Tex e o tempo em que brincávamos de cowboy

Por Lillo Parra [1]

As primeiras lembranças que tenho remontam aos meus cinco ou seis anos. Ainda não sabia ler, mas faltava pouco para isso.

Forrando uma caixa de sapatos velha um monte de quadrinhos cortados e colados grosseiramente, naquela habilidade típica de criança. Dentro, uma porção de revistas do Pato Donald comprados na barraca de usados da feira de sábado.

Isso pode parecer estranho hoje, mas na década de 70 as feiras livres possuíam barracas cheias de revistas usadas. O meu pai era um cliente habitual. Na verdade, o meu pai era um viciado em quadradinhos.

E foi ele quem me apresentou às revistas de banda desenhada. Primeiro Disney e Maurício de Souza (bastante apropriados para crianças de cinco anos). Dois anos mais tarde presenteou-me com Capitão América nº 7, da Editora Abril. Ele não fazia ideia da patetice que estava fazendo e como aquilo definiria a minha vida a partir dali.

Mas nesse meio tempo aprendi a ler, basicamente graças às revistas de banda desenhada e à enorme paciência da minha mãe. E também conheci três personagens fantásticas, cuja importância nos quadradinhos só fui compreender totalmente décadas depois: Fantasma, Mandrake e um cowboy durão chamado Tex.

E foi esse último que se tornou o meu preferido. O meu pai era um fã do Ranger desde criança, ainda nos tempos em que o herói era chamado de Texas Kid. Das antigas revistas Júnior da infância do meu pai não vi nem sombra, mas lembro-me muito bem das edições da Vecchi lá em casa. Eu ficava horas olhando aquelas desoladas paisagens, aquelas carroças e carruagens, os índios em seus cavalos e, claro, o nosso herói.

E era ele que me inspirava nas brincadeiras de bandido e mocinho com os meus primos e amigos. Naquele tempo vendiam-se armas de plástico em qualquer loja de brinquedos. Era um mundo muito diferente. E brincávamos armados: o xerife, os “cruéis” índios navajos e as pobres donzelas (tadinha da minha irmã).

E eu era o inabalável, justo e corajoso Tex Willer.

A verdade é que mesmo com uma recém-adquirida (e ainda deficitária) capacidade de juntar aquelas incompreensíveis letras dentro dos balões, as revistas de Tex conseguiam fazer um pequeno frangote como eu – que nem sabia somar ainda – entender valores extremamente complexos como amizade, honra e abnegação.

O meu pai faleceu em 1994, às vésperas de completar 50 anos, em virtude de um outro vício, que degradou o seu corpo e mente. Em sua herança havia uma porção de más lembranças, um relógio lindo mas quebrado, um par de abotoadeiras poucas vezes usada, uma câmara Olympus com o obturador rachado e nenhuma revista.

Mas não precisava. De todas as coisas possíveis que um filho pode herdar de seu pai eu fiquei com a melhor: a inexplicável e maravilhosa paixão pela banda desenhada.

Talvez por isso estivesse tão nervoso quando me sentei à mesa na Fest Comix no ano passado. Do outro lado, o italiano Fabio Civitelli – um génio do traço e sem dúvida alguma um dos maiores desenhadores de Tex em todos os tempos.

O simpático desenhador ficou comovido quando soube que o meu pai, que tinha me apresentado Tex, havia falecido e que era aquele o motivo pelo qual eu estava ali naquela tarde: para pegar  – em sua homenagem  – um autógrafo na edição Tex Especial Civitelli.

Sai dali exultante e emocionado. Mas havia um problema  – e dos graves: não consegui abrir edição para ler.

Sim, os fãs de Tex podem achar-me um ser louco e repugnante. Em minha defesa posso dizer apenas que não sou repugnante. As acusações de loucura serei obrigado a acatar. Mas havia lembranças demais envolvidas.

Nesta semana, organizando as minhas revistas, peguei na mão a edição especial. Vi o autógrafo e resolvi que era a hora.

Li a história “O Presságio”, um volume de mais de 300 páginas, numa única tacada. Na época do lançamento, a revista foi alardeada como uma das melhores histórias de Tex e a preferida do renomado desenhador. Nenhum elogio – absolutamente nenhum  – foi exagerado.

Presságio é uma remake de uma antiga aventura do herói chamada “Sinistros Presságios” (publicada originalmente na Itália em 1965) e gira em torno de uma história de vingança de um velho feiticeiro contra Tex, líder da nação Navajo e respeitado por todos. O peão de manobra do feiticeiro é um índio navajo chamado Urso Veloz.

Tex, ao longo das últimas seis décadas, como todas as personagens de quadradinhos com tal longevidade, foi amadurecendo, suas histórias  tornando-se cada vez mais elaboradas, com construções narrativas que pouco lembram as primeiras publicações, ainda no formato de tiras.

Prova disso é a magnífica série que vem sendo publicada actualmente no Brasil nas edições Tex Gigante, onde o nosso herói se embrenha por lugares inóspitos à sua cultura, em histórias estupendas nos mais remotos lugares.

Mas “O Presságio” tem algo a mais. Algo que foge ao controle de seus criadores. É aquele tipo de história que define uma personagem.

A trama  – aparentemente simples  – vai sendo recheada de outros elementos à medida em que a lemos. O que era apenas uma história de vingança assume ares de conspiração com a entrada em cena de um oficial do exército corrupto e ganancioso.

As personagens  – mesmo as secundárias  – possuem credibilidade e  – algo raro nos quadradinhos e que deve ser comemorado – profundidade.

Aspectos da massacrada cultura indígena norte americana são muito bem aproveitados na trama. Não é um livro de história ou folclore, obviamente, mas o pouco que é mostrado nesse sentido é feito com extrema naturalidade.

Até um inesperado interesse romântico nos é ofertado.

E tudo isso dentro de um roteiro maduro, adulto. E com a arte soberba de Civitelli.

Mas não é apenas o roteiro bem estruturado ou a arte deslumbrante. “O Presságio” traz muito mais que isso.

A história  – cujo argumento é também de Civitelli, em parceria com Claudio Nizzi –mostra-nos algo muito maior do que uma revista de faroeste.

O Presságio” é uma história sobre honra. Uma história que nos conta como um verdadeiro homem deve se portar ante as adversidades. É também uma história de amor de um filho e seu pai, amor entre amigos e até entre povos diferentes.

Mas sobretudo, “O Presságio” traz-nos uma história de dimensões humanas reais, coisa rara nos quadradinhos em geral, mas já conhecida dos leitores italianos e da enorme comunidade de fãs espalhada mundo afora.

Terminei de ler o volume com um nó na garganta. Fui até à cozinha, tomei um café e acendi um cigarro.

E lembrei-me do meu pai sentado no quintal de cimento cru, lendo um Tex comprado na feira, enquanto eu brincava de cowboy, armado de um colt de tiros de espoleta e montado no Carimbó  – o enorme viralata que tínhamos.

Sem dúvida alguma, “O Presságio” um dia será apresentada também ao meu filho…

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)
 

[1] Texto de Lillo Parra apresentado no blogue Quadro a Quadro em 12 de Fevereiro de 2011.
Adaptação a cargo de José Carlos Francisco.

Copyright: © 2011, Lillo Parra

3 Comentários

  1. Precisa dizer algo mais? São histórias pessoais como essa, recheadas de verdade e sentimentos, que também fazem a mim, gostar muito de Tex. Também tenho ótimas lembranças de Tex, algumas mais outras menos sentimentais, especialmente dos primeiros TEX que eu li, emprestados por Paulo Kuhn, que relembram a mim (por exemplo a história O Vale do Terror, 006 da Vecchi) aspectos, nuances e até pensamentos que tinha naquela época (anos 80). Ótimo texto, Lillo. Parabéns! Precisa dizer algo mais?

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