O prefácio (de um futuro livro) de Giorgio Bonelli dedicado ao seu pai Gianluigi Bonelli

Giorgio Bonelli

Giorgio Bonelli, irmão de Sergio Bonelli e filho de Gianluigi Bonelli recordava-nos ontem no seu Facebook que no passado dia 30 de Setembro celebrou-se um aniversário muito mais importante que o dele próprio, verificado na véspera, dia 29 de Setembro, o da primeira publicação de Tex, ocorrida no dia 30 de Setembro de 1948!!!!…

É incrível que ainda hoje, após tantos anos, continue a ser a banda desenhada mais publicada no Mundo!…. Mérito de tantos colaboradores, mas graças sobretudo a um certo testemunho de imaginação e engenhosidade daquele personagem exuberante que foi o meu pai. A ele o escritor e historiador Gianni Bono vai dedicar-lhe um livro que será publicado em breve e precisamente no dia de aniversário de Texhonrou-me com um belo telefonema no qual me pediu para escrever o prefácio.
“Esta manhã, de uma só vez, escrevi o texto, que apresento de bom grado a todos os meus amigos e sobretudo aos muitos leitores de Tex, esperando que o tom engraçado e bem humorado retrate melhor um pouco  do carácter do meu simpático pai!… 
Para quem tiver vontade, boa leitura!”

Gianluigi Bonelli (no Monument Valley)

Um pai como amigo
Gianluigi Bonelli… que personagem!…
Fisicamente não era decerto um gigante, um metro e 68 e dizia-o amiúde, quase como se estivesse a gabar-se disso, porque a presença física, bem… por sua vez, era verdadeiramente surpreendente.
A dar nas vistas não eram apenas as botas, mas também um inseparável chapéu de cowboy, o casaco de couro (de onde de vez em quando sobressaía a coronha de um revólver) e as camisas vistosas, mas sobretudo o magnetismo avassalador que emanava, em quem o conhecia, desde o primeiro momento.
Um vulcão de gestos e palavras, de exclamações bizarras e sonoras palmadas nas costas que tinham tanto de efectuosas… como capazes de arrancar um pulmão!

Giorgio Bonelli e Gianluigi Bonelli

Ele era famoso por às vezes dizer enormidades e expressar de forma muito directa uma apreciação e julgamentos que deslocavam, para não dizer desconcertavam, os presentes. Mas não me recordo, nem por uma única vez em que as suas palavras fossem fora do contexto, vulgares e muito menos ofensivas.

Os meus companheiros de escola (ele acompanhava-me a pé todas as manhãs, visto que a redacção da rua Ferruccio em Milão ficava a dois passos do liceu que eu frequentava) não podendo deixar de notar, perguntavam-me com alguma frequência: – Mas que tipo é o teu pai?
– O meu pai?… Prefiro dizer o meu amigo!…
Aquele que às vezes te dizia para fazer gazeta (faltar às aulas) às segundas-feiras para atravessar contigo os nevoeiros da Lombardia com o Citroen DS vermelho incandescente a 180 quilómetros por hora – onde todos estão à tua direita e nunca há ninguém à esquerda – e levava-te a esquiar no gélido Matterhorn ou Monte Cervino (em francês: Mont Cervin em italiano: Cervino) a ponto de no dia seguinte teres de te maquilhar para não mostrares o bronzeado aos teus professores
Ou o amigo que te arrastava de barco até Loano (região da Ligúria, província de Savona) e então, não muito longe da costa e indiferente à presença de algum infeliz barco pesqueiro, convida-te a fazer explodir as latas de cerveja vazias lançadas para a água, furando-as com o revólver que levava sempre consigo. Os motores desses barcos eram postos a trabalhar e iam para bem longe de nós, e nem queria saber quais eram os comentários a bordo.

Giorgio Bonelli, Sergio Bonelli e Gianluigi Bonelli

São tantos os episódios que vêm à minha mente que poderia escrevê-los por vários dias.
A minha mãe, dona de casa e religiosa, contava que foi tocada por aquele louco a poucos meses daquele que deveria ter sido o seu casamento com um rico comerciante de Génova.
Eram tempos do pós-guerra e a sua fuga de amor para Paris certamente deixou perplexa a família burguesa da qual ela vinha… e não apenas o infeliz “marido”! Mas na Ville Lumière ele tinha-lhe prometido que ficariam instalados num hotel de luxo do centro. Pecado que em vez da suíte imperial, esperava-a um pequeno quarto num sótão, ao lado daquele dos criados…e ao jantar, raros bifes e muitas saladas com ovos cozidos!… Ele escrevia furiosamente contos e novelas que os editores franceses punham dificuldades em publicar. E à noite, para juntar mais algum dinheiro,subia ao ringue de algum fumarento ginásio de boxe como colega de treino de ricos parisienses em busca de emoções, com o proprietário do local a gritar-lhe: – Bonelli, ne touchez pas le client (Bonelli, não toque no cliente)!

Gianluigi Bonelli

Santa mulher, por quantas deve ter passado a minha mãe! Mas ao falar daqueles dias difíceis, os seus olhos brilhavam sempre, ainda iluminados por um amor que a acompanhou por toda a vida.
Depois veio o Tex, o sucesso e o bem estar para todos. Eu ainda era pequeno e ele já era famoso e admirado. Os pais dos meus colegas competiam para nos convidar para almoçar ou para o jantar. Descuidadamente…
Um dia apresentamo-nos em frente à porta dos nossos anfitriões. Tocamos a campainha e ninguém responde. Tocamos novamente. Nada. E então, num instante, sob o olhar desesperado da minha mãe, surge o revólver que descarrega a sua mensagem de projécteis, felizmente de borracha, na porta do infeliz!….
A porta finalmente se abriu e ao ver o olhar aterrorizado do proprietário da casa o meu pai respondeu com a habitual palmada sonora nas costas do pobre homem.
– Então, meu velho, o que preparou de bom a bela vestal (mulher de grande beleza) da tua mulher? Exclamou, colocando a arma no coldre e com um afectuoso sorriso acrescentou brincando: – Fizeste-nos esperar meia hora e estamos com uma fome de lobos!

Muitos anos depois, na cama do hospital em Alessandria onde fui visitá-lo, uma última visita, dei-me conta que o jogo estava perdido. Eu então, abracei-o emocionado e ele, sereno e conciso, sussurou-me ao ouvido:- Não te preocupes, Giorgio… Está tudo bem.
Jamais me esquecerei daquela frase, que ainda hoje me dá arrepios na espinha. Mas, afinal, um grande artista sabe quando é o momento de sair de cena, e fazê-lo com descrição e dignidade.
Hasta la vista, hombre!… Continua a cavalgar os teus sonhos nas verdes pradarias da tua fantasia. Permanecerás sempre nos nossos corações!…

Gianluigi Bonelli e Giorgio Bonelli

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)

3 Comentários

  1. Excelente depoimento, espero que a Mythos publique o livro de Giorgio Bonelli dedicado a Gianluigi Bonelli.

  2. Querido amigo José Carlos Francisco,
    estou extremamente grato e feliz por este lindo presente que você me deu para traduzir meu prefácio para um português que é obviamente 1000 vezes melhor que o meu. Eu te agradeço de coração e espero que nossos caminhos se cruzem novamente em breve talvez em Brasil.
    Um grande abraço!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *