As críticas do Marinho: “Lua encarnada” – (Tex brasileiro 551 a 553)

Se bem nos recordarmos, desde as primeiras aventuras de Tex que o elemento feminino é uma presença constante na série, desde logo com realce para as míticas cenas iniciais, quando um ainda jovem Tex vai salvar a índia Tesah das garras do bando de John Coffin. Apesar de vir a salvar mais mulheres, enfrentar muitas outras (as chamadas dark ladies) e mesmo casar, nos primeiros anos esta presença feminina reduz-se quase sempre a um papel secundário, tudo num tempo em que a censura dos “bons costumes” impedia que se fosse muito mais além. São conhecidos os cuidados editoriais sempre impostos, o que não vai impedir que, com maior ou menor sensibilidade, venham a ser construídas algumas personagens marcantes, sobretudo pelo seu temperamento e coragem. Conhecendo as características e as qualidades que um autor como Boselli impõe nas suas histórias, nomeadamente quando se mostra perfeitamente habilitado a apresentar uma multiplicidade de personagens sempre muito bem construídas do ponto de vista da sua espessura psicológica, assim como a tendência que o autor vem denotando nos últimos tempos em modernizar a série, não seria de estranhar a inclusão de personagens femininas marcantes nas suas aventuras e de que são exemplo mulheres como Sarita (Matador), Dawn (Nei territori del NordOvest), Anita (Vendetta per Montales) ou Lory (La mano del morto), sem esquecer Lena e a filha Donna, presentes em duas aventuras referência do autor como são Il Passato di Carson e I Sette Assassini.

Vem isto a propósito de uma personagem cheia de força como Ada Stark que o autor nos apresenta em Luna Insanguinata (título original), mulher de carácter forte e com uma enorme vontade interior, capaz de lutar contra as adversidades e pela felicidade do elo familiar. Uma felicidade que Tex ajudou a construir quando, dezassete anos antes, vai resgatar Ada das mãos do índio comanche Charvez, que a tinha raptado para se vingar do seu pai Edward Stark. Ada acabará por ser salva por Tex e recuperar a sua felicidade ao lado de Rick Simmons, mas deste passado não só guardará memória de um dramático acontecimento, como também um filho mestiço, depois de ter sido violada por Charvez. O mesmo que agora regressa, disposto a levar consigo o filho Daniel. Mesmo que a sua presença física não seja uma constante ao longo de toda a história, “reduzindo-se” aos acontecimentos marcantes do início e do final da aventura (curiosamente, ou talvez não, tal como Charvez), Ada é uma personagem que não deixa o leitor indiferente, assumindo o seu papel de mãe que lutará para salvar o filho, de esposa capaz de deixar o lar para se juntar ao marido e da justiceira que terá oportunidade de colocar um ponto final no destino que se tinha iniciado dezassete anos antes.

Mas é também a mulher que parece ter marcado de alguma forma o ranger, porque quando Tex salva Ada e a carrega ao colo, numa cena que Villa tão bem retrata numa das raras capas com uma mulher, acreditamos ter aqui surgido uma cumplicidade entre os dois. O dedo inovador de Boselli não estará tanto na sua capacidade concreta em dotar Tex de sentimentos por outra mulher que não Lilyth, porque se for esta a opção editorial, com maior ou menor arte outro autor o poderia fazer. Bem vistas as coisas, os acontecimentos retratados no flashback ocorreram após a guerra civil americana, quando Kit Willer já tinha nascido e Lilyth falecido. Por isso, a inovação de Boselli estará mais em ter sabido construir esta cumplicidade entre Tex e uma mulher a partir de um acontecimento vivido dezassete anos antes, sobretudo numa época em que o herói estava enfraquecido sentimentalmente pela perda de Lilyth. Ada não surge na vida de Tex por acaso, há um passado que os une e é nesta união entre épocas que reside a real capacidade de Boselli, sublinhada quando, dezassete anos mais tarde, Tex vai voltar à campa (junto à casa de Ada) onde jaz o seu colega ranger, morto nos dramáticos acontecimentos do passado, sabendo de antemão que dessa forma vai rever uma mulher que sempre guardou em estima e admiração.

O Tex que emerge destes momentos com Ada, o modo como os diálogos entre ambos vai decorrendo, não invalida estarmos em presença de um Tex ao mesmo tempo intuitivo, carismático e épico, salientando as suas características bonellianas de um herói que se agiganta perante as mais diversas adversidades, lidera sempre os acontecimentos e sabe jogar com todas as armas, as de fogo, mas também a mera táctica (recorrendo mesmo às utilizadas pelos índios) e o confronto psicológico para atingir o adversário. Uma aventura épica não porque Boselli exalte algo de grandioso e global, como por exemplo a luta de um povo ou de uma nação, mas a capacidade de Tex em liderar um grupo restrito de homens que vai suplantando as adversidades que se vão deparando até se reduzir apenas aos seus elementos mais fortes e capazes. Tex exemplifica aqui de modo muito evidente as qualidades do herói bonelliano, nunca virar a cara perante o que quer que seja, sintetizando em si a coragem e a audácia, a força e a habilidade em saber lidar com qualquer adversário.


Sugerida por Sergio Bonelli, esta é uma história dura, violenta e cruel, que acaba ao mesmo tempo por expressar sentimentos positivos, não só quando reforça o amor de Ada pelo filho Daniel, mas também no relacionamento deste com Rick Simmons, que sempre o aceitou como um filho verdadeiro. Ada e Simmons vão lutar contra um passado que teima em desaparecer e esta vontade e heroísmo em estado puro vão marcar toda a aventura, com uma narração dramática que adivinha uma iminente tragédia. Uma aventura mais uma vez protagonizada por uma galeria de grandes personagens. Ada pela sua força, Simmons pela coragem, Charvez pela crueldade e pela capacidade em influenciar tudo e todos através da conduta que vai adoptando ou ainda o velho e misterioso Silent Foot. É uma das raras ocasiões onde Boselli apresenta uma aventura com Tex a solo, uma vez que ao seu lado estará um conjunto de homens que substituirá os habituais pards. No entanto, se bem repararmos, Rick Simmonds, o velho Silent Foot, Ada Stark e mesmo a personagem do rural mexicano acabarão por desempenhar um papel semelhante ao de Carson, Kit e Jack Tigre, com a vantagem para o leitor de não conhecer de antemão qual o destino final de cada uma, aumentando desta forma a tensão.


No capítulo do desenho, trata-se do regresso do romano Corrado Mastantuono, desenhador que, ao contrário de muitos leitores, sempre apreciei na série. O coro de críticas realça sobretudo a composição do herói e não tanto as evidentes qualidades deste desenhador versátil, actualmente um dos valores seguros da série. Luna Insaguinata parece ter sido escrita à medida do traço e estilo de Mastantuono, com uma qualidade irrepreensível ao longo de todas as páginas, capaz de recriar a atmosfera crepuscular e violenta que se respira, compondo páginas de uma rara beleza e qualidade interpretativa nos diferentes cenários, a chuva diluviana no início, o sol tórrido do deserto, as montanhas, os tiroteios, os ambientes nocturnos ou ainda as cenas que retratam o sonho onírico de Rick Simmons. Certamente que a figura e a composição de Tex deve ser uma das preocupações de qualquer desenhador na série, mas mesmo neste capítulo, creio que este trabalho de Mastantuono representa e traduz um salto qualitativo do desenhador na sua composição do herói. Se ainda encontramos passagens onde um Tex menos conseguido nos parece evidente, outras há onde começa a surgir um Tex mais clássico, mais aproximado aos puristas e que consagra Mastantuono como um grande desenhador de western, sublinhando, uma vez mais, a sua enorme versatilidade.


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