Histórias de Fantasmas! (Baseado na aventura ‘Colorado Belle’ – no Brasil traduzido por ‘A Dama do Colorado’)

Por Jesus Nabor Ferreira*

A cidade fantasma
Numa noite de Tempestade, entre o uivo do vento e o açoitar da chuva, o jovem cavaleiro procurava um lugar para abrigar-se do temporal.

Velhos fantasmas, etéreas aparições, entidades insólitas, fenómenos inexplicáveis pelas convenções mundanas, factos que destoam do quotidiano, do corriqueiro, do vulgar, e transformam em acontecimentos assombrosos, reais ou imaginários, que poderiam ser apenas sonhos ou pesadelos
vividos pelo mais comum dos mortais. Todos estes elementos são ingredientes utilizados pelos argumentistas para elaborar tramas que escapam ao convencional e ultrapassem o cenário comum das aventuras corriqueiras onde estão habitualmente ambientadas certas personagens. E não é tão incomum que alguns argumentistas façam uso do ambiente gótico ou irreal para, como se diz, dar um giro a mais na roda, e levar o leitor a desfrutar de material mais elaborado do que o habitualmente conseguido. É o caso, quer-me parecer, desta soberba aventura de Tex, a cargo de Mauro Boselli e Alfonso Font, a qual passamos a analisar de maneira livre.

Um dos mais comuns recursos utilizados pelos escritores de western, seja em filmes, livros ou na banda desenhada, é o da cidade abandonada, as chamadas “ cidades fantasmas” do velho oeste americano. Muitas delas surgiam do dia para noite, graças à desesperada procura pelo ouro ou pela prata, e  desapareciam com a mesma velocidade com que corria a noticia de que uma nova jazida tinha sido encontrada noutro lugar. Os mineiros chegavam para explorar supostas minas fabulosas, de riquezas inesgotáveis, e em redor dos veios de mineração surgiam, da noite para o dia, estruturas precárias que eles insistiam em chamar de cidades. E para atender aos desejos destes “esfomeados” trabalhadores, bares e saloons eram abertos, cobrando pela diversão e bebidas preços estratosféricos que deixavam ricos os seus donos, mercadores inescrupulosos, jogadores hábeis, mulheres voluptuosas que eram habitués destes lugares. Mas o que parecia não ter fim acabava logo, uma nova “rica jazida” de ouro era encontrada noutro lugar e os “abutres de duas pernas” logo alçavam voo, rumo a nova e promissora cidade. As Boom Towns, como se chamavam estas localidades, acabavam também por servir de esconderijo para foras-da-lei que procuravam, na tranquilidade das suas abandonadas ruas, um lugar para descanso, depois de aplicarem mais algum golpe bem sucedido, ou então, como costuma dizer o nosso amigo ranger, para lamberem as suas feridas depois de algum confronto com as forças da lei. Eram nas Ghost Towns que muitos foragidos reuniam-se para descansar e planear futuros golpes. E a história que hoje nos ocupamos tem como cenário uma destas famosas cidades fantasmas e uma de suas mais belas habitantes, Colorado Belle.

Yellow Sky
Yellow Sky é uma antiga cidade abandonada no sopé da cadeia de montanhas Sangre de Cristo no Colorado e é para lá que se dirige o reverendo Charles Morrow, em busca de noticias da sua irmã Alice Morrow, que há alguns anos saiu da casa da família em Filadélfia, para seguir carreira artística. Ao chegar ao posto comercial de Las Animas, Charles é informado pelos condutores da diligência que Yellow Sky – último lugar de onde a sua irmã comunicou com ele – é uma cidade fantasma e que por lá somente os coiotes e os lagartos vivem. É neste posto comercial que Charles fica a saber o nome pelo qual a sua irmã é conhecida na região: Colorado Belle. Aliás, a beleza dela chama atenção de todos os que a conhecem. É tudo o que sabemos e iremos saber sobre esta misteriosa e linda mulher neste primeiro momento.

Kit Willer
Yellow Sky também é o lugar que Kit Willer escolhe para se abrigar de uma tempestade que chega repentinamente. Juntamente com a chuva chega também a noite e Kit procura proteger-se da chuva no velho saloon local. Talvez fosse por conta do cansaço, talvez por culpa da atmosfera tétrica, o facto é que Kit percebe algo de sobrenatural na cidade fantasma. A sensação de que não está sozinho faz com que o rapaz fique apreensivo e passe a vasculhar as velhas casas, em busca da presença que sentiu estar a rodeá-lo. Vencido pelo cansaço da longa cavalgada, Kit acaba por adormecer num quarto do saloon que pertenceu a uma mulher e, pelas iniciais bordadas nas peças da cama, saberemos mais tarde tratar-se de Colorado Belle. O dia surge ensolarado e os raios do sol despertam Kit que, após verificar que nada aconteceu com o seu cavalo, parte em direção ao horizonte. Atrás dele, observando a sua partida, vemos a figura de uma bela mulher. Os seus pensamentos são misteriosos, enigmáticos e trágicos. Sabemos que ela vive no Colorado Saloon e que o medo é o seu companheiro constante. Muito mais não iremos descobrir, pelo menos não agora, não antes que outros acontecimentos terríveis tenham lugar e que outras personagens entrem em cena neste drama que irá marcar a vida de alguns outros jovens e também do reverendo Morrow.

Tex Willer
Durante a sua carreira como homem da lei e chefe dos Navajos, Tex, por diversas vezes, viu-se diante do inusitado e do sobrenatural. Não é à toa que o seu maior adversário, o seu arqui-inimigo, aliás, é agora um ser que deixou há muito o plano material, físico, humano, para se tornar em algo malévolo, um espírito desencarnado, um verdadeiro representante dos “setes mundos do abismo”: Mefisto! Portanto, não seria incorreto dizer que Tex não teme o sobrenatural ou o fantástico. Por outro lado, pode-se afirmar que o herói tem um grande respeito pelas coisas místicas ou mágicas. Um dos seus grandes conselheiros é o Xamã da aldeia principal dos Navajos, Nuvem Vermelha, a quem Tex sempre recorre quando embarca em alguma aventura fantástica. Porém, Tex é um homem, como dito anteriormente, de ação, prático, céptico em alguns momentos, seguro da sua força, inteligência e confiante nas suas habilidades e armas para resolver qualquer dificuldade.

E que papel irão desempenhar Tex e Kit Willer nesta trama? Boselli tem a habilidade de criar os seus roteiros dando sempre um destaque psicológico para as suas personagens, tornando-as únicas dentro da história. Por mais que possamos dizer que Tex e Kit são os heróis típicos de uma aventura de western, valorosos, valentes e seguros nas situações de perigo, Boselli deixa muito bem definida a distância que ainda existe entre pai e filho. Mesmo que Kit Willer siga os passos do pai, ele ainda comete pequenos erros por conta da sua juventude, tornando-se assim mais verossímil para o leitor, pois até mesmo o filho do grande Tex Willer pode cometer erros por conta da inexperiência. É uma das qualidades de Boselli dar características individuais a cada uma das personagens, dotando-as das qualidades e defeitos que são comuns aos homens mais ordinários. Se por um lado Kit tem o fulgor da juventude, esta mesma juventude faz com que ele muitas vezes atue com alguma imprudência. Já Tex está no auge de seus “poderes”! O grande líder da nação Navajo faz valer a sua fama de bravo e experiente guerreiro, seja ao confrontar uma tribo inteira, seja num duelo mortal de faca contra um dos aliados de Deadman Dick, seja enfrentando toda a quadrilha do vilão. Empunhando o sagrado Wampum, Tex inspira admiração e temor nos seus adversários.

Charles Morrow
Como foi dito mais acima, o reverendo Morrow está desesperado à procura da sua irmã desaparecida e por conta desta urgência e também por desconhecer algumas das principais leis não escritas das terras da fronteira (como nunca confiar em ninguém, principalmente desconhecidos), ele parte para Yellow Sky na companhia de um homem bonacheirão que se oferece para guiá-lo. Para seu azar, o seu companheiro de viagem é um dos membros do bando de Deadman Dick e logo na primeira noite na pradaria tenta roubar e assassinar Morrow. Mas a sorte também parece não ter abandonado o jovem reverendo. Surgindo no momento certo, Tex salva a vida de Morrow. A história da busca pela irmã é logo contada ao Ranger e Tex decide levar Morrow consigo. Pouco tempo depois, Kit Willer junta-se à dupla e seguem a pista de Deadman Dick. Kit menciona ao pai e ao reverendo que, enquanto estava em Yellow Sky, sentiu uma presença feminina no lugar. Isto faz com que Charles renove as suas esperanças de encontrar a irmã; Tex desaprova o comentário do filho.

Deadman Dick e o seu bando
Noutro local, um drama maior está a desenrolar-se, uma pequena caravana formada por algumas famílias de pioneiros também acaba por se cruzar com o caminho do bando de Deadman Dick – um grupo de fora da lei impiedosos e numeroso, com Tex no seu encalço desde há algum tempo. As famílias são impiedosamente massacradas, os seus pertences saqueados e os únicos deixados com vida são três jovens que serão vendidos aos índios Utes do chefe Bisonte Negro. Algum tempo após a chacina, Tex, Kit e Morrow chegam ao local da tragédia. Examinando o local, percebem que alguns prisioneiros foram levados para a aldeia de Bisonte Negro e Tex decide libertá-los.

Boselli vai pouco a pouco tecendo a teia de acontecimentos que irá acabar por se desenrolar na cidade fantasma de Yellow Sky, lenta e inexoravelmente o autor vai conduzindo as suas personagens para o desfecho final deste emocionante drama em que Tex, Kit, e os seus improváveis aliados têm de enfrentar, não apenas o bando de Deadman Dick, mas também outro grupo de facínoras que se junta ao primeiro. A ação final será entre as ruas abandonadas da velha cidade. E então o mistério de Colorado Belle será por fim revelado.

Colorado Belle
Como não se encantar com a figura bela, pálida e melancólica de Colorado Belle? Nas vezes em que a vimos, ela está sempre assustada, com medo, primeiro na noite de tempestade em que quase fala com Kit Willer, depois, em flashback, vemo-la sendo ameaçada por Deadman Dick e por fim, quando a violência explode novamente em Yellow Sky, vemo-la assombrada, terrificada, com a sua figura fantasmagórica, espreitando as dependências do velho e abandonado Colorado Saloon. Ficamos a torcer pelo reencontro emocionante entre os dois irmãos que estiveram separados por anos. O reverendo Morrow mais que uma vez deu mostras da sua coragem, ao defender os seus jovens companheiros de aventuras, e isto comove Belle e faz com que vença o seu medo de se manifestar diante dos visitantes da cidade fantasma. Que terríveis factos terão tido lugar naquela velha cidade? Que segredo guarda Belle consigo e fez com que permanecesse escondida no meio das ruínas daquelas antigas habitações? Quais serão os fantasmas ou monstros que a atormentam tanto? E poderá todo este medo e terror ser vencido pelo amor do seu irmão? Ou terão Tex, Kit e os seus jovens aliados forças para lutar contra a encarnação do mal chamado Deadman Dick? Mas não são apenas os espíritos malignos que costumam habitar as velhas e abandonadas cidades do oeste americano, há também aquelas entidades que precisam cumprir com um propósito para então encontrarem o seu descanso final.

Alfonso Font, o desenhador
Desenhos de Kit Willer em primeiro plano bem elaborados, diferentes da arte mais caricata de Font nos demais desenhos, onde revela a sua preferência por um traço mais riscado, menos estético, menos fotográfico, mas dinâmico. Até parece que o argumentista ou o próprio desenhador têm uma predileção especial pelo jovem herói. Mas pese embora o facto de alguns julgarem o desenho de Font um pouco desleixado, menos cuidado, é inegável que ele caracteriza as suas personagens de uma maneira muito própria. Ou seja, o Tex de Font jamais será o Tex de Galep, de Villa, de Civitelli ou até mesmo de Ticci. Font é daqueles desenhadores que imprime a sua marca pessoal, quase se apropriando da criação de outro, transformando-a na sua. Font é considerado um dos maiores desenhadores espanhóis, com um elevado prestigio entre fãs e colegas do meio, tendo recebido diversos prémios em reconhecimento do seu talento, com especial destaque para o célebre Yellow Kid.

Outras histórias de fantasmas
Esta brilhante aventura escrita por Boselli fez-me recordar um filme chamado Os Outros (The Others no original), um suspense protagonizado pela bela Nicole Kidman. Um destes filmes que não precisam apelar para a carnificina ou o escatológico e sim para pequenos truques que o realizador imprime na sua obra, além da brilhante condução dos atores, detalhes que sugerem mais que mostram, para provocar sustos e sobressaltos, mantendo o espetador preso à cadeira até ao desfecho final inesperado. Da mesma maneira, esta história de Boselli, mesmo tendo todos os ingredientes de um western tradicional, também de maneira subtil e engenhosa apresenta um elemento “sobrenatural”, transformando uma trama corriqueira num thriller de suspense. O próprio Boselli já nos dá uma pista, ao nomear o vilão da trama como Deadman Dick, da direção que a história seguiria.

Na longa carreira do mais famoso dos rangers do Texas, houve diversas outras histórias onde os argumentistas, procurando incrementar os seus enredos para fugir, quem sabe, dos lugares comuns de uma aventura de western, usaram o artifício do sobrenatural e do fantástico. Tomando como base as edições brasileiras, podemos citar as histórias O Tesouro de Santa Cruz e Fantasmas do Passado, O Hotel dos Fantasmas, A Porta Fechada, assim como aquelas onde manifestações “espirituais” volta e meia aparecem para assombrar os pards – vide as aventuras envolvendo o famigerado Mefisto ou o seu não menos diabólico filho Yama. O sobrenatural sempre exerceu um grande fascínio nos leitores de Tex, desde os seus primeiros números. Histórias com o Bruxo Mouro, com Mefisto, Yama ou então aquelas onde boas doses de horror estejam presentes, sempre aparecem nas listas das preferidas dos fãs. Múmias, bruxas, lobisomens, zombies, lagartos gigantes, monstros do passado, civilizações perdidas, seitas místicas, são recursos que os melhores autores por vezes lançam mão para incrementar as aventuras do ranger e dos seus amigos. Tex enfrenta todos estes perigos com a coragem e valentia de sempre, ajudado pelos seus fiéis amigos. Apenas o velho Carson, por vezes, não pode evitar sentir um calafrio, quando sabe que está envolvido numa história de fantasmas. Felizmente ele não participa desta aventura. Mas acho que ele teria gostado de Colorado Belle…

* Texto de Jesus Nabor Ferreira publicado originalmente na Revista nº 4 do Clube Tex Portugal, de Junho de 2016.

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima clique nas mesmas)

Um comentário

  1. Essa história é muito boa, a arte do Alfonso Font é diferenciada, um estilo próprio e competente, sou muito fã desse artista.

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