As Leituras do Pedro: Le Storie: Sangue e Gelo

As Leituras do Pedro*

Le Storie: Sangue e Gelo
Tito Faraci (argumento)
Pasquale Frisenda (desenho)
Levoir/Público
Portugal, 10 de Maio de 2018
190 x 260 mm, 120 p., pb/cor capa dura
10,90 €

A atracção pelo desconhecido

“E agora, se isto fosse uma história num livro, o leitor exigiria uma explicação… mas ao mesmo tempo, fugiria dela como da peste.”
In Le Storie: Sangue e Gelo
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Cheguei a Le Storie – excepção para mim, juntamente com Dragonero, nesta colecção Bonelli – como a maioria dos leitores: sem conhecer (nada d)a série que, a exemplo da mítica Un Uomo, Un’Avventura, utiliza contextos históricos reais para narrar aventuras ficcionadas. Mas cheguei com grandes expectativas, geradas pelas boas críticas que lhe fui conhecendo.
A leitura confirmou-as.
[Posso ter escrito um pouco mais do que alguns desejavam sobre o enredo deste volume, embora pense que não o fiz; avancem acutelosamente, por vossa conta e risco…]
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A liberdade da temática e a atracção do pressuposto desta série, lançada em 2012, inevitavelmente atraiu grandes autores – de dentro e de fora do universo Bonelli para Le Storie, como é o caso de Tito Faraci e Pasquale Frisenda neste Sangue e Gelo – pois podem narrar todo e qualquer tipo de história. E até combinar nelas várias temáticas.
Por isso se torna difícil ‘classificar’ Sangue e Gelo. Ambientada na Rússia, na derrocada da invasão napoleónica, começa por ser uma narrativa histórica.
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Centra-se num pequeno grupo de soldados, em retirada, semi-perdidos, abandonados, divididos entre o respeito pela autoridade e a descrença que os domina e os leva a ultrapassar os seus próprios limites naquela situação. A crítica à guerra – a todas as guerras – é o ponto seguinte que o leitor mentalmente anota – inevitavelmente a par das tensões nos relacionamentos que os momentos de desespero provocam, com o manter da autoridade a todo o custo, por um lado, e, por outro, a hesitação entre o respeito que lhe é devido e a vontade de assumir o controlo do seu próprio destino – seja lá o que isso for quando se está num país estrangeiro, perdidos, numa paisagem sempre igual, sempre gelada.
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Depois, Faraci e Frisenda introduzem a primeira nota distintiva: uma jovem, perseguida por um homem, que busca socorro e protecção – e ajuda para salvar o irmão. O tom muda, assim – ou pelo menos adquire o carácter de aventura que é (sempre) expectável numa produção Bonelli. A missão – mesmo inesperada – renova e transforma aquele pequeno grupo de homens, dá-lhes um rumo e um sentido.
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Entretanto, os autores já deram nova mostra de originalidade. Um deles, o cabo Écrienne, com vocação de escritor, está a narrar ao seu superior – ao mesmo tempo que a nós – a história. A dizer(-nos) o que viram, o que sentiram, como as coisas correram.
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A partir daqui, as mudanças sucedem-se – não a um ritmo frenético, pois Sangue e Gelo é um relato pausado, recheado de suspense, com silêncios e pausas para o leitor ir absorvendo tudo – e nada ficará como até ali. Um adversário surpreendente vai surgir, o que parecia uma situação limite e desesperada para aquele pequeno grupo de homens, vai revelar-se sê-lo ainda mais, e Faraci e Frisenda, que já nos prenderam completamente, vão levar-nos até ao abismo, numa história que se evidencia como sendo, afinal, de terror – como sendo, afinal, também de terror – com assinalável mestria.
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Graficamente, este tomo de Le Storie é também distinto de todos os outros desta colecção e do geral das produções Bonelli. Se assume o preto e branco para a narrativa de Écrienne ao seu superior, no geral da história predominam os cinzentos, diluídos e difusos, ideais para mostrar o gelo (e a neve) que imperam nos cenários, aqui e ali, pontualmente, de forma cirúrgica, manchados por (literalmente) pequenos clarões vermelho alaranjados, provenientes de um disparo, uma fogueira ou do fogo que, em liberdade, consome indistintamente, em mais um belo exercício artístico (e narrativo) de um Frisenda, cujo brilhantismo os portugueses já tinham descoberto em Tex: Patagónia.
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Terminada a leitura, ecoa a frase citada no início deste texto, que vinca o final em aberto e a possibilidade de interpretação oferecida a cada leitor, que, se por um lado o desesperam, sem as respostas definitivas e as explicações que ansiava, tornam ainda mais estimulante e sugestiva esta introdução (portuguesa) a Le Storie, pela possibilidade de cada um ‘escrever’ a sua conclusão.
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*Pedro Cleto, Porto, Portugal, 1964; engenheiro químico de formação, leitor, crítico, divulgador (também no Jornal de Notícias), coleccionador (de figuras) de BD por vocação e também autor do blogue As Leituras do Pedro

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