As críticas do Marinho: Limpeza Completa – (Tex brasileiro 543 e 544)

Por Mário João Marques

Nantan e Dimas são dois polícias apaches, injustamente acusados do homicídio de um traficante de álcool, sendo condenados e deportados para uma prisão. Chamados pelo capitão Webster, os quatro pards descobrem que tudo aconteceu com a cumplicidade de patentes militares, mais uma vez com o objectivo de lucro próprio em negócios ilícitos. Entretanto, durante a viagem que os levará até à penitenciária, os dois índios organizam uma tentativa de fuga, mas Dimas acaba por morrer. Nantan, no entanto, consegue evadir-se, iniciando o regresso à sua terra com o objectivo de vingar-se de todos os que prepararam a armadilha, sobretudo do guerreiro apache Uday, que acredita ser também cúmplice em todo este processo.

Numa série com décadas de sucesso e por onde já passaram vários autores, muitas vezes uma aventura não deve o seu maior ou menor sucesso à originalidade do tema. Residirá na maior ou menor capacidade dos autores saberem ou poderem desenvolver este ou aquele tema de uma forma que possa captar a atenção do leitor. Dito de outra maneira, uma boa ideia por si só não faz uma grande aventura, mas a arte e o engenho do autor na sua planificação, no desenvolvimento da acção, na gestão dos tempos, na apresentação de ambientes e na composição das personagens, contribuirá muito para o seu êxito.

O tema base desta aventura não primará pela sua originalidade, mais uma vez um plano urdido para condenar uns em proveito de negócios ilícitos, mas Boselli aproveita para desenvolver um conjunto de pontos que se interligam com a história: o papel dos agentes índios, que o autor já tinha tratado na aventura Policia Apache, desenhada por Ernesto Garcia Seijas; a rivalidade entre dois índios da mesma tribo, Nantan e Auday, pelo facto do primeiro ser um agente ao serviço dos brancos, desta forma acusado de renegar o seu próprio povo, as suas origens e a sua cultura; o tráfico de álcool tão frequente e sempre presente neste tipo de aventuras; e, mesmo que ao de leve, a solidariedade entre dois homens, apesar de raças diferentes, ambos vítimas de perseguição e racismo, o apache Nantan e o negro Adam. No caminho que o levará de regresso às suas terras e ao seu povo, Nantan invade a casa de Adam, mas em lugar de se deparar com a hostilidade deste, acaba por conhecer um homem na mesma situação, um homem habituado às injustiças dos brancos, alguém que também sofreu profundamente na pele por ser considerado de outra raça, alguém que não só compreende Nantan, como vai mesmo ajudá-lo.

As personagens são marcantes, mas é em Nantan que Boselli centra as suas atenções e constrói uma personagem plena de valores. Nantan é um homem de lei, sem ser advogado ou juiz. Como polícia apache, Nantan anseia trazer a paz e a legalidade para a sua tribo. Para Nantan, um povo sem lei não tem futuro. Certamente que a riqueza da personagem poderá levar-nos a que, de certa forma, possamos considerá-la como a verdadeira protagonista da aventura. Não vamos tão longe, simplesmente porque em Boselli as personagens adquirem muitas vezes esta riqueza e este protagonismo, o autor não raras vezes constrói personagens densas capazes de conduzir o leitor a ampliar o seu papel. Se Nantan busca a justiça, a sua vingança, lavar a sua honra, isso não confere por si só um protagonismo de tal modo vincado que o torne na “personagem”. Certamente que Nantan é carismático, é um homem de valores, aliás muito semelhantes aos de Tex, mas foram muitas as personagens bosellianas que assumiram esta importância e este protagonismo. Nathan não é o primeiro, e conhecendo Boselli não será certamente o último, mas é talvez uma personagem com condições para que possa vir a reaparecer em futuras aventuras, mercê desta semelhança de valores para com o ranger.

Apesar de não ser o último trabalho do espanhol José Ortiz para Tex (a publicar no Maxi Tex de 2015), esta aventura deixa mesmo assim um certo simbolismo, já que a sua publicação surge poucos meses após o falecimento do autor. Depois da sua estreia em 1993, com a aventura O Grande Roubo, Ortiz nunca mais deixou de trabalhar para Tex. A sua chegada à série representou na altura um sonho, pois permitiu ao autor regressar ao desenho do western, a sua paixão, mas também tornar-se num dos autores de uma série de sucesso, convivendo aqui com Jesus Blasco, uma verdadeira referência para Ortiz. Apesar da idade mantinha um ritmo rápido, o que lhe permitiu ainda desenhar várias aventuras e permanecer na história da série como um dos seus mais importantes desenhadores.

Ortiz desenhou páginas intensas em aventuras inolvidáveis: o já referido Grande Roubo, mas também Os Assassinos de Lincoln (que marcou a sua estreia na série normal), Rumo a Forte Apache, o Trem Blindado, O Ouro dos Confederados ou ainda O Caçador de Fósseis, estas três últimas escritas por Antonio Segura, igualmente espanhol e também recentemente desaparecido.

O seu Tex, decalcado do modelo ticciano, sempre foi cínico e duro, imponente em páginas plenas de negros intensos, uma característica do autor que sempre dividiu os leitores, conferindo-lhe uma imagem de marca que muitos chegaram a apelidar de estilo porco, sem que esta classificação contenha em si alguma conotação negativa. Por outro lado, as suas personagens sempre foram vincadas na sua construção, muito maniqueístas, na medida em que rapidamente o leitor as identificava e rotulava com a sua própria natureza e com o papel que desempenhavam na acção. No entanto, desde há alguns anos que o seu traço acusava o passar do tempo, não apresentando a segurança e o detalhe que fizeram de Ortiz um autor muito apreciado no panorama da banda desenhada internacional.

Em jeito de homenagem, Boselli escreveu que o western é feito de sangue, suor e muita pólvora, onde a dura lei da natureza convive permanentemente com a liberdade dos grandes espaços. Os homens deste velho Oeste devem ser duros e monumentais e Ortiz foi um dos artistas que soube captar e caracterizar bem esta verdadeira atmosfera e estas personagens. Nem mais!

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)

4 Comentários

  1. Como leitor Portuga…
    Acho pouco sensível estar a falar de algo que só daqui a uns anos vamos poder comprar, não é lógico. Nem todos nós temos “modos” de importar os/as livros/revistas do Brasil. Marinho, meu pard, fala-me das histórias atuais. Bom fim de semana, abraços.
    Bernardino Oliveira (Nel Oliveira)

    • Prezado pard Nel, eu como editor do blogue percebo perfeitamente o seu ponto de vista, só que hoje em dia o blogue português do Tex é uma referência mundial e considerado quase unanimemente, inclusive por responsáveis e autores de Tex o melhor espaço na Internet Mundial dedicado ao Tex (sem falsas modéstias) e por isso temos que estar na vanguarda das novidades e leituras, até porque grande parte do nosso público é originário do Brasil e da Itália e por isso publicamos até notícias e críticas que são inclusive algo de inédito para os italianos daí a opção de continuarmos a publicar estas críticas do pard Marinho, sem menosprezo pelas edições que vão saindo em Portugal e que inclusive divulgamos todos os meses para o nosso público português, mas esta rubrica do Marinho é tão extensa e antiga que as histórias que vão saindo em Portugal também já tiveram, na sua grande maioria, a sua crítica publicada aqui no blogue, é só consultar a rúbrica “As críticas do Marinho” 😉

      Um abraço e veja se dias 9 e/ou 10 de Maio pode dar uma saltada até Anadia para participar na 2ª Mostra do Clube Tex Portugal para eu poder ter o prazer de o conhecer pessoalmente e apresentar-lhe os dois autores italianos que estarão presentes no evento, o Frisenda e o Biglia 🙂

  2. Amigo e prezado pard Zeca, tudo o que disse eu já o sei há muito tempo. Só que hoje senti-me invejoso, pois, no fundo todos nós “Portugas”, merecíamos estar mais dentro das publicações brasileiras, que são as nossas.
    Não vale perder tempo com conversas sobre tudo aquilo que infelizmente se passou na distribuição das ditas revistas. Lamentável…
    Sobre Anadia sabes bem que adoraria, vamos ver, quem sabe…

  3. Mau grado a passagem dos anos, que nunca perdoam, o traço de Ortiz manteve sempre o seu vigor e a sua capacidade de atracção, recriando os ambientes e as personagens de forma única, com um estilo já denominado de “sujo” (o que me parece excessivo), mas que eu prefiro apelidar como expressionista, pois poucos desenhadores souberam representar o alto contraste do preto e branco de forma tão intensa e equilibrada. Mesmo tendo perdido, nalguns pormenores, a segurança e perfeição do traço, não há dúvida de que Ortiz, o velho mestre, ainda dava lições a muitos principiantes nos últimos trabalhos que vi dele.
    Apesar do citado episódio — que me lembra a trama de um filme com Burt Lancaster, em que este fazia também o papel de um Apache foragido — ainda não ter chegado às nossas bancas, devemos felicitar o “expert” Marinho pelas suas crónicas, que se lêem sempre com prazer e nos abrem o apetite para mais trabalhos da sua autoria, pois quanto a mim estão ao nível dos que recheiam muitas edições brasileiras de Tex, com a assinatura de Júlio Schneider.

Responder a Nel Oliveira Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *