Por Mário João Marques
Civitelli é um dos grandes e marcantes desenhadores da série, não só pela sua personalidade e carreira, mas sobretudo porque entre o autor e Tex sempre existiu uma relação perfeita, feita de muita entrega e paixão. Desde cedo, Civitelli foi capaz de compreender que a banda desenhada não se reduz a um mero conjunto de desenhos com maior ou menor dinamismo, também é, designadamente, uma arte feita de artífices que trabalham no duro, ansiando pelo reconhecimento de um público cada vez mais exigente. O desenhador deve experimentar novas soluções, ler e acompanhar o que se vai fazendo noutros domínios como o cinema ou a pintura. Não basta dominar a técnica do desenho, é fundamental conhecer as regras e as técnicas da banda desenhada, desenvolver uma grande cultura visual. Ao colocar em prática esta forma de pensar, Civitelli contribuiu de forma muito evidente para que Tex, sem renegar a sua origem popular, passasse a ser visto e identificado como um produto de grande qualidade.
Cultivando a paixão pelo desenho, Civitelli nunca teve formação artística assimilando estilos e tendências através da leitura de revistas de banda desenhada. Começou a trabalhar em 1974, no StudiOriga de Graziano Origa em Milão, onde ilustrou a série Lady Lust. Passou por editoras como Dardo, Ediperiodici, Universo e Mondadori, onde desenhou várias séries (incluindo alguns super-heróis da Marvel como Quarteto Fantástico e Homem Aranha, escritas por Alfredo Castelli), tendo, inclusive, chegado a assumir um pseudónimo, Pablo de Almaviva, na série Doctor Salomon com argumento de Silverio Pisu. Curiosamente, Sergio Bonelli apreciava muito este “autor”, chegando a tentar contactá-lo várias vezes, mas sempre sem sucesso, até ao dia em que lhe colocaram na sua secretária umas pranchas de um jovem vindo de Arezzo e que tinha passado na editora para apresentar os cumprimentos de Fernando Fusco, um dos desenhadores históricos de Tex. Sergio Bonelli reconhece imediatamente o traço de Pablo de Almaviva, o qual, afinal, tratava-se de um italiano de nome Fabio Civitelli. Os seus primeiros trabalhos na SBE vão ser em Mister No, trabalhando com Guido Nolitta, Alfredo Castelli, Claudio Nizzi e Tiziano Sclavi. Desenha ainda Pomeriggio Cubano e L’Avana – Serenata Cubana, duas aventuras escritas por Giuseppe Ferrandino em 1983, publicadas respetivamente nas revistas Orient Express e Giungla!. Com a aventura I Due Killers, escrita por Claudio Nizzi, inicia a sua brilhante carreira em Tex, corria o longínquo ano de 1985, passando de então para cá a dedicar-se quase em exclusivo ao ranger, tendo de permeio desenhado um Almanacco dell’Avventura e uma breve aventura de Dylan Dog.
Ao longo dos anos, Civitelli foi percorrendo um caminho muito próprio, feito de constante inovação, e o facto de trabalhar para uma série considerada comercial nunca o impediu de inovar, experimentar, renovar e melhorar a própria qualidade do seu trabalho, crescendo uma sintonia flagrante entre autor e personagem, um amadurecimento constante e gradual de aventura para aventura, um trabalho feito de paixão, carinho e sobretudo muito orgulho. Civitelli soube sempre compreender que Tex não é popular só porque vende milhares de cópias, mas sobretudo porque é um produto de qualidade capaz de chegar a todas as franjas da sociedade e a todos os tipos de leitores, cada vez mais exigentes, e que não se contentam apenas em ler, também visualizam, contemplam e apreciam a arte. Civitelli assume-se, assim, como um artista na sua plenitude, um autor em constante aprendizagem e renovação, sempre em constante busca de novos territórios gráficos, uma permanente evolução que o leva a adotar determinadas caraterísticas técnicas, sem nunca renegar o evidente classicismo do seu traço, realista, apurado, preciso e limpo, constituindo cada trabalho uma nova solução gráfica, sustentada no aprofundamento de técnicas já desenvolvidas sem, contudo, se coibir em experimentar outras.
A característica técnica que mais facilmente transparece do desenho de Civitelli é o denominado pontilhismo, que o autor vai utilizar como forma determinante e concreta para conferir dinamismo, contraste e luminosidade, pontos importantes do seu desenho. O pontilhismo consiste na utilização de pontos organizados bem próximos uns dos outros e sobrepostos, dando a impressão de um todo. O desenho possui sombras que combinam com a luminosidade, proporcionando um efeito de dimensão e profundidade. O pontilhismo em Civitelli advém desta incessante procura por novas soluções e nasce da necessidade do autor em trazer tons intermédios para a série (quando na SBE havia apenas o preto e o branco), permitindo criar um dinamismo ímpar, superar as exigências técnicas dos contrastes, criar uma sombra ou uma claridade perfeitamente definida. Integralmente realizado à mão e sem recurso a qualquer auxiliar informático, o pontilhismo em Civitelli é um elemento essencial, decisivo, primordial e protagonista, não se reduzindo a uma mera técnica decorativa.
Outro ponto importante no desenho de Civitelli são as técnicas empregues para conferir dinamismo, o qual pode ser transmitido por via das fisionomias, dos movimentos ou das posturas que o autor imprima às personagens, mas também por via de efeitos gráficos como pontos, linhas, traços, onomatopeias que acompanhem a ação e possam ser capazes de apelar à atenção e concentração do leitor. Na primeira fase da sua carreira em Tex, muitas das cenas de ação em Civitelli são dominadas por traços que partem do centro para o exterior, outros que, pelo contrário, fluem para o interior, traços que acompanham o movimento do corpo das personagens, tudo sublinhado por onomatopeias, resultando daqui um dinamismo ímpar. Missione a Boston é a aventura onde Civitelli consegue explorar ao limite todas estas caraterísticas, não hesitando em sair momentaneamente do classicismo que o carateriza, como forma de exaltar esta técnica.
Apesar de aceitar com naturalidade a crescente importância da cor, Civitelli prefere trabalhar o preto e branco, porque ensina um autor a dominar os efeitos entre o claro e o escuro, ensina a conferir profundidade e legibilidade, permite ao autor controlar o trabalho até ao final, apresentando-o ao leitor tal como foi elaborado, não sendo necessária a intervenção de um colorista, que muitas vezes pode não compreender plenamente as indicações do desenhador. Por isso, os contrastes entre claro e escuro e os efeitos que estes possam proporcionar, são outra técnica de particular importância no trabalho do desenhador, existindo uma permanente busca por uma gama de luzes e sombras que possam tornar o desenho o mais realista possível.
Esta arte ímpar também tem muito de técnica fotográfica, outra das paixões de Civitelli, e que surge como um complemento do desenho, uma vez que os enquadramentos, o estudo da luz e da perspetiva fotográfica são bases auxiliares bem evidentes no seu trabalho. A fotografia obriga a saber enquadrar algo nos limites de uma objetiva e o modo de o fazer, por isso o desenho de Civitelli acaba por transmitir a visão do autor, o modo como observa e enquadra uma determinada realidade tal e qual ela se apresenta aos seus olhos, existindo assim uma notável fidelidade em transmitir o que se efetivamente visualiza.
Em três décadas de trabalho, Civitelli trabalhou com grandes argumentistas de Tex como Gianluigi Bonelli, Claudio Nizzi, Mauro Boselli ou Gianfranco Manfredi. Desenhou inúmeras personagens, umas mais anónimas, outras célebres como El Morisco, o Tigre Negro, Mefisto ou Yama. Desenhou uma plenitude de ambientes e cenários, combinando os mais poeirentos e agrestes do Velho Oeste com ambientes fantásticos, pantanosos, ou ainda os elegantes ambientes citadinos. Teve a honra de desenhar o número 700 de Tex e a prancha 100.000. Trabalhou noutros projetos da série, ilustrando obras como Tex – A História da Minha Vida, de Mauro Boselli ou O Meu Tex de Giovanni Battista Verger. Expôs por inúmeras vezes e em variadas ocasiões um pouco por todo o mundo. Também já teve oportunidade de intervir, de modo mais ou menos direto, em argumentos para aventuras do ranger, uma faceta menos conhecida mas definidora do ecletismo e da importância do autor na série, possibilitada pela cumplicidade e sintonia que sempre manteve com Claudio Nizzi, o que lhe permitiu estar à vontade para sugerir, modificar, variar, propor ideias, intervir para além do desenho.
Três décadas de uma contínua e constante evolução, que conduziram Civitelli a experimentar novas soluções gráficas, inspirado e influenciado por múltiplas fontes e paixões e que catapultaram o desenhador aretino ao patamar dos grandes autores de sempre de Tex. Pela sua antiguidade, pela inovação e pela evolução que emprestou ao grafismo da série, podemos falar com toda a legitimidade num legado ou numa herança do autor, porque Civitelli soube compreender, melhor e mais rapidamente, a importância da documentação, da minúcia e do detalhe. Este é o caminho que o próprio Civitelli conscientemente desbravou, ciente da importância em inovar e modernizar. E são poucos os que conseguem, tão notavelmente, encontrar este equilíbrio perfeito entre estética e narração visual.
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Fabio Civitelli, com certeza está entre os TOP 10 dos desenhistas de Tex, sua arte é muito bonita.