Homenagem a Jorge Machado-Dias

Por Mário João Marques*

Não posso dizer que conhecia bem o Jorge. Na verdade, creio que nos encontrámos apenas por duas vezes. Ambas em edições do Festival de Banda Desenhada da Amadora, a primeira em 2008, quando fui apresentado ao Jorge através do José Carlos Francisco e, mais recentemente, creio que há dois anos atrás. Apesar disso, o facto do Jorge ter estado na preparação dos primeiros dez números da Revista do Clube Tex Portugal, permitiu-me contactar e falar diversas vezes com ele, sempre por telefone, ocasiões que aproveitávamos para abarcar de tudo um pouco. Da revista, claro, de banda desenhada, certamente, de História, porque era outra das suas paixões, assim como dos seus projetos, de experiências vividas e até de gastronomia, já que muitos dos meus telefonemas interrompiam a preparação do seu almoço. À noite evitava contactá-lo, porque sabia que, a partir de uma certa hora, bem cedo, o Jorge “hibernava” para os seus afazeres e para as suas séries policiais, que me dizia apreciar muito.

Mário João Marques e Jorge Machado-Dias no Festival de Banda Desenhada da Amadora, em 2008

Da sua vida sei pouco e sei fundamentalmente aquilo que ele me contava, tendo eu retido, não sei bem porquê, as suas conversas sobre as noitadas que fazia, os copos que tomava, os cigarros que fumava, em companhia dos seus amigos de tertúlia, entre os quais o saudoso Fernando Relvas. Havia ali um misto de prazer por esses tempos vividos, mas ao mesmo tempo uma certa amargura pelo facto de, segundo ele, ter estoirado dinheiro que dizia fazer-lhe falta.

Um dia falou-me do seu problema de saúde, algo que parecia não o preocupar sobremaneira, sublinhando até que não tinha tempo para pensar muito nisso. Disse-lhe que devia consultar um médico, mas só o fez quando o seu estado de saúde a isso o obrigou. Tínhamos combinado ir ao Festival de Beja para nos conhecermos pessoalmente. Como disse, na primeira vez que estive com ele tinha sido apenas uma rápida apresentação, uma mera troca de cumprimentos de circunstância e o Jorge, naturalmente, nem se lembrava de mim. No entanto, o seu estado de saúde agravou-se, o que o impediu de se deslocar a Beja, tendo o nosso aguardado encontro ocorrido mais tarde, na Amadora, há uns dois anos atrás.

Para além da História, a sua grande paixão era a BD, o que o levou a criar a editora PedranoCharco e apresentar um conjunto de autores portugueses como José Carlos Fernandes, Eliseu Gouveia ou Filipe Andrade (que hoje trabalha para a Marvel). Lançou o BD Jornal, uma revista de análise e crítica, onde também teve oportunidade para publicar algumas histórias de BD. Foi nesta revista que eu escrevi pela primeira vez sobre BD, não por convite do Jorge, mas sugerido pelo José Carlos Francisco. O Jorge precisava de um artigo sobre fumetti e o José Carlos sugeriu o meu nome. Escrevi sobre Demian, uma personagem criada por Pasquale Ruju, hoje autor de Tex, cuja ação se desenrolava nos meandros do crime organizado em Marselha. O BD Jornal durou cerca de três dezenas de números, com altos e baixos, mas sobretudo com muita dedicação do Jorge.

Jorge segurando as edições nº 6 da revista do Clube Tex Portugal

Quando foi fundado o Clube Tex Portugal e surgiu a ideia de uma revista, o Jorge prontificou-se logo para ajudar, sem qualquer contrapartida. Confesso que os meus primeiros contactos com ele foram tímidos, porque eu pouco ou nada percebia do assunto, enquanto o Jorge tinha uma vida inteira dedicada a estas lides. Depressa nos entendemos, porque o Jorge com o seu espírito crítico, algumas vezes “bota abaixo”, e a sua linguagem muito terra a terra, contagiou-me. Confessou-me que não era grande apreciador do Tex, mas até nisso rapidamente nos entendemos, porque sempre “prometi” que o faria gostar do ranger. Não sei se fui a tempo, mas sei, porque ele mo disse, que a preparação da revista lhe dava muito trabalho, mas, ao mesmo tempo, cada vez mais prazer.

O Jorge queixava-se de muita coisa, mas era raro ouvi-lo queixar-se do seu problema de saúde. Muitas vezes contactei com ele internado em Santa Maria, onde se deslocava com cada vez maior frequência, mas sempre mais preocupado pelo facto de não ter um computador para trabalhar, do que propriamente com o seu estado. Numa dessas ocasiões, ligou-me para informar que provavelmente não iria conseguir preparar a revista nº 11, de modo a podermos encontrar alguém que o substituísse. Para ele, tratava-se apenas de uma fase, enquanto estivesse hospitalizado. Infelizmente foi a última vez que falámos. Entretanto, a revista foi preparada e distribuída e eu fui adiando telefonar ao Jorge para saber dele e falarmos um pouco. Fui adiando e adiando, hoje por isto, no outro dia por aquilo. Até que veio a altura de começarmos a preparar a revista nº 12 e disse ao José Carlos que precisava de falar com o Jorge para saber da sua disponibilidade em retomar a sua “tarefa”. Nesse mesmo dia, o José Carlos voltou a ligar-me para informar o falecimento do Jorge. Quanta tristeza, quanta amargura! Adiamos tudo nesta vida, adiamos tanto até um dia não podermos adiar mais, desta vez, infelizmente, porque o Jorge nunca mais estará do outro lado.

Obrigado por tudo Jorge

* Texto de Mário João Marques publicado originalmente na Revista nº 12 do Clube Tex Portugal, de Junho de 2020.

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