Por Mário João Marques*
É um desenhador que se documenta como se fosse ele o argumentista. É um desenhador que se mantém sempre humilde num universo onde cada vez mais encontramos o pretensiosismo. É alguém que fala sempre educadamente, capaz de ouvir o seu interlocutor com toda a atenção. Estamos a falar de Pasquale Frisenda, milanês de nascimento (1970), autor que chegou à banda desenhada muito por vocação, mas também guiado pelo destino.
Apaixonado pelo desenho desde criança, Frisenda decidiu fazer disso a sua profissão quando, em 1986, inscreveu-se num curso de ilustração e banda desenhada na Scuola di Fumetto e Illustrazione de Castelo Sforzesco em Milão. “Naquela época foi uma opção ditada pelo entusiasmo e pela verdadeira paixão pelo desenho e pela banda desenhada. A minha família não saltou de alegria… mas não criou obstáculos à minha decisão”.[i] Nesses anos, através de Pasquale del Vecchio teve oportunidade de conhecer, contactar e trocar experiências com grandes nomes do fumetto, como Carlo Ambrosini, Giampiero Casertano ou Enea Riboldi, todos do Studio Comix, que encorajaram Frisenda a prosseguir o seu caminho, algo que o autor, sempre que se cruza com os próprios, não esquece e faz sempre questão de agradecer a paciência e a atenção.
A ficção científica é uma das suas paixões e quando a Sergio Bonelli Editore (SBE) começa a preparar a série Nathan Never, é o próprio autor que propõe as suas provas à editora, de modo a ser incluído na equipa de desenhadores deste projeto, a qual, no entanto, já estava constituída. A recusa da editora não desmotiva Frisenda, que assume as críticas de Antonio Serra como justas e as vai utilizar como incentivo ao seu trabalho. Começa então a trabalhar com a revista Cyborg da Star Comics, primeiro algumas ilustrações e depois uma história completa, intitulada Tenebra, escrita por Michele Masiero.
Em 1991 surge o salto na sua carreira, ao entrar no atelier de desenhadores de Ivo Milazzo, onde Frisenda vai colaborar no Ken Parker Magazine. “Foi uma experiência muito estimulante, mesmo como ritmo de produção. Éramos poucos e quase todos estreantes, com muito pouca experiência para enfrentar uma personagem narrativa e graficamente complexa como Ken Parker. A rodagem foi lenta, mas ao fim de pouco tempo Ivo Milazzo entregou a cada um de nós uma tarefa, aquela que melhor se adaptava às caraterísticas do próprio desenhador. A mim coube-me a passagem a tinta, talvez porque eu tinha o estilo que melhor se assemelhava ao de Milazzo, de modo a garantir uma maior homogeneidade nas histórias”.[ii] Em 1994, a Parker Editore, que publicava o Ken Parker Magazine, é adquirida pela SBE, e o autor passa a integrar a equipa de desenhadores da segunda fase da personagem criada por Giancarlo Berardi. Inicia-se, assim, o relacionamento de Frisenda com a prestigiada editora milanesa, desenhando duas histórias curtas, Replay e Una Situazione Pesante, o primeiro número especial, I Condannati, assim como os esboços de Faccia di Rame.
Com o cancelamento do Ken Parker Magazine, Frisenda passa para Mágico Vento, assinando o seu primeiro trabalho em 1997, com a aventura La Bestia. A partir do número 32, substitui Andrea Venturi como capista, tarefa que vai manter até ao número 75, em 2003. “Em muitos aspetos, Magico Vento foi a personagem que me permitiu desenhar algumas das coisas que sempre apreciei. Desde a história real do Oeste até à mais fantástica e horrífica que sempre estimulou a minha imaginação e ter à minha disposição uma série que tinha tudo isto pareceu-me um sonho”.[iii] Os seus negros e o traço preciso sublinham o caráter expressionista da série, a que se junta um grande trabalho de documentação do autor, como por exemplo com as cidades da Fronteira, os objetos e utensílios das tribos pele-vermelha ou ainda as armas, algo que Frisenda enfrentou com maior serenidade devido à sua anterior colaboração em Ken Parker.
Em 2009, Frisenda expressa a Sergio Bonelli a sua vontade em mudar de registo e o desejo em confrontar-se com outras atmosferas. Mas o seu caminho vai voltar a cruzar-se com outra personagem do western, depois de convidado pelo editor a desenhar um Speciale para Tex, o que não lhe permitirá mudar de género, mas surgirá como uma oportunidade única e irrecusável para o autor, assinando com Mauro Boselli a aclamada aventura Patagonia. “A primeira sensação foi de surpresa, porque não pensava desenhar Tex…”, “Depois, de repente, fiquei amedrontado com a possibilidade de não estar à altura do desafio e antes de entregar as primeiras pranchas questionei-me se o que estava a fazer estava bem, redesenhando variadas vezes as mesmas pranchas, sempre insatisfeito com o resultado.”[iv] O apoio de Sergio Bonelli, Decio Canzio e Mauro Boselli ajudaram o desenhador a dar o máximo, tornando Patagonia num dos melhores Speciale dos últimos anos. O trabalho de Frisenda é notável, intenso de carga emotiva, mercê de claros escuros sublimes, da expressividade das personagens ou do detalhe imprimido nas cenas de batalhas. Em resultado disso, Frisenda começa a trabalhar para a série mensal do ranger, estreando-se com a aventura Il Segreto del Giudice Bean, a que se seguirá a curta história a cores Sparate sul Pianista, publicada no Color Tex 12.
Nos últimos anos a sua atividade não se tem esgotado em Tex, uma vez que o desenhador já teve, entretanto, oportunidade de apresentar outros trabalhos, tais como Il Grido Muto (breve história para o Dylan Dog Color Fest, 2010), Sangue e Ghiaccio (Le Storie, 2016), dois episódios de Deadwood Dick (mini série do catálogo Audace da SBE, 2018) ou ainda Peaux Épaisses (dois volumes para a editora francesa Humanoides Associés, previstos para 2020 e 2021). Entretanto, na última edição do festival Lucca Comics & Games, a SBE anunciou a adaptação para banda desenhada do clássico da literatura italiana e bestseller mundial Il deserto dei Tartari, de Dino Buzzatti, a cargo de Michele Medda e Pasquale Frisenda.
O western, como vimos, tem sido uma constante na carreira de Frisenda, apesar de Ken Parker, Mágico Vento, Tex e, mais recentemente, Deadwood Dick, assumirem variantes diferentes. Com Ken Parker, Frisenda desenha a sua primeira grande personagem, uma personagem diferente de Tex, que se move, pensa e age de outra forma, “relegada” muitas vezes para um plano mais secundário nas suas aventuras, e que nem sempre sai vencedora de algumas das causas pelas quais se bate, no fundo um produto do revisionismo que o western sofreu nos anos 70. Em Mágico Vento, a série de horror/western criada por Gianfranco Manfredi, vamos encontrar uma equilibrada gestão das caraterísticas de Ken Parker e Tex, já que se trata de um western situado entre o mito e a realidade, misturando o mundo poético e sobrenatural das tradições dos nativos americanos com a epopeia, muitas vezes trágica, da própria História do Oeste, sem esquecer o caráter gótico de muitas das suas aventuras. Já Tex, o herói clássico por excelência, deve muito da sua popularidade e longevidade ao facto de manter inalteráveis determinadas caraterísticas, sempre no centro das atenções, numa luta contínua por um conjunto de valores que não o impedem de se manter pujante e em forma. De entre todos, Deadwood Dick acaba por ser a personagem mais realista, no sentido em que se trata de alguém que tenta apenas viver a sua vida, fazendo o mesmo que qualquer um de nós na mesma situação. No fundo, todos estes heróis são interessantes, assim como, de acordo com o desenhador, é estimulante o trabalho necessário para os interpretar no papel da forma mais correta possível.
Seja qual for o tipo de registo, para Frisenda a banda desenhada pode tornar-se numa arte e ser a representação exata daquilo que um autor pretende comunicar, ou seja, algo pessoal. O autor deve preocupar-se em apresentar o melhor produto possível, tendo em atenção tudo aquilo que a história possa necessitar, como a atmosfera, os ambientes ou as personagens. Frisenda tem como objetivo tornar-se num bom narrador de imagens e tentar ir mais além daquilo que o argumento propõe, quer seja através de um enquadramento mais decisivo ou de um desenho particularmente mais elaborado. No fundo, Frisenda pretende capturar a essência do argumento, mas colocar algo de pessoal, algo que o leitor possa identificar como sendo do desenhador. Por isso, depois de receber e ler um argumento, Frisenda vai anotando e sublinhando os pontos que lhe parecem mais importantes do ponto de vista narrativo e da documentação, para posteriormente consultar a sua vasta biblioteca, onde pontificam muitas fotografias, livros, ilustrações e até filmes. A propósito da sua preparação feita para Deadwood Dick, Frisenda referiu a necessidade de estudos preparatórios e um par de provas para a capa do cartonado publicado pela SBE. Escrito por Maurizio Colombo, a partir de uma história de Joe R. Lansdale, Fra Il Texas e L’Inferno situa-se num período histórico bem preciso, obrigando a um prévio trabalho preparatório de documentação antes de começar a desenhar, de modo a estabelecer com o argumentista alguns pontos importantes, algo que se mantém mesmo durante a produção das pranchas. O desenhador tem de mergulhar na atmosfera do argumento, aspeto que levou Frisenda a inserir detalhes mais truculentos, por exemplo em Deadwood Dick, quando comparado com Tex. Para Frisenda, as histórias de Lansdale contêm uma descrição dos efeitos da violência muito mais evidente do que nas publicações tradicionais da SBE, algo que deveria ser levado em consideração, contudo sem exagerar em invocar algo que, por si só, já está explícito.
Apesar de Frisenda preferir sugerir do que descrever em detalhe, é o próprio autor que refere muitas vezes não poder evitar ou limitar o que quer que seja. Por exemplo, em alguns episódios de Mágico Vento Frisenda não se coibiu de detalhar situações dramáticas e cruéis para sublinhar o significado de ser atingido por uma bala ou por uma flecha. No caso específico de Tex, Frisenda revelou que, no início, a maior dificuldade foi a gestão da narração muito própria das aventuras do ranger, aspeto que foi sendo moldado com a ajuda fundamental de Mauro Boselli, mas sobretudo com o seu próprio caráter de autor em permanente busca do melhor resultado. Também a composição física do ranger exigiu cuidados acrescidos, porque a personagem bonelliana deve transmitir sempre aquilo que ele é, a quinta essência do herói.
Apesar do desejo de Frisenda em poder tornar-se num autor completo, escrevendo também os seus próprios argumentos, a verdade é que para já a sua preocupação é evoluir graficamente. Autor com elevado sentido auto-crítico, Frisenda está em permanente insatisfação com o seu trabalho, apontando frequentemente defeitos e lacunas. Exemplo disso, quando renunciou continuar a ser o capista de Magico Vento, devido a exigências entre o equilíbrio da qualidade das capas e a qualidade das suas pranchas, que o autor achou não conseguir dar resposta. Apesar de tudo, a sua carreira fala por si, onde pontificam, pelo menos para já, diversos prémios consagrados: o INCA para a melhor capa de 2000 e melhor capista em 2001; o prémio Fumo di China na categoria de melhor desenhador realista em 2001 e 2004 e melhor capista em 2001; o prémio Milano Cartoomics como melhor desenhador em 2001; o Gran Guinigi em 2009, na qualidade de melhor desenhador do ano com o seu trabalho em Patagonia, obra que também recebeu uma Menção Especial nos Prémios Micheluzzi da Napoli Comicon e o Prémio Ayaaaak no Milano Cartoomics na categoria de Melhor História.
[i] Il West in Bianco e Nero di Paquale Frisenda, entrevista concedida a Alessandro Olivo ao site Fucinemute, janeiro 2012.
[ii] ibidem
[iii] ibidem
[iv] ibidem
* Texto de Mário João Marques publicado originalmente na Revista nº 11 do Clube Tex Portugal, de Dezembro de 2019.
(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima clique nas mesmas)
Um artista da maior grandeza, ele desenhou e foi capista de várias edições do Mágico Vento. Sua arte é espetacular, pena que em Tex fez apenas duas edições mensais e um Texone, me corrijam se eu estiver errado.
Há ainda a acrescentar a história curta (“Sparate sul pianista“) publicada no Color Tex nº 12 🙂
Parabéns, Mário Marques!
Sempre atirando no alvo certo!
Pois este ano Frisenda e Medda, pelo selo Sergio Bonelli, nos brindam com uma adaptação de “O deserto dos tártaros”, a obra-prima do romancista Dino Buzzati, lançado em 1940, que o consagrou entre os grandes nomes da literatura italiana. O livro foi eleito pela crítica especializada um dos melhores livros do século XX.