Tex – O Elo (Giovanni Ticci)

Por Sérgio Madeira de Sousa *

O Elo

O Elo

PREÂMBULO

Li recente “O índio branco” em Tex Edição Histórica nº 86, publicada pela editora Mythos em Setembro de 2013. Tex e Carson, na companhia de um agente da Pinkerton, procuram descobrir o paradeiro de um rapaz, raptado vinte anos antes pelos Kiowas. Ao ler esta excelente história fui transportado para a fase de Tex, que considero como a fase de ouro. Fase que se inicia nos finais dos anos sessenta e se prolonga até meados da década de oitenta. Giovanni Luigi Bonelli e Guido Nolitta, pai e filho, responsáveis pela quase totalidade dos argumentos. Aurelio Galleppini, Guglielmo Letteri, Erio Nicolò, Fernando Fusco e Giovanni Ticci, os desenhadores que assinaram mais de noventa por cento das histórias. Claudio Nizzi, que posteriormente viria a substituir G. L. Bonelli durante décadas, como principal escritor da série, também contribuiu com algumas histórias, assinando a sua primeira em Junho de 1983: “A intriga diabólica”. Foi também da sua autoria, a última grande história desta fase de ouro: “Chamas de guerra”. Outros desenhadores que contribuíram para o sucesso desta fase, na maioria das vezes como “desenhadores fantasmas” e auxiliando principalmente Galep, foram Francesco Gamba e Virgilio Muzzi. Sempre com o rosto do personagem a ser da responsabilidade de Galep, Muzzi acabou mesmo por assinar algumas histórias, como: “O caçador de criminosos” e “Texas Bill”. Vincenzo Monti e Fabio Civitelli, que tal como o escritor Claudio Nizzi, entraram para a série já na parte final, são os últimos desenhadores a destacar, sendo que Civitelli apenas teve uma história: “Funeral em Silver Pine”.


Assim como sou incapaz de referir a melhor história de Tex, também o sou, para indicar a melhor desta fase, são inúmeras as que têm qualidade muita acima da média. Permito-me apenas destacar as seguintes: “A cruz trágica”, “A grande intriga”, “A noite dos assassinos”, “Caçada humana”, “Missão em Great Falls”, “O solitário do Oeste”, “A patrulha perdida”, “A grande ameaça”, “O assassino sem rosto” e “Chamas de guerra”. Além destas, poderia indicar sem grande dificuldade outra dezena, igualmente digna de constar numa listagem das melhores histórias. Os argumentos eram ricos e diversificados, os vilões carismáticos, e as personagens secundárias dotadas de personalidade, o que tornava as histórias inesquecíveis. Os desenhadores, com um estilo muito característico, impunham o seu cunho pessoal em cada página, sendo possível a cada leitor, com um mínimo de conhecimento do personagem, identificar o desenhador apenas pelo simples folhear da revista. Apesar de gostar da arte de todos os desenhadores desta fase, incluindo Fusco, que devido ao seu traço pouco nítido e por vezes caricatural, ocupava o último lugar nas minhas preferências, havia um que se destacava de todos os outros pela positiva: Ticci! Logo no meu primeiro contacto com o personagem fiquei deslumbrado. Quer com arte quer com o argumento. A história: “Assalto ao trem”.

AS DIFERENTES FASES DE TICCI

Giovanni Ticci entrou para o staff de desenhadores de Tex, com a história “Vendetta indiana”, publicada pela primeira vez na série RODEO, em formato tipo talão de cheques, (“striscia”), no inicio de 1967. Claramente influenciado nos seus primeiros trabalhos por Alberto Giolitti, o seu mestre. Os rostos expressivos dos personagens nos grandes planos e a escolha dos enquadramentos que possibilitam a sensação de profundidade, são talvez as semelhanças mais evidentes. Não tão visíveis nas edições brasileiras devido ao pequeno formato e à fraca qualidade de impressão. Com “Território Apache”, a história que se seguiu, Ticci completa a integração ao universo texiano, afastando-se da sua referência, Giolitti, e introduzindo o seu cunho pessoal. Em minha opinião, a maior dificuldade de Ticci nas duas primeiras histórias foi encontrar o melhor rosto para o personagem, dificuldade essa que se manteve nas histórias seguintes, pois continuou a fazer alterações.

Os trabalhos seguintes vieram a revelar-se verdadeiras obras-primas, ainda hoje englobados pela maior parte dos fãs, como pertencendo às melhores histórias de Tex: “A cruz trágica”, “Terra prometida” e “A noite dos assassinos”. Histórias épicas em que Ticci se encontra perfeitamente ambientado em qualquer dos enquadramentos e cenários, em que estas histórias são riquíssimas: A região dos Cem Lagos do Canadá em “A cruz Trágica”, ou a pradaria, em “Terra prometida”, ou novamente, a floresta com a inclusão da neve, em “A noite dos assassinos”. Acrescenta-se os ambientes citadinos e nocturnos, a caracterização dos índios, das armas etc. Em todos ele Ticci esteve magistral, tornando estas três histórias, uma excelente montra das muitíssimas capacidades deste magnifico desenhador.


Enquanto os três pards já têm as suas feições bem definidas, Ticci continua a fazer alterações ao rosto de Tex. Apesar de existirem pequenas diferenças na fisionomia, é possível verificar que, inicialmente o rosto é estreito e comprido, mas vai ficando mais aligeirado e arredondado, no final de “A noite dos assassinos”.

Entre Setembro e Outubro de 1975, é publicado em Itália o seu melhor trabalho no universo texiano, até essa data: “Assalto ao trem”. Uma história de autoria de G. L. Bonelli, curta para os padrões texianos, riquíssima em cenários e ambientes, que testam a versatilidade do desenhador, e proporcionam pranchas de grande realismo e beleza. A grande diferença entre este trabalho e os anteriores resulta essencialmente na consistência das feições do personagem. Nesta composição do herói, Ticci opta por um rosto mais arredondado e sorridente, conseguindo manter as feições ao longo de toda a história, o que não tinha conseguido nos trabalhos anteriores, mostrando que finalmente tinha encontrado o “seu” Tex, pelo menos, para os trabalhos seguintes.


Em a “Mesa dos esqueletos” e “Ao sul de Nogales”, foi de alguma forma travada a evolução natural do desenhador. São histórias muito peculiares, por diferentes razões. A primeira, iniciada por Gilbert, que por excesso de trabalho abandonou na página 33 e a segunda, toda ela desenhada por Ticci, mas entre o início e a conclusão da história passaram-se cerca de dez anos. Ticci iniciou o trabalho entre 1967 e 1971, mas por alguma razão o projecto ficou “congelado”, só sendo reactivado, quando a editora necessitou de uma história de cerca de noventa páginas, para publicar no nº 199, pois a colecção exigia que o nº 200, fosse uma história completa e colorida. Esta particularidade torna claramente visíveis a diferença de estilos. Nas primeiras páginas o trabalho muito semelhante ao de “Vingança de índia” e “Território Apache” e, a partir da página 35, às restantes histórias publicadas até então.

Entre 1977 e 1987 foram publicadas dez histórias assinadas por Ticci na colecção mensal de Tex, ao longo deste período o desenhador não alterou o seu traço, mantendo as características do seu trabalho que os leitores admiram e apreciam. Um traço realista, dinâmico, bastante detalhado conseguindo excelentes desempenhos em praticamente todas as histórias. Destacam-se no entanto, pela qualidade dos argumentos, “O solitário do Oeste” e “A patrulha perdida”, de autoria de Guido Nolitta, e “Chamas de guerra”, escrita por Claudio Nizzi.

Não sou crítico de arte! Não possuo qualquer formação na área do desenho! No entanto, ao ler pela primeira vez “O tesouro da velha missão”, detectei facilmente alterações profundas no estilo de Ticci. Não pretendo afirmar que essas mudanças ocorreram todas nessa história, certamente que vieram a ser introduzidas pequenas alterações ao longo dos últimos trabalhos, culminando nesta obra, onde são demasiado evidentes. Um desenho com traço mais simplificado, rabiscado e pouco arte-finalizado, eliminando praticamente o sentimento de profundidade que as pranchas de Ticci normalmente transpareciam. Demasiadas pranchas e vinhetas com ausência de cenário. Mesmo quando os intervenientes se encontram no interior de habitações, o artista opta por vezes, por retratar apenas os personagens, deixando o resto da vinheta “nua”. Utiliza também excessivamente sombras e manchas para preenchimento de cenários, em detrimento do detalhe, o que contrariava o estilo de Ticci da época. Desconheço os motivos que provocaram esta evolução do desenhador, transformando o seu desenho mais próximo de Fusco. Esta aproximação levou-me a gostar um pouco menos do trabalho de Ticci, em contrapartida, foi o que me levou a saber apreciar o trabalho de Fusco. Entre Julho de 1988 e Junho de 2002 foram publicadas oito histórias de Tex, com a arte de Ticci, entre elas, o Texone, “O pueblo perdido”. São cerca de catorze anos em que parece que o desenhador perdeu a identidade. Na mesma história encontram-se pranchas no estilo detalhado que o notabilizou, e o tornou num dos mais apreciados desenhadores de Tex, para em seguida, alterar para um desenho mais sintético e rabiscado, aproximando-se do traço “sujo” de Ortiz. Esta hesitação entre optar pelo antigo ou pelo novo estilo, ou simplesmente, a tentativa de adaptação ao novo, leva-o a produzir os seus trabalhos menos conseguidos. Além do referido “O tesouro da velha missão”, podem ser incluídos “Golden Pass” e “Conspiração contra Custer”, em que as primeiras trinta páginas estão irreconhecíveis, duvidando mesmo que sejam da autoria de Ticci. “The ghost artists” são necessários! Muitos desenhadores para poderem cumprir os prazos os utilizam. Será que neste período, Ticci socorreu-se excessivamente de outros desenhadores ao ponto de descaracterizar o seu trabalho? Durante este período foram também desenhadas por Ticci três histórias curtas, publicadas fora das coleções regulares de Tex, que além de “Orgulho Navajo” e “O pueblo perdido”, podem ser considerados os seus melhores desempenhos.

Com “Kiowas” publicado na Primavera de 2004, Ticci parece ter terminado a metamorfose de estilos. Apresentando um traço mais simplificado, menos nítido, mantendo alguma dose de realismo sem no entanto pormenorizar demasiado os ambientes e cenários, mas acima de tudo, com maior consistência ao longo de toda a obra. Do estilo que o notabilizou, manteve a diversidade de enquadramentos e a sensação de movimento que transmitem as vinhetas, perdendo no entanto, realismo e profundidade que a sua arte transmitia, essencialmente devido ao menor trabalho de arte final. Esta obra representa também o último patamar na sua evolução, uma vez que até aos dias de hoje já foram publicados mais cinco trabalhos, sem se notarem alterações significativas de estilo.

O ELO

É verdade que a banda desenhada mudou drasticamente! Tal como a fase de ouro de Tex terminou há cerca de três décadas, também a chamada idade de ouro da BD se concluiu há dezenas de anos. O acesso massificado à Internet, a televisão por cabo e as consolas de jogos, tornaram-se as formas de entretenimento preferidas, e têm forçado as editoras a trabalharem cada vez mais, com tiragens mais reduzidas, a inovarem, a serem mais selectivas nos títulos que publicam, e a SBE não tem sido excepção. Agosto de 2011, com texto de Mauro Boselli e os desenhos de Bruno Brindisi, foi publicado em Itália, o primeiro número de Color Tex. A primeira colecção colorida de histórias originais de Tex, que provocou uma ruptura com os padrões conservadores da editora. Durante décadas, o editor Sergio Bonelli sempre se mostrara pouco receptivo a mudanças, respeitando sempre a fórmula definida para o personagem, pelo seu pai. As únicas edições coloridas dos personagens Bonelli eram as múltiplas da centena, aplicando-se a todas as publicações regulares da editora.

A publicação desta nova colecção não foi no entanto um “tiro no escuro” por parte da SBE.
Já anteriormente a editora havia dado os primeiros sinais de mudança, quando em 2007 aceitou a republicação das histórias de Tex, pela parceria “La Repubblica” e “L’espresso”. Dois dos grandes jornais italianos. Com o objectivo inicial de publicar apenas cinquenta edições de periodicidade semanal, os editores rapidamente tiveram que redefinir novas metas, devido ao enorme sucesso da colecção. Numa primeira fase passaram para oitenta e quatro, mas acabaram por publicar duzentos e trinta e nove números, contendo 608 edições do Tex normal. O sucesso foi tão estrondoso que os responsáveis não mais pararam de explorar esta verdadeira mina de ouro. As vendas ultrapassaram os 180 milhões de euros, 27 milhões de exemplares! Números verdadeiramente astronómicos, principalmente se tiver em conta que foram obtidos, numa época de menor fulgor da BD e, numa situação de crise económica mundial. Em 6 de Setembro de 2014, após a editora ter repetido a fórmula com os Tex Gigante, com Zagor (este ainda não concluído) e Dylan Dog, e de uma nova colecção de Tex, Tex Gold, agora publicando os Maxi Tex e Almanacco del West, o blogue do Tex anuncia o prolongamento da Collezione Storica a Colori, até ao numero 256. Prova de que a opção do colorido continua nos planos imediatos da editora! Outra inovação de 2014: a introdução de histórias curtas em “Color Tex”! Normalmente de 32 páginas e da responsabilidade de desenhadores convidados, no que aparenta ser uma tentativa para conquistar outra gama de leitores. Para esse efeito, a publicação passou a semestral, alternando com uma história nos padrões normais texianos. Graças ao enorme sucesso da Collezione Storica a Colori, Tex tem vindo a conquistar novos mercados e reconquistar outros, perdidos há décadas. Actualmente é publicado em Itália, Brasil, França, Turquia, Espanha, Finlândia e Holanda entre outros, e em alguns países, como na Croácia, as edições são verdadeiramente luxuosas.


A estabelecer a ligação entre esta nova fase, que muito promete, avaliando as vendas conseguidas e os mercados conquistados, e a fase áurea de Tex, encontramos Giovanni Ticci. Um dos pilares do sucesso internacional do personagem! Contabilizando setenta e quatro anos, Ticci é o desenhador de Tex no activo, que conta maior número de pranchas desenhadas, tendo ultrapassado as 7000. Apenas Galep e Letteri, com as inatingíveis 15000 e 11000, respectivamente, o ultrapassam. Excluindo as histórias curtas, contabilizamos 33 histórias ao serviço de Águia da Noite, ao longo da sua carreira de quase meio século. Depois do falecimento de Galep, bem antes de a SBE pensar numa colecção colorida de Tex, o escolhido para desenhar as edições coloridas de Tex nº 500, “Homens em fuga”, e mais recentemente, o nº 600, “Os demónios do Norte”, foi Ticci. O seu papel não se limita exclusivamente às histórias produzidas! A produção de capas para as diversas séries de Tex, esteve monopolizada por Villa, após o falecimento de Galep. Com o lançamento de Tex Gold, Ticci viu-lhe confiada a missão de produzir as capas, tornando-se no terceiro capista de Tex, em mais um reconhecimento da editora, na qualidade do seu trabalho. O “seu” Tex, assim como o de Villa, são apontados como modelos para os novos desenhadores. Já em 2007, em entrevista ao blogue do Tex, Miguel Angel Repetto o confirmara. Confidenciou na altura, que tinha recebido instruções claras de Sergio Bonelli para utilizar como modelo, do rosto de Tex, os desenhados por Ticci ou Villa. A grande maioria dos desenhadores de Tex, em entrevistas concedidas ao blogue, confessa-se de alguma forma influenciada, pela arte de Ticci. Em Repetto as influências são claríssimas, mas não só, desenhadores que entraram mais recentemente para o staff, como Giovanni Bruzzo e Lucio Filippucci, as semelhanças também são demasiado evidentes.

Podemos gostar mais ou menos da fase actual deste desenhador! Nunca poderemos questionar o papel relevante do seu trabalho, ao longo das últimas décadas, para o sucesso da série, que mesmo na sua fase menos conseguida, contribuiu com algumas das melhores histórias do personagem. “Orgulho Navajo”, a história que relata o passado de Jack Tigre, é um bom exemplo.

EPÍLOGO

Confesso alguma desilusão com as histórias actuais de Tex. Não prendendo colocar em causa a qualidade dos argumentistas, que considero excelentes, mas nas histórias de Tex falta algo! Muitas das histórias até começam bem, mas depois o ritmo narrativo é lento, existem poucas cenas de acção, não existem inimigos perigosos e carismáticos, não existe suspense e, terminam normalmente de forma abrupta e previsível. Sinto saudades de ler as histórias nolittianas! A última história que me fez lembrar a época áurea do personagem foi “O xamã demoníaco”, de autoria de Boselli e, curiosamente, desenhada por Ticci. Talvez seja eu que tenha mudado, mas não sou o único a pensar desta forma. Na entrevista que Marco Verni concedeu ao blogue do Tex, referiu isso mesmo. O Tex actual está muito diferente do Tex da fase de Ouro. As histórias são demasiado complexas, por vezes monótonas, existe muito pouca acção para um Western. O doseamento entre os diversos ingredientes, de uma história texiana, não está correcta. O Zagor actual está bem mais próximo do idealizado por Guido Nolitta, em comparação do Tex, com o idealizado por Gian Luigi Bonelli.

* Texto de Sérgio Madeira de Sousa publicado originalmente na Revista nº 1 do Clube Tex Portugal, de Novembro de 2014.

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima clique nas mesmas)

2 Comentários

  1. Ticci, um monstro fenomenal na arte da banda desenhada, um dos melhores que ví até hoje, acredito que não aparecerá outro com tanto talento, a não ser os que já passaram e ainda estão por aqui como: Hermann Huppen, Jean Giroud, Frank Frazetta, Earl Norem, Victor de la Fuente, Renzo Calegari, José Benicio, Ivo Milazzo, Jordi Bernett, Paolo Eleuteri Serpieri… e também o Grande Alberto Giolitti, que foi o seu Mestre.

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