Por Sandro Palmas*
Em 2003, durante um jantar, Sergio Bonelli conversava com o seu amigo Gino D’Antonio sobre uma aventura que este deveria realizar para Tex. O editor guardava o firme desejo de uma história desenhada por D’Antonio para o ranger, algo que, no entanto, não convencia Gino, a quem agradava mais outro tipo de história e outras personagens. Numa altura em que D’Antonio desenhava cada vez menos e, pelo contrário, escrevia cada vez mais, Sergio Bonelli conseguiu arrancar o acordo para que o amigo pelo menos escrevesse uma história para o ranger. Para o convencer, apresentou-lhe uma pasta com documentação para uma história sobre os Seminoles, que ele próprio tentava invariavelmente escrever desde há um tempo para um Texone. Em maio de 1970, tinha sido publicado na coleção Storia del West um volume com o título “Acque morte”, que D’Antonio tinha escrito para Sergio Tarquinio, ambientado precisamente nas Everglades da Florida. O passo seguinte para a nova história “Acque morte”, o título inicialmente previsto para a aventura, era encontrar um desenhador que pudesse dedicar-se às 224 pranchas do novo Texone. Gino D’Antonio não se importava de trabalhar com Giampiero Casertano ou mesmo com Sergio Toppi, com quem colaborava nas páginas do Il Giornalino, em suma, dois seus amigos históricos. No entanto, o editor já tinha em mente um nome desde algum tempo, um dos estandartes da equipa de Martin Mystère, personagem a quem, nas próprias palavras de Sergio, “tinha trazido inovação e grandeza às suas páginas”.
Tratava-se, na realidade, do bolonhês Lucio Filippucci, na altura quase cinquentão, e que teve um instante de hesitação antes de aceitar e meter mãos ao trabalho, naquele que viria a ser o vigésimo segundo Texone, iniciado em janeiro de 2004. A hesitação do desenhador é perfeitamente compreensível, e foi mesmo o próprio que referiu o quanto distante estava do western naquela altura, mais habituado a outros géneros, dia após dia, e desde há 15 anos: “a ficção científica, creio mesmo que o fantástico em geral, foi sempre a principal fonte do meu trabalho”. E ainda: “o editor Bonelli insistia, mas eu vacilava, porque nunca fui um texiano. Não era um leitor habitual, identificava-me mais com outro estilo de western, mais moderno, como Ken Parker, ou Blueberry de Giraud”. Mesmo no cinema, eu apreciava os westerns dos anos sessenta, Soldier Blue (Soldado Azul), A Man Called Horse (O Homem a quem chamaram Cavalo). Tex é anos cinquenta, é John Ford. No final, aceitei porque era um belo desafio. Tex é uma personagem exigente, que carrega consigo uma longa história e regras sólidas”. Felizmente, a ajudá-lo a ilustrar o Texone, onde se destaca a verde e luxuriante vegetação tropical da Florida, esteve alguém que é muito próximo de Filippucci, a sua mulher Maria Graziella Buccioli, grande apaixonada de plantas e autora do livro “I giardini venuti dal vento”, que inclui belíssimos desenhos do seu marido.
Ultrapassada facilmente esta dificuldade, certamente não indiferente, convidamos o leitor a folhear uma vez mais o álbum e a debruçar-se sobre os grandiosos detalhes da flora, protagonista absoluta em muitas das páginas do Texone, nas quais, no entanto, o desenhador bolonhês teve que enfrentar o mesmo e duro desafio com que se deparam todos os artistas do lápis e do pincel que se confrontam pela primeira vez com uma personagem como Tex: “no início, Águia da Noite foi um adversário coriáceo, tal como eu já esperava que o fosse, mas depois ficámos amigos… mesmo que tenha sido através de um processo lento e gradual”. A referência para Filippucci foi um desenhador toscano: “devo dizer que para quem se prepara para desenhar Tex pela primeira vez é fundamental que se inspire num mestre; no meu caso foi em Giovanni Ticci, que considero o maior desenhador western contemporâneo”. Em resultado disso, o Tex de Filippucci é um homem de rosto duro, com traços angulosos e com olhos que surgem como fissuras na sua face: “é um homem de aço, com uma vestimenta concreta, armas, com um modo preciso de cavalgar e de olhar”.
O Texone foi publicado em junho de 2008, para o qual foram necessários quatro anos de intenso trabalho, período durante o qual Filippucci foi reconhecido com o prestigiado prémio anual Anafi (2005), conferido ao melhor desenhador, e Gino d’Antonio faleceu na véspera de Natal de 2006. Para quem, como Filippucci, veio do mundo da ilustração e trabalhou tantos anos para a publicidade, seria lícito ansiar por uma capa à altura e a espera dos leitores acabou por se justificar, não ficando desiludidos com aquela que é, certamente, uma das melhores de todos os Texones. Uma outra prova de qualidade foi dada pelo desenhador para a capa da edição especial cartonada deste seu Texone, editada num reduzido número de exemplares pela Editora Alessandro, onde se incluem diversas aguarelas com Tex, os Seminoles e as Everglades, cada uma mais bela que a outra.
As pranchas são dominadas por um estilo muito pessoal, extremamente limpo, nítido e preciso, detalhado e meticuloso, com as personagens bastante expressivas, as vinhetas plenas de dinamismo, com o autor a dar o seu melhor na segunda parte da aventura, a mais difícil de desenhar, com as encantadoras paisagens pantanosas que se assumem como o cenário da parte final da aventura. “No Texone…” conta o desenhador “… notam-se indecisões em algumas faces de Tex, muitas vezes influenciadas de Ticci. Os cavalos, desconhecidos para mim, eram muitas vezes desenhados a partir de fotos ou de outras obras, para não falar de outros detalhes menos visíveis ao leitor. Digamos que me salvei de um trabalho árduo, o não ter de contar com dias e horas empenhado a estudar o abc do western e um ambiente muito particular e desconhecido para mim”.
Sem dúvida, o Texone convenceu toda a redação, tanto que nos primeiros meses de 2008 Filippucci encontra-se perante uma encruzilhada: uma estrada leva-o em direção às pranchas do velho tio Marty; a outra, pelo contrário, é a estrada principal e pretende conduzi-lo pelos mesmos caminhos de De La Fuente, Ortiz, Capitanio, Font e outros, na série mensal de Tex, a publicação mais vendida em Itália. É o próprio Sergio Bonelli a convencê-lo com uma oferta que Filippucci não podia recusar. O acordo alcançado prevê que Filippucci possa dedicar-se também à realização de algumas curtas aventuras para os diversos especiais de Martin Mystère entre 2009 e 2012.
A segunda história texiana representa para o desenhador a primeira colaboração com Claudio Nizzi, que naquela altura trabalhava na primeira parte de uma história que tinha sido aprovada na Primavera de 2007, “Inferno bianco”, título que, posteriormente, será alterado para “L’oro dei monti San Juan”. Para Filippucci, que não lhe agradam os ambientes urbanos, desta vez aguarda-o uma aventura que transporta Tex pelas montanhas do Colorado em pleno Inverno. No sítio da editora, o trabalho do novo desenhador era elogiado na apresentação da história: “Filippucci construiu um western autenticamente clássico e, nas suas arejadas e dinâmicas vinhetas, respira-se o ar da Fronteira”. O mestre bolonhês, com um traço seguro, constrói efetivamente paisagens de sonho que, por si só, valem o preço do álbum. Os ambientes são seguramente a sua força principal.
E é o próprio Filippucci que revela num fórum de Tex aspetos que, segundo ele, devem ser melhorados: “se por um lado acho que consegui chegar a uma boa caraterização pessoal da personagem (de Tex), por outro, aceito perfeitamente as críticas que me possam ser feitas sobre a rigidez expressiva que muitas vezes se encontra nas faces dos pards”. Sobre as críticas de uma certa inexpressividade nos pards, o desenhador sublinha: “reconheço que posso fazer melhor. Como atenuante, posso dizer que a minha carreira de desenhador de Martin Mystère não me ajudou certamente. Passar de uma linha clara sintética e muito estilizada ao realismo dinâmico e sujo de Tex, acreditem, foi duro, mas dei o meu melhor tentando não trair o meu estilo e, ao mesmo tempo, respeitar a personagem”. De passagem, dizemos nós, o objetivo foi absolutamente alcançado!
A história de Nizzi foi concluída no Verão de 2012, e à espera do desenhador bolonhês estava, desta vez, uma aventura escrita por Pasquale Ruju intitulada “La legge dei Forrester”, título que será ligeiramente alterado para “La pista dei Forrester (na realidade, o titulo inicial assemelhava-se a uma velha história do ranger escrita por Mauro Boselli: “La legge di Tex”), novamente em dois álbuns, aos quais Filippucci se dedicou a partir de outubro do mesmo ano. Ainda no fórum, o autor confidenciou pretender desenhar de modo mais constante para a série porta estandarte da editora Bonelli: “interrompi demasiado a história de Nizzi, devido a outros projetos. Tudo bem, eu não suporto a rotina, mas exagerei. Sem prejuízo dos compromissos para o especial de Martin Mystère, que todas as Primaveras absorve-me um mês de trabalho, e as eventuais ilustrações para o livro da minha mulher (a quem, por motivos óbvios, não posso dizer não), decidi dedicar-me totalmente à história de Ruju, sem me dispersar até ao seu final”. Mesmo assim, serão necessários cerca de três anos e meio (não faltarão os compromissos para Martin Mystère e um novo livro ilustrado para a sua mulher “Una giardiniera in cuccina. Erbe, fiori e frutti del mio giardino in tavola”) para podermos ver todas as páginas desenhadas.
Com uma média de cerca de nove pranchas mensais, Filippucci termina a aventura de Tex em maio de 2016 e passa logo em seguida para uma nova história de 32 páginas, que surgirá no Color Tex. Desta vez, Tex estará acompanhado pelo seu filho Kit Willer e a face do ranger evolui para um certo endurecimento dos traços, enquanto a personagem do filho surge mais cabeluda, mas bem conseguida pelo desenhador. “La casacca magica” é o título da aventura e vai contar com duas novidades: a presença da cor e o argumento de Gabriella Contu, a primeira mulher a escrever uma história para o ranger, que nos traz uma recordação comovente ligada ao passado de Kit Willer, ainda criança, que decorre nos cenários sempre extraordinariamente detalhados da reserva navajo, com o traço limpo de Filippucci a adaptar-se a contento à cor.
“L’assedio di Mezcali” é um velho argumento de Claudio Nizzi, escrito no Verão de 2008 e que Canzio tinha aprovado, pedindo-lhe apenas algumas alterações. Nizzi, que pretendia dedicar-se plenamente aos seus romances, decidiu então retirar-se e deu por terminada a sua colaboração com a editora Bonelli. Mauro Boselli, responsável pelos destinos de Tex desde 2012, já tinha tentado por várias vezes trazer de novo Nizzi para a editora, esforços que foram sempre gentilmente recusados, considerando o autor que tinha colocado um ponto final na sua experiência com o ranger. Há uns anos atrás, no entanto, algo mudou. Boselli, que insistia no regresso de Nizzi, achou que seria uma bela ideia recuperar o Tigre Negro, uma das personagens mais conseguidas do autor de Fiumalbo. No início falava-se frequentemente de uma colaboração entre ambos para uma história que retomava (pelo menos em parte) as linhas mestres de uma intriga antiga de Nizzi que fora rejeitada anos atrás por Sergio Bonelli. Por fim, estimulado pela fórmula do Color Tex, que prevê a publicação de histórias curtas de cerca de trinta páginas, Nizzi aceita regressar e acaba até por escrever uma aventura para esta coleção.
Chegamos ao Outono de 2016 e, para o seu regresso à série mensal, Nizzi decide então recuperar o seu velho argumento abandonado em 2008, dando-lhe alguns retoques que acabarão por torná-lo numa sólida história de ambientação mexicana que apresenta um tema clássico do Velho Oeste, como é o assédio por parte de guerreiros índios a uma estação de correios em pleno deserto. Os desenhos foram confiados a Filippucci, visto ser um dos desenhadores com quem Nizzi gosta de trabalhar, já tinham colaborado uma vez e que, após a história curta para o Color Tex, encontrava-se sem compromissos. Filippucci começa a trabalhar no Outono de 2016 e termina a história rapidamente, em pouco mais de dois anos e meio. Como sempre, desenhos claros e limpos. “Ticci é tão bom a desenhar as florestas do Grande Norte, como é ele (Filippucci) a exaltar o brilho dos ambientes do Sul”, lê-se no fórum italiano de Tex. O desenhador é também um mestre a conferir humanismo à montra humana presente no recinto fortificado da estação de Mezcali, em suma um autor perfeitamente sintonizado com a história… Fordiana!
A parceria entre Filippucci e Nizzi renova-se mais uma vez no Outono de 2019 com a história “Un maledetto imbroglio”, que foi pedida ao autor para um Color Tex de 160 pranchas. Novamente, o desenhador perante a cor, uma escolha que não foi feita por acaso, como nada o é com o editor Mauro Boselli. Como leitores, podemos afirmar a nossa felicidade pela escolha, mas da história pouco se sabe. Aguardamos com curiosidade, seguros que a cor valorizará ainda mais as belas pranchas do artista de Bolonha que, desde há quinze anos, afigura-se cada vez mais como um ícone de Tex!
* Texto de Sandro Palmas publicado originalmente na Revista nº 13 do Clube Tex Portugal, de Dezembro de 2020.
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Lucio Filippucci un disegnatore Top!