Entrevista exclusiva: LUCA VANNINI

Entrevista exclusiva: LUCA VANNINI[*]

Entrevista conduzida por Mário João Marques, com a colaboração de Francesco Micoli, de Júlio Schneider (tradutor de Tex para o Brasil) e de Gianni Petino na tradução e revisão e de Bira Dantas na caricatura.

Luca Vannini na arte caricatural de Bira Dantas

A entrevista ficou logo combinada quando Luca Vannini, a quem já apelidaram, juntamente com Pasquale Frisenda, como o verdadeiro herdeiro de Ivo Milazzo, presenteou a revista do Clube Tex Portugal com dois magníficos desenhos em exclusivo. Um encontro que foi possível com a inexcedível colaboração do nosso amigo e associado Francesco Micoli, que desde o início se prontificou a fazer a ponte entre as partes. Esta entrevista é um enorme orgulho para o Clube Tex Portugal, porque é mais uma etapa no regresso de Luca Vannini, desde há algum tempo afastado destas lides da banda desenhada.
Regresso que marca ainda o regresso do autor em Tex Willer, já que o mais recente Color Tex inclui Chindi, uma curta aventura a cores do ranger escrita por Luigi Mignacco. É desta forma que nos associamos a este regresso, tão reclamado e ansiado por tantos, de um valor com sobejas provas dadas na banda desenhada italiana (que vão para além de Ken Parker e Julia, apenas para citar as séries mais populares), assim como na ilustração, com um inegável talento por muitos conhecido e sobretudo apreciado. Sabendo de antemão que para alguns texianos Luca Vannini poderá ser ainda um perfeito desconhecido, acreditamos que esta entrevista contribuirá certamente para que todos possam ficar a saber quem é este desenhador de inegáveis qualidades.

Luca Vannini com a direcção do Clube Tex Portugal, Dezembro 2015

Luca, acabas de chegar a Tex, por isso nada melhor do que apresentares-te ao leitor texiano:
Luca Vannini: Nasci em Roma há 54 anos. Obtido o diploma no Iº Liceo Artistico della Capitale, voluntariei-me no exército, na escola de oficiais, nos pára-quedistas, a caminho da guerra no Líbano, mas rapidamente percebi que a carreira militar não era para mim, apesar do salário seguro e elevado daquela altura. Desmobilizado como tenente, encontrei ocupação como professor de desenho numa escola privada de Roma e foi durante uma pausa de trabalho que li no diário Il Messaggero um anúncio onde procuravam desenhadores (esboços e arte final para passar a tinta) para banda desenhada. Enviei desenhos a lápis e alguns “ignóbeis” passados a tinta. Não tinha qualquer técnica de banda desenhada, embora tenha sido um leitor discreto em jovem. Recordo-me que naquele tempo eu era apaixonado por Frigidaire, histórias “ácidas” de Andrea Pazienza e pelas obras-primas de Tanino Liberatore com o seu RanXerox. O facto é que alguns dias depois recebi uma chamada do responsável de um dos mais importantes estúdios de banda desenhada de Roma naquela época: o estúdio de Dino Leonetti. Dino era cenógrafo de cinema, tinha trabalhado com Gianni Polidori para o casting de grandes produções em Itália e na América e era amigo de Sergio Amidei, escritor e argumentista de cinema. Tinha-se empenhado num estúdio de banda desenhada para colmatar as lacunas que o cinema em crise tinha criado. Leonetti idealizou Maghella para a revista satírica Menelik, uma heroína da banda desenhada erótico-cómica italiana, talvez a primeira no seu género. Posteriormente, cedeu os direitos de publicação à Ediperiodici de Barbieri e Cavedon, empreendedores corajosos que enfrentaram a feroz censura daqueles anos, publicando vários livros de bolso sempre com contornos eróticos. Perguntou-me se eu tinha algum receio em tentar trabalhar nesta via, aceitei logo e, depois de um breve período de aprendizagem, tornei-me no desenhador de Casinella, sempre concebida por Leonetti, e em mais episódios de outras séries.
Foi um período inesquecível, sentia-me a mascote de um grupo formidável de profissionais, personagens incríveis que conseguiam criar aquela harmonia da provocação, camaradagem, inconformismo em enfrentar o trabalho que apenas o verdadeiro espírito dos romanos consegue apreciar. Trabalho que aumentava cada vez mais e que nos viu como primeiros colaboradores das edições Cioè, de Piscopo, dirigida a um público adolescente, até chegar a publicar para o Nuovo Intrepido, dirigido por Carlo Pedrocchi, onde, com argumento de Peppe de Nardo, com Billiteri comecei a experimentar novas cores e novas formas de linguagem visual. Entretanto, mudei-me para o interior, mas continuei a colaborar com o meu querido mestre Dino.

Este percurso vai permitir a Vannini chegar a uma série que marcou uma época, como Ken Parker, e trabalhar com dois monstros sagrados como Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo. Apesar de só ter desenhado as primeiras 56 páginas da última aventura da série (Faccia di Rame), esta curta participação não o impedirá de ser , juntamente com Ivo Milazzo, um dos autores que melhor aproveitou o sucesso de Ken Parker, nomeadamente ao fazer inúmeras ilustrações para galerias privadas que são hoje, justamente pela sua qualidade, muito procuradas.

Como surgiu a oportunidade de trabalhares em Ken Parker e quais foram as principais dificuldades?
Luca Vannini: Recordo-me que Milazzo telefonou-me a perguntar se eu estaria interessado em colaborar com eles. Não se pensa duas vezes. Lutei principalmente contra a minha insegurança, a minha autocrítica exagerada, o que abrandou muito o trabalho, mas no que respeita ao estilo de Ivo Milazzo, pude estudar a frescura do traço e, no que respeita aos enquadramentos, bastava confiar nas descrições muito detalhadas de Giancarlo Berardi, com um forte sentido de realização. Pensando bem poderia ter aproveitado melhor aquela experiência.

Em Ken Parker, Vannini tenta aproximar-se do estilo de Milazzo, deixando a crítica da altura surpreendida, adivinhando desde logo as enormes potencialidades do autor. Desde aí, o autor tem provado com um estilo mais pessoal, que o autor assume estar “em contínua evolução, assim o espero” e não ser definitivo.


Como defines o teu estilo?
Luca Vannini:
Tenho uma abordagem bastante empírica sobre o trabalho, mas é certo que a mão está agora “viciada e personalizada”. Durante a minha carreira estive fascinado por diversos estilos. Amei e amo loucamente a genialidade de Alex Toth e, durante algum tempo, transportei para as pranchas aquilo que pensava ter percebido do seu irrealizável estilo. Mas agora, depois de vários anos apenas a ilustrar para particulares, ainda imagino os volumes com tonalidades de cores. Preciso de reentrar novamente em pleno na normalidade do preto e branco, seguramente daqui resultará uma outra fase estilística.

O trabalho desenvolvido por Vannini em Ken Parker leva Giancarlo Berardi não só a escolhê-lo para a equipa de Julia Kendall, uma nova série então em preparação, como também para seu criador gráfico.


Como foi trabalhar em Julia?
Luca Vannini:
Giancarlo tinha ideias muito claras na construção da personagem de Julia Kendall. Graficamente, a referência para todos os desenhadores, que alternariam nos diversos episódios, deveriam ser os diversos estudos feitos por mim, ambientação e personagens principais, mas, no caso específico, Julia nunca deveria afastar-se das feições características da bela Audrey Hepburn. Para evitar distorcer a personagem, deveriam servir de referência esses desenhos de modelos feitos por mim.

Vannini tem um traço inegavelmente de grande qualidade, um traço que consegue contar a aventura através de uma simples ilustração, demonstrando ser um artista dotado e senhor de um talento perfeitamente habilitado e capaz de traduzir graficamente qualquer ambiente.


Ambientes, cenários e personagens, tudo passou a ser diferente em Julia. Aqui já adoptaste um estilo mais pessoal?
Luca Vannini:
Talvez a maior dificuldade tenha sido mergulhar no papel de uma mulher, encontrar um justo equilíbrio na sua interpretação e dar-lhe vida com uma correcta expressividade dos gestos e movimentos, com uma narração plausível e o mais possível fiel ao que Berardi entendia para a sua personagem.

Esta diferença entre paisagens, da fronteira com Ken Parker, para os ambientes mais citadinos de Julia, já deixava antever não existir uma clara preferência do autor por um ambiente específico.

Aprendi a admirar a natureza em todas as suas manifestações. Desenhar dá-me a oportunidade de observar longa e atentamente quantas maravilhas nos rodeiam. Transmitir as sensações que cada paisagem emana é sempre um desafio. Procuro sempre transmitir as mesmas sensações que desfruto quando desenho. O calor de um deserto ou as grandes extensões de neve do norte.

Sensações que Vannini poderá muito bem desenvolver numa série como Tex Willer. O autor desde há alguns anos que vem apresentando um conjunto de ilustrações do ranger que exaltam a figura não dó do herói, como de todo o ambiente que o rodeia. Exaltam a fronteira e as suas personagens, permitindo a Vannini exprimir a potência do seu desenho numa só ilustração.


Como surgiu então a oportunidade Tex Willer?
Luca Vannini: Vincenzo Marano, que durante muitos anos ocupou-se da venda das minhas ilustrações, propôs-me homenagear Tex, uma vez que as inúmeras ilustrações de Ken Parker arriscavam-se a inflacionar o mercado. Aceitei, mas devo reconhecer que os meus primeiros Tex oscilavam entre o obsceno e o ridículo. Gradualmente, fui abandonando a ideia de reinterpretar o Tex de Villa, estudei Ticci, Font, Fusco e o velho Nicolò. Até que, com a insistência de Maurizio Di Vincenzo, amigo e colega desde há 30 anos, encontrei a coragem necessária para pedir a Boselli se podia fazer uma prova para entrar na fileira de desenhadores oficiais de Tex. Voilà!


Ou seja, com Ken Parker e agora Tex Willer, já tiveste oportunidade em trabalhar com duas séries míticas. No entanto, apesar de se movimentarem nos mesmos ambientes, Tex e Ken Parker são personagens diferentes.
Luca Vannini: O
s seus códigos morais não entram em conflito, têm ambos um forte equilíbrio interior. Tex tem um grande sentido do dever, Ken Parker daquilo que é correcto. Em Tex, as personagens são concretas, os bons são bons e os maus são maus. No ranger há um sentido de camaradagem, respeito, amizade,  uma vontade em manter a legalidade, uma personagem bem definida num período particularmente violento na história do Oeste. O uso da força é parte integrante na vida de Tex. Tem objectivos bem definidos. Ken Parker é uma personagem típica dos romances de aventuras do final do século XIX e início do século XX. Poderia ter nascido da caneta de Fenimore Cooper, de Jack London. O seu itinerário romântico caminha em paralelo com a sua viagem retrospectiva, quase melancólica, envolve-se em aventuras onde frequentemente se depara com a terrível condição de se auto-questionar o que realmente vale. Situações, das quais, nunca se afasta. Um pouco de Coração das Trevas (Joseph Conrad) e um pouco de Ismael em Moby Dick de Herman Melville. Abre e fecha a aventura solitariamente. Uma bela personagem idealizada por um outro mito da banda desenhada italiana: Berardi.


E o que é Tex para ti, como o defines?
Luca Vannini:
Deixem-me contar uma história, uma bela recordação que nunca me canso de referir. O meu pai tinha uma confeitaria e, quando fechava a loja na hora de almoço, costumava vir a casa, comer e deitar-me consigo na sua cama para uma sesta. Ora, uma tarde acordei quando o meu pai já tinha regressado ao trabalho. Sobre a mesa de cabeceira encontrei, desenhado numa das folhas que o meu pai utilizava para anotar as encomendas dos clientes, um belíssimo Tex a disparar. Aqui está, para mim Tex é também esta mágica recordação do meu pai que, se ainda fosse vivo, ter-me-ia ajudado com todo o prazer. Ele adorava desenhar, mas o seu trabalho era bem diferente. Tex é a contínua passagem de uma lenda entre gerações.


O que significa para ti desenhar esta lenda como Tex Willer?
Luca Vannini:
Dizer que é uma grande honra seria óbvio de mais? Então passo a citar não sei quem que disse “Uma personagem de fantasia que desde há décadas permanece na berlinda seguramente que agora já ganhou vida”. Estou plenamente de acordo. Em algum lugar, num mundo paralelo, Tex e os seus pards estão agora acampados a comer carne seca com feijão. Estou certo disso.


Inspiraste-te em algum autor de Tex?
Luca Vannini: Certamente Ticci. Equilíbrio, peso, dinamismo, frescura.


Quais são as principais caraterísticas e dificuldades numa série como Tex?
Luca Vannini:
Nenhuma de relevante em particular, a não ser as que já referi. Sobre as dificuldades de elaboração estou a estudar, como já tinha feito com Julia, movimentos possíveis, modo de caminhar, expressões, posturas que possam enfatizar ainda mais o carácter de uma personagem. Mas tudo com moderação e equilíbrio.


Entre os pards, qual é o teu preferido?
Luca Vannini:
Tiger (Jack Tigre). Nativo por excelência e também porque tem o cabelo comprido, mas menos que o meu eheh!!


Como foi trabalhar a cores com Tex?
Luca Vannini:
No Tex a cores experimentei e apresentei várias soluções, mas foi decidido de comum acordo criar um produto tradicional colorido com ecoline. Mas eu gostaria de tentar novamente com os cartões coloridos como fiz nas pranchas de Billiteri que vos enviei. Poderia resultar num bom trabalho, veremos.


O teu futuro é com Tex?
Luca Vannini:
Só agora comecei, mas eu espero que sim. Adeus e até breve!

Assim o esperamos Luca, porque Tex e a banda desenhada precisam de um autor realista deste calibre, capar de construir um ranger muito sugestivo e representar um fascinante velho Oeste.


(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)

[*] – Entrevista publicada originalmente na revista “Clube Tex Portugal nº 3” em Dezembro de 2015

Um comentário

  1. Fantásticas ilustrações que comprovam, como as capas que realizou para a revista nº 3 do Clube Tex Portugal, que Vannini é um desenhador e um colorista extraordinário.
    A Itália merece, sem dúvida, o título de pátria dos grandes autores de “westerns” na Banda Desenhada. E Vannini está ao mesmo nível de Gino d’Antonio, Polese, Frisenda, Ticci, Milazzo, Dotti e muitos outros.
    Com tantos excepcionais artistas o futuro da BD italiana e de Tex Willer está garantido, por muitos anos ainda!

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