Giovanni Ticci, do realismo à síntese em cinco décadas

Por Mário João Marques*

Giovanni Ticci

Em janeiro de 1967, na série Rodeo de Tex (a última série das strisce), começou a ser publicada a aventura Vendetta indiana, oportunidade para os leitores descobrirem um novo desenhador, Giovanni Ticci, que apresentava um estilo vigoroso e um Tex com uma expressão mais de acordo com o caráter determinado que lhe conferiu o seu criador Gianluigi Bonelli. Um desenhador que conseguia exprimir e caraterizar na perfeição os ambientes do velho oeste, conseguindo uma interpretação dos grandes espaços da Fronteira, que vinha inovar o que até então tinha sido feito. Um desenhador que, conforme foi posteriormente sendo comprovado, ao longo da sua carreira soube sempre estar em harmonia com o seu tempo, soube sempre evoluir, podendo afirmar-se que, enquanto o traço e as caraterísticas de muitos desenhadores foram ficando datados, com Ticci aconteceu precisamente o contrário, sendo ainda hoje considerado como modelo e inspiração a seguir por muitos desenhadores.

Giovanni Ticci nasceu em Siena, em 1940, e desde muito jovem começou a trabalhar na banda desenhada. Iniciou-se no estúdio de Roy D’Amy, onde trabalhou ao lado de nomes como Sergio Tuis, Renzo Calegari, Gino D’Antonio, Giorgio Trevisan, Aldo Di Genaro ou Ferdinando Tacconi. Mais tarde, começa a colaborar com outro grande nome italiano, Franco Bignotti, em séries destinadas ao mercado inglês, culminando em 1960 com a série Un ragazzo nel Far West, com argumentos de Guido Nolitta e sucessivamente de Gianluigi Bonelli. Ticci preparava-se para deixar o desenho e ingressar na banca, por isso, conhecedor do talento do jovem, foi o próprio Bignotti que pediu a Ticci que o ajudasse, o que veio a acontecer de modo mais evidente a partir do terceiro número, passando na altura ambos a assinar com um pseudónimo expressamente inventado: Bignoticci. De 1960 a 1966 trabalha com Alberto Giolitti, cujo estilo vai influenciar Ticci nos primeiros anos, mantendo-se entre ambos não só uma estreita colaboração profissional, como sobretudo uma sincera amizade e um relacionamento humano muito profundo. Até que chega o momento em que Sergio Bonelli convida Ticci para trabalhar em exclusivo numa nova personagem, Judok (escrita por Gianluigi Bonelli), dando-lhe total liberdade para a criação fisionómica e dos ambientes. No entanto, Ticci nunca terá um ritmo rápido, o que desagrada a Sergio Bonelli, que mesmo assim vê no jovem desenhador suficientes potencialidades para trabalhar numa série como Tex.

Apesar das reticências iniciais de alguns apaixonados, habituados ao realismo puro da banda desenhada italiana do pós-guerra, Ticci torna-se rapidamente num dos mais amados desenhadores de sempre, conferindo ao herói um rosto e uma expressividade inolvidável que veio a inspirar quase tudo e quase todos, mais de acordo com o caráter e a psicologia da personagem bonelliana. O Tex de Ticci atravessou gerações e consolidou a sua imagem, um ranger incisivo de traços marcantes, um Tex altivo, pujante, elegante, um misto de força e energia, atuante em cenários de múltiplos e amplos horizontes, pradarias, canyons e pueblos, compondo toda uma estética e uma diversidade de imagens cinematográficas que marcaram gerações de leitores. Roy D’Amy ensinou que uma boa história deveria ser entendida sem ser necessário ler as suas legendas. Conhecendo a expressividade patente no desenho de Ticci, que desde muito cedo soube ampliar e exponenciar graficamente as potencialidades narrativas dos ambientes do western e da Fronteira, nunca semelhantes palavras fizeram tanto sentido.

Vendetta Indiana de 1967 é, como acima referido, o seu primeiro trabalho, um western crepuscular, revisionista e anti-militarista, que rapidamente se tornou num pequeno clássico, iniciando aqui uma notável carreira onde terá oportunidade de expressar e exaltar as suas inúmeras qualidades. O seu Tex torna-se numa figura de referência para muitos desenhadores, mas as suas aptidões revelam-se também na composição dos grandes espaços e na interpretação dos índios. Vendetta Indiana é uma história forte e trágica, que assume as suas origens clássicas do género. Uma história perfeita para colocar à prova o traço justo e perfeitamente equilibrado do autor, capaz de criar um universo romântico, através das majestosas paisagens do oeste americano, mas ao mesmo tempo expressivo, que transmite energia e dinamismo, um traço verdadeiramente cinematográfico e naquela altura inovador. Em Vendetta Indiana, é notória a influência de Alberto Giolitti, uma vez que o desenho de Ticci vai revelar o mesmo preciosismo, detalhe, definição no traço e na composição de cenários e ambientes. Esta influência estende-se também aos traços fisionómicos das personagens, com uma composição muito realista e marcante das faces, que ainda se vai manter na aventura seguinte Territorio Apache, publicada em 1969, história adaptada do romance de Gianluigi Bonelli Il Massacro di Goldena.

Depois de ter assimilado estas influências, Ticci começa a fazer o seu próprio percurso, iniciando uma evolução contínua e sobretudo consequente. Uma evolução estilística que conservará sempre as bases do estilo anterior, não existindo dessa forma um corte abrupto. Em Ticci não há alterações repentinas, há antes uma evolução consciente, constante e natural, um assumir de um estilo cada vez mais pessoal, com um traço a querer ganhar fôlego, ansiando libertar-se das amarras que o estilo giolittiano impunha. Nesse sentido, La croce tragica, a sua primeira grande aventura (358 páginas), desde logo capta as atenções dos leitores, através de uma atmosfera diferente, com um dinamismo ímpar e uma notável habilidade em dar vida e realismo a todas as cenas. O estilo mantém-se polido, mas o traço torna-se mais decisivo e nítido. A sua capacidade em construir uma notável galeria de imagens que retratam a Fronteira começa a ganhar forma, através de pranchas onde ainda predominam as três strisce, tão caras na série. Mas o desenho pujante e pleno de vida já começa a pedir maior espaço, outros enquadramentos e perspetivas, com Ticci a utilizar o enquadramento “americano”, mais ao serviço da história do que para realçar qualquer efeito especial. Por isso, La croce tragica surge na carreira do autor como um trabalho “desenquadrado”, porque se o seu estilo começa a afastar-se de Giolitti, ainda não se assume verdadeiramente ticciano. O seu Tex começa a moldar-se, assumindo feições mais profundas, vincadas, penetrantes e uma face mais alongada, tal como os seus pards. É um Tex que o autor começa a preparar para apresentar ao leitor como sendo o seu modelo.

O passo no sentido de uma maior fluidez gráfica será dado na aventura seguinte, Terra Promessa, onde já será bem patente a utilização de desenhos que ocupam toda a largura da página, a conferir um efeito cinematográfico que o autor vai utilizar ao longo da sua carreira. Começa assim um novo período estilístico do autor, onde Ticci começa a “negligenciar” alguns fundos quando as personagens surgem em primeiro plano, uma opção consciente e segura que, longe de revelar um desinteresse por parte do autor relativamente aos cenários, permite sublinhar a legibilidade, realçando os pontos mais importantes. Estas cenas passam a ser dominadas pelas personagens, optando Ticci por enfatizar o seu papel em detrimento de um realismo puro que tanto tinha caraterizado a sua fase inicial. O artista encontra o seu estilo pessoal e toda a evolução que La croce tragica deixava antever acaba por ficar bem patente a partir de Terra Promessa. Fiel ao estilo realista, inicia-se aqui um processo de síntese que doravante passará a acompanhar Ticci na sua evolução estilística.

Com Assalto al Treno (curiosamente a aventura que Ticci menos aprecia) entramos numa nova fase, um período onde o autor abandona as faces alongadas das suas personagens e passa a apresentar aquele que doravante passará a ser o seu Tex e que acabará por vir a influenciar grande parte dos desenhadores. Um Tex sempre seguro, capaz de inspirar confiança nos amigos como temor nos inimigos, um Tex que já denotava as mesmas caraterísticas, mas que agora assume dimensões faciais mais naturais. Trata-se do período mais rico e amado pelos leitores e onde o autor vai evoluindo em direção ao sintetismo do seu traço. As aventuras seguintes podem ser consideradas como de certa forma um compasso nesta evolução, uma vez que se Sabbie insaguinate é desenhada com Giolitti, A sud di Nogales foi um trabalho que o autor realizou em períodos distintos, com uma primeira parte desenhada ainda no tempo onde predominava a influência do traço de Giolitti. No entanto, as aventuras posteriores como L’oro del Colorado, Santa Cruz e sobretudo Cane Giallo, o western em estado puro com as montanhas, as galopadas a cavalo, os barcos, as canoas, as aldeias índias, a cidade do velho oeste, onde Ticci tem oportunidade de demonstrar a sua maturidade artística, apresentam desenhos onde não existe uma total delimitação dos contornos, onde vários elementos do desenho, ao combinarem entre si, acabam por constituir uma perfeita definição linear do traço. Este sintetismo nos contornos acabará por se confrontar com o realismo dos seus primeiros tempos, convidando de certa forma o leitor a descodificar imagens e desenhos, iniciando-se assim uma cumplicidade que vai doravante caraterizar o seu trabalho. Com o desenho de Ticci, o leitor assume-se como um intérprete da imagem, concentrado em descodificar o trabalho do artista.

O sintetismo extremo que carateriza o atual período começa a dar sinais em Trappola per Lupi, com os traços faciais das personagens a reduzirem-se ao essencial, de modo a permitir uma maior expressividade, iniciando-se um período de síntese extrema que alguns começam a denominar de expressionismo. Sioux é a aventura onde se torna mais evidente esta nova evolução, a qual, tal como as anteriores, é feita gradualmente e em seguimento de uma vontade própria do autor. O seu Tex começa a envelhecer, com um olhar ainda mais profundo. Olhos (apenas com uma única linha) e orelhas são desenhados com uma notável economia de traços, convidando ainda mais o leitor a empenhar-se na interpretação gráfica do trabalho do autor. Esta síntese genial é sublinhada por um traço mais veloz, mais concreto, mais empenhado em sugerir do que propriamente em descrever, sem que tal signifique abdicar daquilo que é essencial ao autor, uma fiel e notável representação do western.

Em Congiura contro Custer, Ticci terá oportunidade de desenvolver em pleno o seu sintetismo. As numerosas cenas de batalha e de caçadas, muito diferentes entre si, plenas de homens e animais favorecem esta síntese extrema do traço ticciano, contribuindo para um trabalho de forte impacto visual. Caraterísticas também evidentes em Kiowa, outra aventura também ela ambientada na sua maior parte em espaços amplos e abertos, onde Ticci tem um trabalho visualmente único e onde o autor tem oportunidade de demonstrar a sensibilidade e a poesia do seu traço. Um traço feito de paixão e que convida constantemente o leitor a mergulhar e intervir na história. Buffalo Soldiers é outro perfeito exemplo onde o traço sintético do autor exalta a potência e o dinamismo de todas as cenas, uma das obras-primas do autor, comprovando a sua natural propensão para cenas grandiosas, plenas de acontecimentos e de personagens, chegando muito provavelmente ao limite evolutivo. É o final de um caminho natural, de um percurso consciente, que trouxe o autor do realismo puro e clássico ao traço mais sintético, eficaz, quer na representação da realidade como na expressividade de sentimentos. 

Um percurso que leva alguns a duvidar do caminho traçado: evolução ou decadência, eis a questão. A verdade é que não está ao alcance de muitos representar plenamente, com uma economia notável de traços, personagens e ambientes que expressam uma emotividade que apela à constante adesão e atenção do leitor. Por isso, Ticci continua a ser uma referência constante, não só na própria construção do ranger, que a própria Sergio Bonelli Editore passou a indicar como modelo a seguir pelos novos desenhadores, mas também na representação de ambientes e paisagens ou nas cenas grandiosas de massas, onde o traço de Ticci exalta-se e ganha expressividade. Sabendo disso, os argumentistas de Tex também conseguiram sempre escolher a contento os temas das suas histórias para este extraordinário desenhador. Gianluigi Bonelli com La Croce Tragica, Terra Promessa ou Il Messaggio dei Dakotas, Guido Nolitta com Il solitario del west ou Golden Pass (com Mauro Boselli), Claudio Nizzi em Il Pueblo perduto, Fiamme di Guerra, Orgoglio Navajo, mas também em Congiura contro Custer ou Kiowas, Mauro Boselli em Buffalo Soldiers, Gianfranco Manfredi em Sei Divise nella polvere ou ainda Pasquale Ruju com L’onore di un Guerriero, são alguns exemplos onde caberiam certamente muitos outros.

Uma página ticciana constitui um conjunto de imagens em perfeita harmonia, onde todos os enquadramentos e perspetivas são naturais, demonstrando uma notável capacidade de simplesmente contar e descrever. Ao longo da sua carreira, Ticci preferiu sempre eliminar e não adicionar, inserindo apenas o essencial, através de um traço que busca um expressionismo polido. O essencial deve ser capaz de transmitir tudo, personagens, com as suas faces e expressões, mas também toda a ação, o drama, um verdadeiro esplendor narrativo. O desenho de Ticci tem a enorme faculdade em transmitir toda uma energia e um dinamismo ímpar, onde tudo é movimento, tudo está em movimento. Se para alguns este traço essencial possa ser sinónimo de decadência, o sintetismo ticciano não deixa de ser revelador de uma vontade artística, um modelo particular e assumidamente expressivo do autor, que sublinha uma permanente sensação dinâmica, tornando o seu traço potente e imediato, salientando a beleza paisagística, o cheiro e o respiro dos ambientes, o perfume da liberdade ou a capacidade extraordinária de tornar as personagens em protagonistas de mão cheia. Analisando o seu percurso, emerge uma sincera paixão capaz de tornar o western num mundo à parte, um traço de união entre a ficção e o realismo puro, sem perder coerência e credibilidade.

Desde 1967, Giovanni Ticci desenhou mais de 7600 pranchas para Tex, sem contarmos com mais 33 que realizou para histórias curtas do ranger, onde se inclui Morte no deserto (no original – Morte nel deserto). Trata-se de uma pequena história escrita por Claudio Nizzi e publicada originalmente em 1992 na revista Sorrisos e canções da TV, da editora de Silvio Berlusconi, num suplemento chamado “Fumetti d’Estate” (Revistas de Verão), cuja capa reproduzia a última cena da história. Curiosamente, nesta aventura com um argumento imparável, servida por diálogos intensos, exceptuando o próprio Tex (e Carson, que é apenas mencionado), chegamos ao fim sem saber o nome de qualquer das personagens.

A produção de Giovanni Ticci em Tex é enorme, tendo ainda realizado várias capas, dividindo com Galep e Villa essa honra, não só a do Speciale por si desenhado (Il pueblo perduto), mas também as 30 da Collezione Storica a Colori Serie Gold, bem como algumas edições publicadas pela Mondadori. Por isso, se a Galleppini caberá o mérito de ter criado Tex, através do seu traço elegante, Ticci deu-lhe um rosto, mergulhou o herói no verdadeiro oeste e convidou o leitor a interpretar graficamente a aventura, porque do desenho de Ticci emerge emoção, movimento e poesia.

Nota: na elaboração deste texto foram consultadas várias fontes, nomeadamente artigos publicados em Tex Collezione Storica a Colori, Tex Willer Magazine e Giovanni Ticci – Un “americano” per Tex, de Moreno Burattini e Graziano Romani.

* Texto de Mário João Marques publicado originalmente na Revista nº 6 do Clube Tex Portugal, de Junho de 2017.

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)

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