Por Rui Cunha
São raras as vezes em que um livro de banda desenhada começa com a imagem de uns abutres a voarem sob um sol quente de meio do dia, logo seguida duma outra onde os mesmos abutres investem sobre um qualquer objecto que, no quadro seguinte, descobrimos ser o cadáver de um cowboy. Não deixa de ser um início digno do melhor (ou do pior) Western ou de um qualquer livro cuja acção decorra no velho Oeste. Mas tratando-se duma aventura de Tex Willer, o Ranger mais famoso do Oeste, este mesmo começo, forte e pouco habitual nas suas aventuras, adquire uma outra dimensão que nos obriga de imediato a voltar a página para ver o que acontece e aqui sim, definitivamente, estamos no universo de Tex Willer, personagem de banda desenhada criada por Gian Luigi Bonelli e Aurelio Galleppini, em 1948 e onde o caso muda de figura.
Percebemos então que Tex e Kit Carson, seu companheiro de aventuras, estão na pista de Lonnie Moon e do seu bando de assaltantes de bancos. A perseguição vai levá-los até Langtry, um povoado perto da fronteira com o México, onde os dois Rangers vão encontrar uma personagem com quem já se haviam cruzado anteriormente: Roy Bean, um Juiz que diz ser “A única Lei a Oeste do Pecos”. Depois de ouvirem a sua história e ele lhes revelar dois segredos que guardou consigo a vida inteira, Tex e Kit, apelando ao seu senso de honra e justiça, decidem ajudar a enfrentar e resolver um problema que o Juiz vai ter pela frente.
Está dado o mote para “O Segredo do Juiz Roy Bean”, uma história escrita por Mauro Boselli e desenhada por Pasquale Frisenda, a mesma dupla que já havia feito “Patagónia”, em 2009 e com o qual a Editora Polvo inaugurou, em 2015, a série “Tex Romance Gráfico”, da qual vem agora a lume o terceiro volume.
Já em “Patagónia” se percebia o fascínio que o universo do velho Oeste exercia sobre os autores, bem patente na arte com que ambos nos brindaram então. Se naquele o facto de Boselli deslocar a acção, habitualmente centrada nas pradarias do oeste para as pampas argentinas, se revelara um risco que poucos autores estão dispostos a correr e que Frisenda tão bem soube ilustrar, em “O Segredo do Juiz Roy Bean” os mesmos riscos voltam a estar presentes, apesar da acção se passar no universo habitual do género, mas a história, graças a um argumento inteligentemente escrito, evita os lugares-comuns e a narrativa fácil que poderia comprometer o seu desenvolvimento. Quando tudo parece quase resolvido, o argumento cresce evoluindo para algo tão singelo como a ganância e adquire uma outra dimensão, esta, já própria do Oeste.
Pasquale Frisenda, por seu lado, alimenta o argumento de Boselli com quadros dignos do melhor que alguma vez se produziu em banda desenhada (como o já citado quadro inicial ou as sequências de acção que acontecem em Langtry quando o bando de Pablo Morientes ataca). Talvez o melhor momento de toda a obra esteja no começo da pág. 59 com o pôr-do-sol (magnificamente captado pelo desenhador) e continua nas páginas seguintes (o avanço do bando com o sol pelas costas) e termina na investida dos cavaleiros no principio da página 69, pelo meio estão várias páginas que complementam a cena e que não deixam igualmente de ser dignas de referência. Frisenda afirma-se também pela forma como desenha as personagens que vão surgindo na história, algumas delas parece que ganham vida própria no seu traço (principalmente Lily Langtry, a eterna paixão de Roy Bean, quando surge na sequência do sonho). É um livro que se lê com um agrado entusiasmante e de um fôlego só.
Fica igualmente a ideia de que ambos os autores são fãs incondicionais do Oeste e do universo por ele criado. Se na obra anterior da dupla, essa mesma paixão já se notava e aparecia em muitas das páginas, em “O Segredo do Juiz Roy Bean”, ela é praticamente permanente em toda a obra, cada página é um exemplo vivo dessa mesma paixão e ainda existe espaço para algumas referências e/ou homenagens a obras da Sétima Arte como por exemplo, “High Noon – O Comboio Apitou Três Vezes” (Fred Zinnemann, 1952) em toda a sequência que se passa em Langtry quando o Juiz, os cowboys que ficaram e os Rangers aguardam a chegada de Shad Collins, irmão de um dos réus julgado e enforcado por Bean e do bandido mexicano Pablo Morientes e do seu bando ou alguns outros clássicos do Western que, de uma maneira ou de outra vão desfilando perante os nossos olhos em páginas carregadas de paixão pelo género e pela Nona Arte.
Quanto à edição em si, “O Segredo do Juiz Roy Bean”, é mais um triunfo com que a Polvo Editora de Rui Brito brinda o leitor. Um livro apresentado num papel suave e de fácil manuseio (apesar das suas mais de 220 páginas!), capaz de ombrear com o que se faz internacionalmente mas também de fazer envergonhar qualquer editora de renome.
Toda a edição, parece-me, foi pensada para tornar a sua leitura cativante: a começar na introdução/apresentação da personagem do Juiz Roy Bean, mais um excelente texto escrito pelo Mário Marques, que nos dá o mote para, mais que nunca, nos atirarmos à leitura de toda a história parabéns, Mário! (eu também gostava de escrever assim!); uma história, duas capas exclusivas para a edição portuguesa, feitas por Pasquale Frisenda (qual delas a melhor!?), a título particular, devo dizer que este leitor/comentador teve alguma dificuldade em escolher qual a melhor capa, por isso adquiriu duas edições do livro com ambas as capas e leu a obra a partir de uma e escreveu este comentário a partir da outra porque realmente é muito difícil escolher uma das capas! (apesar de nas badanas de ambas as edições, constar a outra capa além de outras informações), o que denota o apreço dedicado a esta obra por parte de todos os envolvidos, sem falar, claro, nos seus autores, desde Rui Brito, responsável pela edição, Mário Marques e sem esquecer o José Carlos Francisco, o culpado principal por esta obra chegar ás mãos dos fãs portugueses de Tex.
Finalmente chegamos ao cerne da questão e o único senão desta luxuosa edição: a sua tradução que como se sabe é da responsabilidade do José Carlos Francisco, neste e nos volumes anteriores e, espera-se, igualmente nos próximos. Não querendo menosprezar o titânico trabalho que uma tradução deste género implica (que já frisei nos comentários anteriores), apesar da revisão a que as obras são submetidas (na maior parte dos casos pelo editor, o que também acontece neste livro), tenho de reconhecer que, se de “Patagónia” para “Tempestade sobre Galveston”, houve melhorias e deste para “O Segredo do Juiz Roy Bean”, houve ainda mais, continuam a existir léxicos brasileiros (mas, reconheço, que nesta edição, existem muito menos), que continuam a manter estas edições da colecção Tex Romance Gráfico numa espécie de híbrido entre o brasileiro e o português, o que, numa edição que se diz exclusivamente portuguesa, não soa lá muito bem. Seja como for, quero dar os parabéns, uma vez mais, ao hercúleo trabalho que o Zé Carlos teve na tradução de mais esta história e, tal como disse no meu comentário ao volume anterior desta colecção, continuo à espera dum volume totalmente escrito em português! Rui e Zé, Keep up the good work!!
Para quem gosta deste género de aventuras passadas no velho Oeste, para quem gosta de Tex ou para o simples apreciador de Banda Desenhada, “O Segredo do Juiz Roy Bean” é o livro indicado e é mais um triunfo editorial português.
O livro “O segredo do juiz Bean“ encontra-se à venda nas Bertrand’s e FNAC’s espalhadas pelo país.
Há também sempre a possibilidade de poder enviar um e-mail ao editor Rui Brito para adquirir directamente o livro à Polvo Editora. O seu e-mail é ruibritobad@gmail.com
(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)
“Continuo à espera dum volume totalmente escrito em português!“. Bem estranha (e algo preconceituosa) esta frase do texto, cuja ironia não soou bem. Sempre pensei que as inúmeras edições brasileiras de Tex tivessem sido publicadas em português. Com certeza não é o “português de Portugal“, mas continua a ser “português” ou, para o autor, apenas a versão falada/escrita em Portugal é o verdadeiro “português” e no Brasil se fala/escreve alguma versão colonial?
Amigo ou amiga Juruna,
Se existe alguma coisa que eu não sou, é preconceituoso, tenho muitos amigos brasileiros com quem me dou lindamente, além de que o Brasil é um país do qual eu gosto muito e onde me desloco frequentemente, quer em serviço, quer em férias.
Se essa frase está no meu comentário, ela não tem nada de preconceituosa, está lá apenas para desafiar quem de direito a utilizar termos próprios de língua portuguesa e não termos copiados da edição brasileira da obra (que, por acaso, eu também tenho!).
Espero que tenha gostado da obra e, preconceitos à parte, espero que o meu comentário também tenha sido do seu agrado.
Cumprimentos,
Rui Cunha