Entrevista com Pedro Mauro

Conduzida por Mário João Marques e Ricardo Elesbão *

Pedro Mauro

Mário João Marques: Pedro, esta entrevista já estava pensada há um certo tempo e surgiu agora a oportunidade, por ocasião dos seus 30 anos de carreira. Gostávamos de começar por uma apresentação da sua carreira e como surgiu este seu gosto pela banda desenhada.
Na verdade, Mário, são 50 anos, mas eu gostaria que fossem 30, porque eu estaria 20 anos mais novo. O tempo passou muito rápido numa carreira como desenhador, ilustrador e quadrinista (autor de banda desenhada no Brasil). A minha carreira de quadrinista aqui no Brasil e também no estrangeiro vem de 1970, quando comecei em S. Paulo, mas ao fim de dois anos deixei essa fase e passei para ilustrador, desenhador comercial, para livros, revistas e cartazes para clientes, sempre ilustrando e também sempre acompanhando os quadrinhos (banda desenhada no Brasil). Nunca deixei de ver e de ler, acompanhar os artistas de quadrinhos.

Farwest Edição Especial nº 2 – 1971; Editora Taika

Mário João Marques: O seu desejo foi então sempre mais a banda desenhada e menos a publicidade.
Sim, exatamente, o quadrinho sempre foi o começo da minha carreira e a minha paixão e ela nunca terminou, mesmo quando mudei de área. Mudei o estilo e a forma de trabalhar, porque ilustrador é diferente de desenhador de quadrinhos. Mas eu brincava comigo mesmo, fazia páginas de quadrinhos só para mim, pensando em regressar um dia. Mas acabei por ficar fora deste mundo durante quase 40 anos. Aí veio essa vontade de fazer algo que vem com a idade. Cansei da publicidade, tudo era para ontem, apesar de eu gostar do que fazia, aprendi muito, fiz amigos. Trabalhei doze anos em Nova Iorque como ilustrador para cinema e televisão e voltei para o Brasil. Aí veio essa vontade de voltar, fazer quadrinhos novamente e comecei há uns seis ou sete anos atrás. Comecei a preparar os meus trabalhos para mostrar para as editoras, mas para o estrangeiro, porque aqui o mercado dos quadrinhos é muito pequeno. Comecei a divulgar nas redes sociais e nessa altura apareceu um contacto do Gianfranco Manfredi da Bonelli e um convite dele, se eu queria trabalhar em dois episódios da sua série Adam Wild, em 2014. Foi assim que tudo aconteceu, eu queria e de repente surge um convite de uma grande editora e de um grande autor e eu não pensei duas vezes. Conversámos…

Ricardo Elesbão: O Gianfranco é uma referência da cultura, é uma pessoa que escreve para banda desenhada, escreve livros, escreve para o cinema e é uma pessoa que se posiciona social e politicamente…
Sim, ele é muito ligado ao mundo atual e é um grande roteirista. E como pessoa, eu que tive oportunidade de falar com ele, é uma grande pessoa.

Boselli, Manfredi e Pedro Mauro na Sergio Bonelli Editore

Mário João Marques: Para que veja que eu sou bom a matemática, eu sei que a sua carreira começou em 1970 e estava a dar-lhe apenas 30 anos de carreira… mas voltando atrás, o western é uma paixão, mas aquele western de Sergio Leone, com personagens duras. Porquê, é mesmo uma paixão sua ou é um produto daquele tempo?
Em criança, não sei precisar a idade, o cinema dos anos 60 passava o western americano e eu adorava o género. Não sei porquê, mas eu brincava como nos filmes. Com chapéu e tudo. Eu morava numa fazenda e nós tínhamos cavalos, andava de cavalo e vivia esse contacto com a natureza. Então, o western marcou-me profundamente. Vi todos os clássicos da época no cinema, além das séries de televisão como o Bonanza e outras.

Prancha desenhada por Pedro Mauropara a minissérie Adam Wild da SBE

Mário João Marques: Devido a essa sua “proveta” idade, o Pedro assistiu às diferentes fases do western. Aquela clássica onde os bons eram mesmo bons, como os filmes do John Wayne, depois a fase do Sam Peckinpah, onde surge outra filosofia, menos maniqueísta e, finalmente, aquela fase do western spaguetti do Sergio Leone.
Quando já tinha 16 ou 17 anos, eu preparei num pequeno caderno uma história de guerra, não sei porquê sobre este género, sobre a 2ª guerra, para mostrar numa editora em São Paulo. Saí do interior e fui viver para lá. Comecei a assistir aos filmes italianos de western e fiquei ainda mais apaixonado. Pelo estilo, pela narrativa e pelo jeito mais real que mostravam. Comecei a ler sobre o western, as suas histórias reais e comecei a ver que o western italiano era mais credível, o tiro soava de modo diferente e tudo era mais cru, com personagens sujas, como era comum no oeste americano. Esta maneira de ver dos italianos era mais apaixonante e credível. Na editora a quem eu mostrei os meus trabalhos, conheci um autor, o Nelson Justo, com quem fui estudar no seu estúdio. Ele ensinou-me muito, sobretudo a anatomia. O editor quando viu os meus trabalhos perguntou-me se eu queria fazer uma história inspirada no western italiano e eu aceitei. O editor gostou e publicou, isto aconteceu em 1970. Vendeu bem em bancas e eu comecei a desenhar western e não parei durante dois anos. Histórias e capas e daí ficou a paixão.

Mário João Marques: A seguir a essa fase foi viver para os Estados Unidos…
Fiquei na editora durante dois anos, mas surgiu uma crise financeira e as editoras mais pequenas suspenderam as suas publicações de quadrinhos. Muitos autores ficaram desempregados. No entanto, as agências de publicidade, estavam a recrutar muita gente que vinha dos quadrinhos, sobretudo para fazer storyboards. Eu estava habituado a esses trabalhos e consegui emprego numa grande agência de São Paulo. Deixei o mundo dos quadrinhos, apenas porque precisava de sobreviver.

Cartaz do filme “Per qualche dollaro in più” – 1965; Filme de Sergio Leone com Clint Eastwood

Mário João Marques: Nos Estados Unidos só trabalhou em publicidade…
Sim, durante uma viagem de lazer aos Estados Unidos eu levei os meus trabalhos de storyboard e então surgiu o convite de uma grande agência de publicidade, a nível mundial. Eles usavam muito os storyboards.

Mário João Marques: Para além do Brasil e dos Estados Unidos, o Pedro trabalhou também para França e Itália. Ou seja, para diferentes mercados, culturas diferentes. Como foi essa adaptação?
Existe a barreira da língua, apesar do desenho ser universal. Você desenha no Brasil uma história que se passa no outro lado do mundo. A publicidade não é muito diferente, pois eu trabalhava para grandes multinacionais. Nos Estados Unidos, no início, a única barreira foi a língua, porque a adaptação cultural surge naturalmente, surge de modo gradual e você acaba por se habituar ao modo de vida.

Mário João Marques: Em França trabalhou também em ilustração ou apenas em banda desenhada?
Quando deixei os Estados Unidos e voltei para o Brasil, e depois do convite do Manfredi, comecei a trabalhar para Itália. Quando estava a desenhar Mugiko (publicado no nº 59 de Le Storie, em agosto 2017, com argumento de Gianfranco Manfredi), para a coleção Le Storie, o Christophe Bec (autor francês, conhecido de séries como Zéro Absolu, Sanctuaire, Prométhée ou Carthago) pretendia fazer uma história sobre mulheres piratas e tinha visto uma no meu catálogo. Bec convidou-me para desenhar L’Artdu Crime (série policial que contou com nove álbuns publicados, tendo Pedro Mauro desenhado o volume 3 “Libertalia, la citéoubliée”, Glénat, 2016) para a Glénat e então comecei a trabalhar para o mercado francês.

Mugiko – Prancha desenhada por Pedro Mauro

Mário João Marques: Editoras diferentes, países diferentes. Quais são as diferenças entre trabalhar, por exemplo, para Itália e para França?
Um pouco diferente. Na Bonelli só trabalhei com Manfredi, apesar de ter falado com muitos autores e editores. Quando lá estive, foi muito tudo muito tranquilo, senti-me em casa pois eles deixam-nos à vontade. Falámos, almoçámos, o Gianfranco fez um tour da cidade comigo. Com os franceses tive um contacto, feito à distância e o meu trabalho foi enviado digitalmente. Mas o trabalho de promoção é muito diferente. Por exemplo, de Itália até hoje nunca recebi nenhum convite para um lançamento, enquanto que de França já é mais comum você ser convidado para sessões de lançamento. O que aconteceu em sessões de livrarias e no Festival de Saint Malo.Tive oportunidade de viajar por quatro ou cinco cidades, sempre assinando em livrarias, onde havia cartazes promocionais por todo o lado, inclusive no hotel. Senti que em França cuidam mais esse trabalho de lançamento. Os dois mercados são muito bons para trabalhar e é onde há mais oportunidades.

“Piratas” – arte de Pedro Mauro

Mário João Marques: Quando foi lançado, havia a hipótese de Mugiko poder vir a constituir uma série ou uma mini-série. Porque é que tal não veio a acontecer?
O Gianfranco disse-me que tudo dependia da receção dos leitores, pelo menos para publicar mais alguns números. A adesão foi boa, mas não veio a acontecer. A história até termina de forma a poder ter continuidade. E eu acho a personagem muito boa e que valia a pena ter continuado numa série.

Mário João Marques: E o Tex? Um desejo? Gostava de desenhar nem que fosse apenas uma história?
O Tex, para quem gosta do western, é uma grande personagem, com mais de 70 anos. Todos gostam! Eu não o acompanhava em criança, porque na região onde eu vivia não chegava a revista. Mas eu vim a conhecer Tex depois em São Paulo. Eu visitava as bancas, folheava as revistas e comprava a partir do desenhador, pois não havia dinheiro para tudo. Ortiz e De La Fuente para mim eram muito bons, não por serem os melhores, mas porque tinham um estilo mais parecido com o meu. Claro que todo o desenhador que gosta de western tem vontade de desenhar Tex, claro. Mas isso quem decide é a editora.

Mário João Marques: Mas todo o seu belo trabalho no western, quer a preto e branco, quer a cores,nunca proporcionou uma sondagem, uma aproximação da parte da Bonelli que desse a entender que um dia possa surgir essa oportunidade?
Não, não houve. Quando eu trabalhava com o Manfredi e visitei a Bonelli, eu cheguei a conversar com o Boselli, mas nunca lhe disse que gostaria de desenhar Tex. Fica difícil, pois você já tem um compromisso, já tem um trabalho. Eu tinha quatro álbuns (Cani Sciolti – mini-sériede 14 números da Sergio Bonelli Editore escrita por Gianfranco Manfredi) para fazer com o Manfredi, com prazos estipulados, então eu não quis falar nada. Também não houve o convite. Quando visitei a Bonelli, claro que conversei, o Boselli viu os meus trabalhos, mas nada mais. Quando terminei Cani Sciolti eu pensava visitar Itália e fazer um contacto maior, mas esta pandemia veio alterar tudo. Não viajei e não falámos mais nada.

Prancha desenhada por Pedro Mauro para a minissérie Cani Sciolti da SBE

Ricardo Elesbão: Os seus trabalhos para a Bonelli têm versado em temáticas e ambientes diferentes. O Adam Wildé aventura e rural, Cani Sciolti é social e de ambiente urbano, enquanto que Mugiko sai um pouco destes ambientes…
O Cani Sciolti foi um desafio, porque eu saí da aventura típica do Adam Wild (mini-série de 26 números da Sergio Bonelli Editore escrita por Gianfranco Manfredi) e do Mugiko, que também é aventura, espionagem, tipo James Bond, e passei para algo mais contemporâneo, revoluções sociais e estudantis de uma época, a década de sessenta.

Mário João Marques: Gostava agora de debruçar-me sobre a sua técnica, porque o Pedro trabalha muito bem tanto com o preto e branco como com a cor. Qual prefere, sente-se à vontade com ambos os registos?
Eu gosto do preto e branco porque é um estilo que sempre desenvolvi, não que não goste da cor, mas quando vamos desenhar, temos de pensar em função de como vai ser o produto final. Mesmo que não seja eu a fazer as cores e seja um colorista a fazê-lo, eu vou ter de pensar e trabalhar sabendo que aquele trabalho vai ter cores.

Trilogia GATILHO (Gatilho, Legado, Redenção); Roteiro de Carlos Estefan e Arte de Pedro Mauro

Mário João Marques: E essa era uma questão que eu gostaria de confirmar, ou seja, o desenhador trabalha melhor os contrastes, por exemplo, se souber que a história vai se a preto e branco?
Verdade, por exemplo, na trilogia Gatilho, eu trabalho o céu noturno com os contrastes e com os pretos. Se for a cores, eu já deixo o céu noturno sem nada, para que o colorista possa trabalhar a cor como ele achar melhor. Quando eu sei que o trabalho vai ser a preto e branco eu trabalho muito mais à vontade. Você tem de pensar muito bem nos contrastes, e se eu quiser desenhar uma dobra da roupa eu tenho que trabalhar muito bem no preto, mas se for a cores, essa dobra já pode ter um tom, um meio tom. Totalmente diferente, e eu diria que a síntese do preto e branco é mais complicada para trabalhar.

Mário João Marques: Os verdadeiros desenhadores veem-se no preto e branco, até porque as cores tendem a esconder alguns defeitos…
Sim, concordo, o preto e branco tem que ser estudado. A iluminação, o contraste, o tratamento da figura, os cenários. Quando você desenvolve bem esta faceta, as cores surgem naturalmente, só precisa de substituir o preto pelos tons das cores. Desenhar e executar bem o preto e branco é o mais importante, as cores já são uma consequência.

Ilustração de Tex Willer – Arte de Pedro Mauro

Ricardo Elesbão: Alguns autores dos primeiros anos de Tex faziam uns tons de sombra que pareciam bem reais, como por exemplo o Guglielmo Letteri nas suas cenas noturnas em histórias com o Bruxo Mouro.
Sim, mas hoje há alguns autores muito bons. Por exemplo, o Massimo Carnevale tem um preto e branco que me fascina, contrastes, cenas noturnas, tudo lindo. O Carnevale também tem umas cores fantásticas em aguarelas, um autor que trabalha muito bem ambos os registos.

Dylan Dog por Pedro Mauro

Mário João Marques: Recentemente, vi nas redes sociais um desenho seu do Dylan Dog que achei espetacular…
Era um crossover com o Helboy. Foi uma comissão que achei interessante, porque eu gosto muito do Mignola e desta sua personagem, assim como gosto muito do Dylan.

Mário João Marques: E o futuro, como vão ser os próximos 50 anos?
Eu espero continuar a trabalhar. Tenho alguns projetos, mas é chato porque não posso falar neles. Tenho coisas inéditas para fazer. Não sou fã de super-heróis, mas os heróis urbanos americanos eu gosto de acompanhar, então provavelmente vou desenhar uma pequena história de um desses heróis, para a qual fui convidado. Mas não está nada certo. Nunca pensei, porque a minha praia é o western.

Mário João Marques: Se depender de si, o futuro vai ser sempre quadrinhos.
Sim, eu já deixei a publicidade. Deixei aos poucos, e hoje os quadrinhos são a minha carreira, dia e noite. De repente pode surgir Tex, quem sabe. Deixemos as coisas voltarem ao normal e eu visitar Itália.

Cowboy de Pedro Mauro; 2020

Mário João Marques: E uma visita a Portugal?
Eu já estive uma três ou quatro vezes, mas infelizmente foi na minha fase da publicidade onde fiz amigos no meio.

Ricardo Elesbão: Vem a Portugal lançar um Texone…
Talvez seja mais fácil uma daquelas novelas gráficas, aquela coleção cartonada tipo álbuns franceses. Li um desenhado pelo Andreucci e acho que é uma série muito interessante, porque o trabalho é mais livre para o desenhador, sem estilo pré-concebido, sem espartilhos.

Ricardo Elesbão: A sua trilogia Gatilho vai ser agora publicada por uma editora belga, uma editora portuguesa também parece estar interessada e no Brasil, em comemoração dos seus 50 anos de carreira, existe um projeto de catarse de Cowboy. O Pedro mantém uma relação com desenhadores importantes da Bonelli e para seu espanto, mas não nosso, alguns deles como Villa, Dotti, Biglia, Alberti, todos são seus admiradores. Numa entrevista ao Tex Willer Magazine, o Stefano Biglia disse mesmo que o Pedro Mauro desenha cavalos como poucos e é seu grande admirador.
Ouvir isso e também a receção do Villa, do Biglia e do Alberti para desenharem a sua versão da minha personagem de há 50 anos atrás, eu fiquei surpreendido, porque não imaginava que eles conhecessem o meu trabalho. Foram muito amáveis.

Mário João Marques: O reconhecimento de um grande desenhador e de um grande autor.
Eu tenho mais de 60 anos, mas só tenho 6 anos de quadrinhos a tempo inteiro. Quando comecei a minha carreira, nunca deixei de gostar e de acompanhar, mesmo tendo interrompido. Eu sempre fiz os storyboards das minhas histórias, cuidava deles como se fossem a própria história. Levei sempre a sério o desenho e tentei sempre fazer o melhor.

* Entrevista publicada originalmente na Revista nº 13 do Clube Tex Portugal, de Dezembro de 2020.

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