O herói e a lenda

Por Mário João Marques *

O herói e a lenda

Desde 1948 que Tex Willer vem cavalgando com sucesso inúmeras aventuras, algumas delas vividas ao lado de figuras do oeste americano, que a História veio a elevar ao patamar de lendas, como Wyatt Earp, Wild Bill Hickok, Buffalo Bill, o general Custer ou o chefe apache Gerónimo, apenas para citar alguns dos muitos exemplos. Protagonista e testemunha privilegiada de um período rico da História dos Estados Unidos, um tempo conturbado e ao mesmo tempo tão rico de acontecimentos, tornou-se, desta forma, também ele uma verdadeira lenda. A Sergio Bonelli Editore (SBE) parece ter percebido tamanhas potencialidades e, nos últimos tempos, tem vindo a desenvolver uma estratégia editorial que tende a elevar a sua grande personagem para além do mero patamar de herói. Na verdade, o título da recente aventura do ranger assinada por Paolo Eleuteri Serpieri (Tex, l’eroe e la leggenda), parece sintonizar-se com uma estratégia editorial e do curador da série Mauro Boselli, a qual, de tão rica e diversa, reforça as caraterísticas do herói bonelliano, elevando-o desta forma ao patamar de lenda.

Com a obra de Serpieri, esqueça o leitor qualquer rigor cronológico, esqueça certamente o herói Tex Willer que está habituado a ler e apreciar, porque o que o autor nos traz é uma verdadeira lenda, “um duro e faz o seu primeiro escalpe”, de acordo com as próprias palavras do autor. Tudo começa quando afinal Tex já não existe, em 1913, na cidade de Nova Iorque, precisamente num hospital psiquiátrico, onde também se encontram alguns idosos reformados de uma vida plena. É o caso de Kit Carson (será mesmo ele?) que, a pedido de um jovem jornalista (que no final se identificará como Bonelli), começa a recordar as vicissitudes da sua extraordinária vida, sobretudo os momentos passados ao lado de um homem carismático, leal, corajoso e determinado. Um homem que era duro quando necessário, chegava a matar, mas apenas quem realmente merecia, um amigo sincero para todos os que eram justos e leais, inimigo eterno dos malfeitores, dos ladrões e dos assassinos. Um homem perfeitamente habilitado e capaz de sobreviver no duro oeste, não hesitando em disparar quando a única lei era a das armas. Esse homem era Tex Willer, o herói e a lenda! Um Tex já como Águia da Noite, mas ainda um jovem irrequieto. Um Tex de cabelos compridos e que ainda não se encontra acompanhado a tempo inteiro por Carson. Serpieri pretende um rigor histórico, não tanto por qualquer preocupação com a série e a evolução do herói, mas sempre pela época, através do detalhe com que apresenta os ambientes e as indumentárias militares. Mas este Tex de Serpieri já é um herói seguro de si, já em busca da justiça, se necessário com uma dureza implacável em perfeita sintonia com os tempos duros da fronteira. Um Tex que muitas vezes não tinha alternativa, mas que sabia distinguir o bem do mal, caraterísticas que o virão a tornar numa lenda. É esta faceta épica do herói que a aventura de Serpieri pretende realçar, sublinhar a consciência da qual o herói numa abdica, apesar de inserido num ambiente violento e duro.

Tex l’eroe e la leggenda

Com Tex l’eroe e la leggenda, Serpieri tem oportunidade de evidenciar o fascínio que sente pelo western, uma abordagem do herói privada de rigor histórico e que já tinha sido imaginada pelo autor desde há algum tempo. Sergio Bonelli era um grande admirador do traço e das capacidades de Serpieri, tendo proposto mesmo que o autor desenhasse um Texone, o que o autor recusou devido à extensão do trabalho e o tempo que seria necessário para se dedicar ao projeto, apresentando esta abordagem que pretendia realizar. Sergio Bonelli acabou por recusar, não sem antes sublinhar que o projeto de Serpieri seria certamente do agrado do seu pai Gianluigi Bonelli. Anos mais tarde, já com Mauro Boselli ao leme da série e uma nova gestão, a SBE decide publicar uma nova coleção de álbuns cartonados a cores, Tex d’Autore, que promete contar as aventuras do ranger através do traço de grandes nomes da banda desenhada, e nada melhor do que um nome consagrado como Paolo Eleuteri Serpieri para inaugurar aquilo que se perspetiva ser mais um sucesso editorial. Coleção que recentemente viu ser publicado mais um álbum, Frontera, também escrito por Boselli e desenhado pelo magnífico Mario Alberti, autor já com alguma experiência no exigente mercado franco-belga, onde teve oportunidade de desenhar séries como Morgana e Redhand, sem esquecer a sua colaboração na própria SBE em séries como Nathan Never ou Legs Weaver. Esta coleção Tex d’Autore representa o regresso da editora aos volumes cartonados, desde que há 35 anos publicou a coleção Un uomo, un’ avventura. Uma coleção onde a SBE pretende apresentar projetos pessoais, que passarão por dar liberdade criativa aos autores, levando-os a abordagens diferentes, quer de uma personagem verdadeiramente mítica e com uma identidade perfeitamente definida e enraizada como Tex, mas também dos cânones narrativos habitualmente utilizados. Mais uma abordagem do herói que serve a lenda Tex Willer que a editora pretende cimentar.

Prancha de Mario Alberti

A ortodoxia que caraterizou a atividade editorial de Tex parece agora estar a mudar, com espaço suficiente para que alguns autores possam expor a sua visão e a sua fantasia com outra liberdade. Sinal evidente que também já tinha sido dado no caminho traçado com o Color Tex, coleção que anualmente alterna uma grande aventura com as chamadas short stories. Num dos seus vários Il Giornale, publicados na série regular do Tex italiano, Grazianni Frediani veio explicar as razões deste percurso, sublinhando que a adoção da cor não resulta de uma qualquer improvisação ou de adoção aos gostos de hoje, resulta antes em melhor representar as majestosas e selvagens panorâmicas da América, os céus infinitos, as chamas de guerra, os nativos, as cavalgadas ou as verdes pradarias. Respeitando esta afirmação e concordando com a mesma, não podemos deixar de aludir ao facto de que, na génese desta publicação, também estará uma estratégia de adaptação aos mercados, definidora da renovação que a SBE sempre deu mostras de ter em consideração e que nos últimos tempos tem vindo a imprimir, extravasando esta política mesmo para além do universo de Tex. A utilização da cor noutras séries emblemáticas, a criação de novas séries a cores, a criação de mini-séries auto-conclusivas, a renovação de Dylan Dog, a criação da sua primeira série do género heroic-fantasy como Dragonero ou a recente entrada no nicho do mercado dos mais jovens, são apostas editoriais que chegam após o desaparecimento de Sergio Bonelli, coincidentemente ou nem por isso.

Não se trata apenas de evidenciar e sublinhar o papel da cor em Tex, porque com as aventuras mais curtas torna-se também importante a presença de novos autores e de novos desenhadores, que assim têm a oportunidade e a ocasião de provarem os seus talentos, podendo até alguns deles representar uma surpresa tão agradável (para os próprios e para nós leitores) que lhes permita continuar na série com trabalhos de maior fôlego. O que já aconteceu, no capítulo dos desenhadores, com o excelente Stefano Biglia, depois de desenhar L’ultimo della lista, com Sandro Scascitelli, após o seu trabalho em Un covo di belve e, mais recentemente, com o romano Luca Vannini, entretanto convidado por Boselli para integrar o staff de desenhadores do ranger, após o seu trabalho em Chindi, curta aventura escrita por Luigi Mignacco. Por outro lado, Roberto Recchioni escreveu recentemente La strada per Serenity (desenhada por Pasquale Del Vecchio), depois da estreia na curta aventura Randy il fortunato, aguardando-se ainda com natural expetativa se nomes sonantes como Michele Medda e Moreno Burattini, depois das suas short stories, terão oportunidade de continuar em Tex.

Esboço de Massimo Rotundo para a capa de ‘Tempesta su Galveston’

Com a publicação do Color Tex 6, que compila mais quatro histórias curtas do herói, parece ter sido dado um passo em frente, uma vez que as aventuras aqui apresentadas parecem ter outra consistência e equilíbrio narrativo, quando comparadas com as da anterior edição. Tratando-se de autores fora da equipa regular, com exceção de Mauro Boselli, ou se quisermos ainda de Michelle Medda, autor que regressa a Tex após longos anos de ausência, não espantará sobremaneira e até poderá ter uma explicação lógica. De facto, quer Moreno Burattini como Roberto Recchionni estreiam-se em Tex, pelo que, apesar de habituados a aventuras de grande fôlego noutras séries, nunca o tinham feito para o ranger. O reduzido número de páginas permite-lhes não arriscar tanto e apresentar trabalhos de uma grande fluidez narrativa, servidos por argumentos simples mas bem enquadrados e equilibrados em função da quantidade de páginas disponível. Por outro lado, parece-nos haver um evidente traço comum entre, pelo menos, três das quatro histórias apresentadas. Estratégia previamente definida ou não, a verdade é que existe uma clara alusão a temas sociais e políticos que hoje dominam a nossa atualidade. Atente-se na aventura de Michele Benevento e Michele Medda (Stelle di Latta), que alude claramente ao tema da proteção dos mais poderosos perante a lei; repare-se na aventura de Giuseppe Camuncoli e Moreno Burattini (Incontro a Tularossa), que sublinha a morte de inocentes nas mãos de assassinos e que poderíamos transpor para a realidade atual do terrorismo; ou ainda os preconceitos de uma pequena comunidade perante alguém que é diferente, facilmente comparável com a realidade atual dos migrantes na Europa (e porque não um pouco por todas as sociedades atuais), e que perpassa em Nel Buio, história assinada por Luca Rossi e Mauro Boselli. 

Esboço de Claudio Villa para ‘Luna insanguinata’

Ao leitor texiano é hoje apresentado um conjunto diferenciado de histórias do ranger que, em alguns casos, tende a ultrapassar os limites até agora impostos. Aventuras como Tempesta su Gavelston, onde Pasquale Ruju teve oportunidade de situar a história no sul dos Estados Unidos, aludindo ao tema da escravatura e evidenciando algumas das principais caraterísticas do Tex bonelliano, sobretudo o seu humanismo, a sua ética e o seu ideal de justiça. O Tex que nunca vacila e acima de tudo o Tex que tem uma confiança ilimitada em si mesmo. Aventuras que exploram filões clássicos da série, como La Stripe dell’abisso de Mauro Boselli, que insere-se no filão das aventuras fantásticas de Tex e recupera a fascinante personagem de El Morisco. Mas também aventuras que conduzem a série a temáticas e perspetivas poucas vezes abordadas, se tivermos em consideração uma aventura como Oro Nero, no decorrer da qual Gianfranco Manfredi faz uma crítica social de um modelo económico fundamentado no lucro, com Tex a assumir um papel político quando discursa e não se coíbe de manifestar as suas preocupações sociais. Oro Nero é uma visão de Manfredi sobre modelos diferentes de sociedade, levando Tex a entrar por caminhos menos habituais. Não esquecendo ainda aventuras onde o papel da mulher assume especial destaque, como é disso perfeito exemplo Luna Insaguinata de Mauro Boselli, sinal evidente do protagonismo que gradualmente tem vindo a ser dado a algumas personagens femininas. Protagonismo aqui bem sublinhado e vincado na personagem de Ada Stark, uma mulher que assume um papel tão notório na vida do herói como desde há muito não se via. Uma mulher de caráter forte e com uma enorme vontade interior, capaz de lutar contra as adversidades e pela felicidade do elo familiar. Uma mulher que Tex salva dezassete anos antes dos acontecimentos da aventura e que parece ter marcado o ranger como só Lilyth parece ter feito.

No fundo, o que todos estamos a assistir é um trabalho editorial que pretende aproveitar a força e o carisma da personagem Tex Willer, reforçando uma presença constante e diversificada do ranger que tende a elevar o herói bonelliano ao patamar superior de uma verdadeira lenda dos quadradinhos.

* Texto de Mário João Marques publicado originalmente na Revista nº 3 do Clube Tex Portugal, de Dezembo de 2015.

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Um comentário

  1. Tex especial em cores é na minha opinião, ao lado de Tex Willer quando Jovem, as piores edições de Tex. A primeira, com desenhos horríveis e histórias simplórias; A segunda com pretensão de enganar o leitor que conhece Tex e, por isso, sabe como Tex viveu após o trágico fim de seu pai e seu irmão, conforme contado por seu próprio criador. Estão querendo inventar demais e acabarão por afastar os fãs tradicionais, que se cansarão de tantas invencionices. Quanto aos leitores novos? Estes não darão conta de apoiar um herói modificado editorialmente, que acabará sendo um herói comum, sem o estilo e o caráter que conhecemos e aprendemos a amar. Essa turma fará o que em quase 80 anos os bandidos não fizeram. Não matem Tex!

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