (de figuras) de BD por vocação e também autor do blogue As Leituras do Pedro
(capa disponibilizada pela Mythos Editora; pranchas disponibilizadas pela Sergio Bonelli Editore; clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)