As Leituras do Pedro – Tex: “A Vingança de Doc Holliday”, desenhado por Laura Zuccheri, que estará presente em Anadia nos dias 30 de Abril e 1 de Maio

As Leituras do Pedro*

Tex Gigante #34: A Vingança de Doc Holliday
Mauro Boselli (argumento)
Laura Zuccheri (desenho)
Mythos Editora
Brasil, Outubro de 2019
185 x 275 mm, 256 p., pb, capa mole, semestral

Diferença

Na sua origem os Tex Gigante (da Mythos Editora), réplicas dos Texone (da Sergio Bonelli Editore – SBE) eram (geralmente) destinados a desenhadores fora do universo de Tex – e mesmo dos outros universos Bonelli. Foi por isso que por eles passarem nomes como Bernet, Buzzelli, Kubert ou Magnus.

Se em tempos mais recentes isto nem sempre tem acontecido, com os Texone entregues aos nomes maiores da casa, não há dúvida que A Vingança de Doc Holliday também se destaca pela diferença. Mas uma diferença diferente, se me permitem escrever assim: é a primeira história do ranger desenhada por uma mulher – Laura Zuccheri, que muitos identificarão como uma das mais profícuas desenhadoras de Julia e que, a propósito, estará presente na 7.ª Mostra do Clube Tex Portugal, em Anadia, nos próximos dias 30 de Abril e 1 de Maio.

Se para alguns o facto não deveria merecer destaque nem referência de per si, sendo apenas (mais) uma evidência do machismo que ainda reina em certos sectores das histórias aos quadradinhos – e este é uma discussão que nos poderia levar longe, mas nos afastaria do livro que hoje quero destacar – o facto de ter demorado mais de 70 anos a ser entregue uma aventura de Tex a uma desenhadora, justificaria todo e qualquer destaque mas, passada a simples curiosidade, a obra deverá ser julgada pela sua qualidade intrínseca – até por uma questão de justiça para com Laura Zuccheri.

Que, naturalmente, se saiu bem da enorme tarefa – e dificilmente seria de outra forma, pois a apertada selecção de desenhadores por parte da SBE apontaria sempre nesse sentido (apesar de um ou outro percalço ao longo dos anos).

Não estando em causa a qualidade da desenhadora, a principal dúvida seria avaliar como ela conseguiria passar dos cenários contemporâneos urbanos de Julia para o universo do oeste selvagem de Tex; mais ainda, de uma personagem feminina frágil e tímida, para um cowboy duro, violento q.b. e (quase) sempre sem dúvidas.

É verdade que, em especial nas primeiras aparições de Tex e Kit Carson, se encontram algumas hesitações ao nível dos rostos, mas no restante da obra, nos cenários agrestes, nas povoações com casas de madeira ou ao nível dos cavalos, ninguém diria que era a primeira obra de fôlego da desenhadora num género que tem reputação de difícil.

Fugindo de uma linha um pouco mais limpa e clara que é apanágio de boa parte das aventuras do ranger, Laura Zuccheri trouxe para o seu Texone, um pouco dos tons mais escuros e sombrios com que sempre retratou (a) Garden City (de Julia), aplicou em flashbacks os cinzas que muitas vezes servem para pesadelos naquela outra série, e teve um cuidado notório com o visual – nada estereotipado – das personagens secundárias: as belas e curvilíneas Helen e (a nada) Big Nose Kate, um xerife barrigudo aqui, uns fora da lei espadaúdos acolá…

Aliás, não inocentemente, penso eu, Mauro Boselli, o escritor de (mais) este Texone, introduziu na sua trama não uma, mas (as) duas mulheres citadas – e como é raro isso acontecer em Tex… – dando-lhes espessura e, de formas diferentes, protagonismo. Não só em ‘homenagem’ à sua desenhadora, mas também atendendo ao seu à vontade com o ‘belo género’ em Julia.

Para além disso – e para quem estiver de fora do universo do ranger estes aspectos passam despercebidos – escolheu como personagem central Doc Holliday, um ser com tanto de real quanto de ficção, sendo difícil hoje conseguir distinguir biografia e lenda.

Longe de ser um herói na normal acepção do termo, estimulante até pela duplicidade da sua personalidade, (quase) sempre numa ténue fronteira entre o bem e o mal, entre a lei e o crime, entre a ordem e o abuso da força, Doc Holliday surge na ‘sua’ Vingança como alguém incompreendido, a quem se presume tudo.

O argumento de Boselli, aliás, assume um tom misto de western tradicional e de policial encapotado, com Tex e Carson – e não só – apostados em descobrir o responsável pelas mortes de membros de um bando de quem em tempos Holliday se jurou vingar e em encontrar o produto dos roubos feitos e desaparecido desde há anos. Boselli (e Zuccheri) têm o cuidado de esconder o executor das mortes durante boa parte do relato, acumulando assim as dúvidas sobre a sua autoria e passando aos leitores a dúvida que (quase) não existe nos intervenientes.

Aquela segunda característica confere ao relato um registo de suspense com as dúvidas que se vão amontoando a serem dissipadas apenas no final, mas sem que isto retire a mais um Texone as particularidades expectáveis neste western: acção, grandes espaços, cavalgadas e tiroteios, embora seja notório – e não interpretem mal o que vou escrever a seguir – um maior cuidado no desenvolvimento e no trabalhar da história, que se revela mais consistente e estimulante.

* Pedro Cleto, Porto, Portugal, 1964; engenheiro químico de formação, leitor, crítico, divulgador (também no Jornal de Notícias), coleccionador (de figuras) de BD por vocação e também autor do blogue As Leituras do Pedro 

(capa disponibilizada pela Mythos Editora; pranchas disponibilizadas pela Sergio Bonelli Editore; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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