A prestigiosa revista “ANIM’ARTE” (um projecto editorial do GICAV – Grupo de Intervenção e Criatividade Artística de Viseu, uma das cidades capitais da Banda Desenhada em Portugal) a partir do seu número 117, do trimestre Julho-Agosto-Setembro de 2020, passou a incluir um fanzine (VIRIATVUS) dedicado à BD/Ilustração, mais um espaço nobre para a divulgação da Nona Arte.
E é precisamente no número 7 do fanzine VIRIATVUS, datado de 2024, que num texto da autoria de Mário João Marques (Clube Tex Portugal) os 75 Anos de Aventuras de Tex Willer são celebrados em 5 belas páginas, como podemos ver então de seguida neste magnífico fanzine coordenado por Carlos Almeida:
CELEBRAÇÃO DOS 75 ANOS DE AVENTURAS DO TEX
Por Mário João Marques (Clube TEX)
Em 1948, a Itália acabara de sair da trágica experiência da Segunda Guerra Mundial e da ainda mais trágica Guerra Civil. O país encontrava-se em ebulição, tudo era efémero e tudo se consumia rapidamente, incluindo no mercado dos fumetti (banda desenhada italiana), onde as publicações desapareciam à mesma velocidade com que surgiam. O mundo estava em transformação, tal como acontecera com o Oeste Americano durante o século XIX, palco das aventuras de uma nova personagem saída da veia criativa de Gianluigi Bonelli e dos desenhos de Aurelio Galleppini: Tex Willer.
Tudo começou em 30 de setembro de 1948, quando surgiu nas bancas italianas La Collana del Tex, uma pequena publicação de 32 páginas em tiras, com o selo da editora Audace de Milão, e o mote L’albo più ricco al prezo più povero (o livro mais rico ao preço mais baixo). No entanto, para conhecermos a génese da nova publicação, recuemos um pouco no tempo, até 1940, quando Gianluigi Bonelli adquire a editora Audace, onde já então colaborava como autor. Ajudado pela esposa, Tea Bertasi, Bonelli trabalhou também como editor até 1944, quando se interrompe a atividade devido à guerra. Em 1946, já divorciada, Tea decide reabrir a editora, continuando a contar com a colaboração do ex-marido, agora apenas como autor de fumetti. Juntamente com Aurelio Galleppini, Gianluigi Bonelli vai criar o justiceiro mascarado Occhio Cupo, uma série ambientada na guerra franco-britânica no Canadá, assim como Tex Willer, que vai nascer na sombra do primeiro.
Se Occhio Cupo é alvo de um grande cuidado, quer ao nível dos enredos e do desenho, bem como do grafismo e do formato, La Collana del Tex será menos exigente. A verdade é que será este “patinho feio”, como na altura foi apelidado por Galep, que se vai tornar no porta-estandarte da editora, derrotando Occhio Cuppo (que desaparece ao fim de poucos meses), assim como, sucessivamente, todas as outras principais publicações do fumetto italiano, nomeadamente Capitan Miki, Il Grande Blek ou Il Piccolo Sceriffo. As “pobres” tiras (inicialmente com uma tiragem de 45000 cópias) que apresentavam aventuras frescas e dinâmicas, com um herói nobre no ânimo, audaz e com um sentido de honra imaculável, acabam por impor-se, projetando Tex Willer para uma cavalgada sem limites, à conquista de cada vez mais leitores, e que viria a conquistar gerações de todas as idades e de todos os extratos sociais, tornando-se numa das mais famosas marcas italianas no mundo e uma das personagens com maior longevidade no panorama da banda desenhada mundial.
Não foi uma conquista fulminante ou uma paixão à primeira vista. Pelo contrário, a série teve que fazer o seu percurso, tornear obstáculos, mas acabou por se impor mercê dos seus enredos movimentados, dos diálogos velozes, duros e corrosivos, e dos valores fundamentais que foi imanando como justiça, lealdade, igualdade entre todos, luta contra os poderes instituídos, contra a corrupção ou ainda contra a obtusidade militar. Se as primeiras aventuras mostram um desempenho do herói improvisado e ainda contraditório e pouco estruturado, muito próximo dos códigos específicos do entretenimento popular, com o decorrer das aventuras Tex vai evoluir, e o jovem irrequieto, que galopava e disparava, vai dar lugar a uma personagem madura, irónica e psicologicamente convincente.
O seu primeiro nome era Tex Killer, que acabou por ser alterado para Tex Willer para evitar a censura reinante naquela época e, na realidade, no início o herói surge ao leitor como um fora-da-lei, perseguido pelas autoridades, por se ter vingado dos assassinos do seu pai. Mas, em breve, múltiplas vicissitudes e acontecimentos vão levá-lo a tornar- se num respeitadíssimo e temido ranger do Texas e líder branco dos índios navajos (com o nome de Águia da Noite), ao casar-se com a filha do chefe Nuvem Vermelha, e sucedê-lo no comando da tribo. Passará a atuar ao lado dos seus principais parceiros, Kit Carson, Kit Willer (o filho) e o índio navajo Jack Tigre, protagonizando aventuras sem fim, lutando pela justiça, enfrentando tudo e todos, e encarnando a esperança e a crença num mundo novo, livre, justo e igual, a mesma esperança que os italianos ambicionavam, numa época de transição de um regime de governo totalitário para um democrático.
Como tal, Tex rapidamente acabará por ultrapassar as páginas das suas aventuras e colar-se à realidade italiana da época, denotando uma notável capacidade de identificação com os traços fundamentais de um país e com os anseios dos seus leitores. A sua luta entre o bem e o mal e entre lei e justiça, fará de Tex um modelo a seguir pelos seus leitores, que veem na personagem uma espécie de seu representante, afirmando-se, deste modo, como um produto cultural que se identifica com o espírito da época, perfeitamente enraizado no coração das pessoas comuns. No fundo, Tex surge como um fenómeno que faz parte integrante do imaginário coletivo de uma época para, posteriormente, passar a ser um produto de continuidade narrativa, que soube construir e cimentar determinados automatismos, que vieram alargar a série a outros extratos, outras franjas e outras gerações, conquistando gradualmente maior respeito e dignidade.
Quase oito décadas depois, continua a fazer sentido um herói como este? A verdade é que Tex cresceu com uma geração cujos hábitos de leitura forjaram-se na literatura western da época, com diálogos curtos, sem grandes descrições e onde a ação ocupava grande parte das histórias. Um género visualmente apelativo, mercê dos seus ambientes espetaculares e grandiosos, mas que, apesar de um recente revivalismo, quer na banda desenhada como no cinema, teve o seu apogeu décadas atrás. Hoje, os jovens dispõem, felizmente, de outras formas de entretenimento e o papel da banda desenhada nos seus hábitos de leitura parece ser cada vez mais residual, acrescendo o facto do género western se encontrar nos antípodas dos mangas japoneses ou do aparato dos super-heróis norte-americanos que hoje preenchem o imaginário dos consumidores mais novos. Nesta perspetiva, a série dificilmente encontraria o seu lugar num mundo globalizado e hipertecnológico como o dos nossos dias, mas a verdade é que, decorridas quase oito décadas, Tex continua a ser um verdadeiro fenómeno popular que continua a vender e a apaixonar, tendo chegado a um ponto que, na sua génese, poucos poderiam antever. Muito porque os seus autores souberam sempre fazer evoluir as interpretações da personagem, até chegarmos ao herói que conhecemos hoje e que se presta a análises mais aprofundadas, mesmo da parte daqueles que pouco ou nada têm a ver com a série ou com a banda desenhada. Um herói que, por força dos seus valores, sente-se capaz de combater algo superior e que muitas vezes está para além dos limites da sociedade. Uma luta solitária, porque não está ao alcance de qualquer um, o que o leva a aceitar um estatuto de super-herói que gradualmente o vai afastar do jovem aventureiro das primeiras tiras. Por isso, se numa perspetiva conjuntural Tex dificilmente encontraria hoje o seu espaço no coração dos leitores, a verdade é que o amadurecimento da personagem vai permitir evidenciar as suas características e a sua espessura psicológica, irá contribuir para estruturar o herói e mantê-lo sempre atual e em perfeita sintonia com as diversas gerações. O herói nunca defraudou as expetativas, porque ao longo das suas inúmeras aventuras nunca deixou de acreditar firmemente no ideal de justiça, nunca deixou de ser um anárquico que se substitui à autoridade e aos poderes instituídos na resolução dos problemas, enfrentando-os através da adoção de um comportamento e de uma conduta muito próprios, o que o leva por diversas vezes a ultrapassar a lei. Tex nunca deixou de propor uma visão da relação entre o cidadão e o poder e, nesse sentido, estar em constante sintonia com o leitor, porque também este deseja o triunfo do bem, odeia os arrogantes, os corruptos, certas formas de poder ou a burocracia.
Mas um western como este também continua a fazer todo o sentido pelos temas que aborda os quais, facilmente transpostos para os dias de hoje, acabam por servir de veículo transmissor da sensibilidade dos autores relativamente à realidade atual. A luta contra o poder dos grandes proprietários, contra o tráfico de armas ou de álcool, os interesses das companhias de caminho-de-ferro ou petrolíferas, a corrupção nas cúpulas políticas e militares, a intensa exploração de minas de ouro e prata, as migrações índias ou a emigração sobretudo chinesa, são temas sempre presentes nas aventuras de Tex, mas que também poderiam ser de uma qualquer aventura ambientada no nosso século.
Como vimos, Tex será sempre um herói necessário, uma personagem perfeitamente adaptada à realidade de todos os tempos, sobretudo hoje, quando testemunhamos uma certa decadência de valores na civilização ocidental.
O herói representa uma utopia, porque não existe um mundo onde o bem vença sempre o mal, muito porque dificilmente se encontram homens como Tex. Mas Tex também representa uma ideia, a ideia de que nesta sociedade da indiferença sobreviva o conceito de justiça. Ou, como sublinhou um jornalista do La Nuova di Venezia: “se a força de uma personagem da banda desenhada se mede pela capacidade de sobreviver aos seus autores, então a Tex Willer devemos reconhecer um estatuto de… super-herói. Sejam quais forem as explicações, através das quais os caminhos misteriosos e ilusórios de uma personagem fictícia se impõem ao imaginário popular, elas sublinham como Tex é agora um ícone da nossa imaginação… um monumento da nossa cultura, da nossa sociedade, não esquecendo do nosso quotidiano”.
O nosso muito obrigado ao CLUBE TEX.
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