AURELIO GALLEPPINI VISTO POR…

Por Mário João Marques*

Em 1948, a Editora Audace, liderada por Tea Bertasi Bonelli, decide lançar uma nova personagem, Occhio Cupo, uma espécie de Robin dos Bosques americano, destinada a ser publicada em grande formato. Aurelio Galleppini é chamado a desenhar esta nova série, no entanto, não será esta a personagem que irá marcar a sua carreira, mas sim outra, de nome Tex Willer, no pequeno e modesto formato striscia, e de quem o desenhador se vai ocupar apenas à noite, numa primeira fase, para posteriormente, devido ao crescente sucesso, dedicar-se a tempo inteiro, dedicar-se toda uma vida, desenhando mais de 18.000 pranchas, cerca de 2000 capas e um sem número de ilustrações. 

Sergio Bonelli com Aurelio Galleppini em Stradella em 1988

Desde aquele ano de 1948, Tex tornou-se no companheiro da minha vida. Durante 40 anos consecutivos vivi todos os dias com este cowboy leal e generoso”. Este empenhamento levou a que Galep gradualmente viesse a ter uma simbiose psicológica com a personagem, Tex passou a fazer parte da sua vida e o autor passou a respirar a personagem. Desenhar Tex era para Galep um trabalho feito de dedicação e amor, que o vai levar a renovar constantemente o grafismo e a envolver da melhor forma personagens e ambientes no seu tempo. Uma evolução que o vai conduzir à maturidade gráfica e narrativa e que a entrada de novos desenhadores na série vai ajudar. Solto e livre dos constrangimentos estabelecidos pelos prazos apertados de entrega do material, o autor liberta-se da solitária e árdua responsabilidade de conduzir sozinho os destinos do herói. Assim, surgem sucessivamente obras-primas como Fort Defiance em 1969, Tra due bandiere em 1970, Il figlio di Mefisto em 1971, El Muerto em 1976, ou ainda Il killer senza volto em 1984, com um traço mais crepuscular, aventuras que apresentam páginas memoráveis e que são perfeitamente representativas das inegáveis qualidades de Galep, que soube sempre gerir, com maior ou menor dificuldade, as necessidades entre produção e consumo, aquela linha intermédia situada entre a obediência a prazos, sem contudo baixar a qualidade do trabalho apresentado. Galep foi sempre capaz de interpretar da melhor forma as necessidades editoriais e do leitor, soube adaptar-se aos desejos do público sem nunca trair políticas editoriais, conservando sempre uma identidade bem definida para o herói. E neste conjunto de grandes trabalhos gráficos merecem também realce Frontiere di Fuoco, onde Galep assume um traço mais expressivo e instintivo, mas sobretudo episódios como Gli sterminatori e La lancia di fuoco, onde o desenhador vai assumir uma liberdade até então ainda nunca vista na série, alargando e aumentando os desenhos para além do seu formato caraterístico de strisce, com determinados quadrados a deixar de conter todos os traços que o rodeiam e muitos desenhos a estenderem-se até aos limites de outros, fugindo assim da clássica imposição editorial.

Uma dedicação à personagem que também merece ser realçada pelas dificuldades com que Galep, injustamente, se deparou com o meio da banda desenhada italiana. Ao contrário de outros, Galep dedicou-se durante 40 anos com a mesma personagem, o que poderá parecer funcional e linear ou trazer problemas de criatividade capazes de inibir o desenhador a libertar-se para outros horizontes. Apesar de confrontado com uma série em contínuo, que muitas vezes deixava pouco tempo para a criatividade, Galep foi sempre capaz de aproveitar os raros momentos de reflexão, dedicando-se também à pintura, paixão a que já se tinha dedicado quando terminou a guerra, naquela altura por dificuldades económicas. Nas raras ocasiões que a série lhe permitia, entre pranchas a preto e branco e as capas a cores, Galep exponenciou as evidentes possibilidades da cor através da pintura. Desde os cartazes cinematográficos até aos desenhos publicitários, passando pelas capas de livros e revistas, ao longo de décadas Galep foi construindo uma verdadeira galeria de obras. Esta paixão nunca o atrasou com a entrega das pranchas de Tex, com as quais foi sempre pontual, roubando sim algumas horas ao seu sono para poder exprimir as suas emoções.

Foto dos anos 80 com Decio Canzio, Francesco Coniglio, Aurelio Galleppini e Gallieno Ferri

Para muitos, Tex é Galep, porque o desenhador amou verdadeiramente a sua personagem e soube sempre demonstrar esse sentimento através do seu desenho, soube sempre deixar no seu trabalho uma impressão de amor, paixão e verdadeiro profissionalismo. Sem triunfalismos excessivos, com a serenidade de quem simplesmente fez o seu trabalho e de quem seguiu sempre o seu instinto e a sua própria vocação.

Por isso, no ano do centenário do nascimento de Aurelio Galleppini, nada mais justo que a revista do Clube Tex Portugal lhe preste aqui a sua humilde homenagem, complementada com um conjunto de testemunhos de outros autores dos fumetti.

Moreno Burattini

Nunca conheci pessoalmente Aurelio Galleppini, mas obviamente li os seus fumetti desde os meus tempos de criança e por isso parece que sempre o conheci. Em 1992, eu era um jovem argumentista, chegado há pouco tempo à Bonelli (a minha primeira história de Zagor é de 1991) e, apesar de saber que eu era um perfeito desconhecido aos seus olhos, mesmo assim escrevi uma carta pedindo-lhe se poderia fazer-me um desenho para o meu casamento: o meu desejo era imprimir o desenho e entregá-lo aos convidados na cerimónia de núpcias. Não esperava que, devido à sua idade e ao seu estado de saúde, Galep me respondesse. Pelo contrário, no espaço de uma semana vejo chegar um desenho com dedicatória e cheio de humor, no qual se podia ver Tex empenhado a lavar pratos! Foi um presente maravilhoso, feito por um autor de uma grande humanidade e que evidentemente estava sempre disposto a ouvir todos. Apenas dois anos mais tarde, em 1994, chorei a sua morte.

Pasquale Frisenda

Tex” foi um dos primeiros fumetti que descobri e Aurelio Galleppini um dos primeiros desenhadores que passei a decorar o nome, assim como a reconhecer o estilo. Desde então nunca mais deixei de acompanhar a sua carreira, com um afeto inalterável e uma estima constante, procurando, sempre que possível, recriar nas minhas pranchas aquela atmosfera western que sempre admirei no seu desenho e que me emocionou desde criança.

Aurelio Galleppini e a sua paixão pelos comboios

Pasquale Del Vecchio

O desenho de Galleppini para mim sempre representou a declinação mediterrânica do estilo clássico dos grandes autores americanos como Alex Raymond e Hal Foster. Galep, com o seu pincel macio, contribuiu para criar a via italiana do fumetto de aventura. O seu estilo evoluiu ao longo dos anos, de uma síntese extrema no início, até à utilização de sombreados e contrastes nos últimos anos.

Walter Venturi

Quando eu era criança, em casa do meu tio Renato havia sempre dois ou três Tex num móvel da casa de banho. Na capa aparecia uma assinatura que soava anglófona e que me levava a pensar quem seria este desenhador capaz de atrair a minha atenção, com os seus cowboys e índios nas mais desesperadas situações. Hoje, trabalhando para a sua mesma editora, não posso senão guardar um imenso respeito por um trabalhador incansável, capaz de, com poucos traços e escassos meios, sem ter à sua disposição a documentação que nós temos hoje, marcar o imaginário coletivo de diversas gerações de leitores.

Bruno Brindisi

Galep está para Tex como Walt Disney está para Mickey. Apesar de tantos grandes desenhadores que lhe sucederam e que contribuíram para a evolução do estilo, para os aficionados ele será sempre “O Desenhador” de Tex, o único cujo nome é recordado por todos, juntamente com o de Gianluigi Bonelli. A quantidade e a qualidade do seu trabalho em Tex é inigualável, a sua identificação com a personagem é completa. Infelizmente, arrependo-me de nunca o ter conhecido pessoalmente.

Maurizio Dotti

Nos anos 60, para um adolescente ansioso por aventura, o que havia de mais evocativo e marcante que uma banda desenhada de western? Naqueles anos, para além das histórias aos quadradinhos, pouco mais havia; para nós, rapazes despreocupados, a aventura era “Galep”. Não sabíamos quem era, apenas uma assinatura impressa naquelas esplêndidas capas, extraordinário cartaz de histórias maravilhosas de índios e cowboys, soldados a cavalo, foras da lei, xerifes e sobretudo o nosso herói: Tex Willer, o ranger do Texas. O seu estilo brilhante e expressivo conseguia, com grande dinamismo, tornar vivas e palpitantes, ainda mais verdadeiras, as estáticas aventuras do papel. Galep era um grande artíficie deste mundo aventuroso, incansável na sua prolífica criatividade, produtor e cenógrafo da nossa fantasia. Alimentou a nossa imaginação, dando-nos a mão até à idade adulta e mais além. Eu ainda sinto essa mão apertar a minha, uma mão especial que, inesgotável, alimenta o meu entusiasmo para realizar novas aventuras.

Lucio Filippucci

Não conheci pessoalmente Galep, mas a sua figura acompanhou-me desde os meus primeiros passos no mundo da banda desenhada como um gigante, um titã mitológico que via inalcançável naquele Olimpo dos grandes autores da Nona Arte. Para mim sempre foi um mistério como conseguia produzir tantas pranchas mantendo um estilo excelente. Naturalmente que, nos primeiros anos de produção de Tex, não era requerido o cuidado quase maníaco do detalhe como hoje acontece, chegando mesmo a ser necessário desenhar os parafusos de uma pistola, o que não invalida que a produção de Galleppini fosse extraordinária. O mistério explica-se pelo simples facto de que ele era um grande desenhador, um verdadeiro mestre não apenas no ritmo de trabalho, mas também no estilo. Para além disso, o que não é pouco, conseguia “capturar” o leitor, levando-o a mergulhar literalmente na história. Creio que (e nisto não sou o único) grande parte do sucesso de Tex seja propriamente devido ao seu desenho. Galep permanece, para nós desenhadores de fumetti, um indicador de bravura e humildade (sendo esta uma qualidade que tenho como essencial num grande autor), um artista que deve pertencer por direito à legião dos grandes autores da banda desenhada mundial.

Aurelio Galleppini e os 4 pards na arte de Galep

Stefano Biglia, recordações de algumas tardes passadas juntas

Tive a felicidade de conhecer pessoalmente Aurelio Galleppini, pessoa distinta e de fino trato. Conheci-o no seu ambiente natural, o seu estúdio de trabalho. Naquela pequena sala, feita num amplo apartamento, ele trabalhava de casaco e gravata. Naquele local recolhido encontrava-se, no entanto, um mundo gigante feito de fantasia, de centenas de desenhos, esboços, pranchas originais de Tex. Nas paredes, reproduções de winchesters e pistolas, filmes western que passavam no écran de um pequeno televisor. Um ampliador para revelação de fotografias, quadros a óleo de um passado de pintor, dezenas de livros, um modelo de diligência. Recordo as suas sugestões para a utilização das cores e as demonstrações da passagem a tinta, com pincel: dizia-me “É preciso ter movimentos rápidos”. E recordo ainda muito bem aqueles gestos rápidos e precisos que magicamente delineavam a face de Tex Willer. Depois chegava o momento da inesquecível visita a uma gigantesca reconstrução de uma linha ferroviária, hobby que Galep cultivava com excelentes resultados. Os pastéis oferecidos e os pincéis usados pelo mestre (que ainda conservo). Momentos preciosos que me acompanharam, de jovem desenhador inexperiente até hoje, e que me fizeram desejar fazer parte daquele mundo fantasioso e elaborado. Obrigado Aurelio. 

Andrea Venturi

Nunca conheci Aurelio Galleppini, o Grande Galep. No entanto, parece que isso sempre aconteceu. Terá sido pela admiração que sempre estabeleci com os seus desenhos, desde criança,  na minha casa, entre as páginas dos álbuns que o meu pai, antes mesmo de mim, lia. Tive, no entanto, a felicidade, sobretudo desde que comecei a trabalhar para a sua mesma editora, de privar com muita gente que o conheceu, mesmo muito bem. Desta forma, não deixei escapar a oportunidade de escutar alguns episódios sobre ele, ouvindo com toda a atenção, de modo a que cada vez mais me pareceu tê-lo conhecido. Um desses episódios mais conhecidos, o primeiro que me vem sempre à memória, é aquele que Sergio Bonelli contou inúmeras vezes, recordando como Galep, depois de trabalhar um dia inteiro na série Occhio Cupo, dedicava as suas últimas energias noturnas a realizar as primeiras páginas de Tex. Naquela época, Galleppini  vivia e trabalhava na casa da família Bonelli e o jovem Sergio Bonelli, que dormia no quarto ao lado, conseguia ver as luzes ainda acesas que saiam das ranhuras da porta do desenhador, destinado a tornar-se um dos maiores e mais amados por tantas gerações de futuros leitores. Tudo isto, para quem cresceu com pão e fumetti como eu, adquire um sabor de conto de fadas, de algo mitológico… E no entanto, a beleza disto tudo reside no facto de ter realmente acontecido! Obrigado, mítico Galep, por todas aquelas noites sem dormir…

* Texto de Mário João Marques publicado originalmente na Revista nº 7 do Clube Tex Portugal, de Dezembro de 2017.

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima clique nas mesmas)

4 Comentários

    • Irá ter sim, mas o contrato ainda está sendo negociado com a Bonelli, mas acredito que em breve teremos novidades a respeito.

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