As Leituras do Pedro – Mister No Revolution: Vietnam

As Leituras do Pedro*

Mister No Revolution: Vietnam
Michele Masiero (argumento)
Matteo Cremona (desenho)
Panini Comics
Espanha, Março de 2021
195 x 259 mm, 144 p., cor, capa dura
EAN : 9788413348421
18,00 €

Revisão

Dentro do leitor que eu sou, coexistem duas correntes de pensamento contraditórias. Por um lado, defendo a propriedade das séries pelos seus autores, por outro, entusiasmo-me com variações e leituras ousadas dessas mesmas séries.

Este Mister No: Revolution, é mais um exemplo desta minha aparente (?) incongruência.

Reconheço, que com o passar dos anos me tornei menos intransigente. E, também, que há casos e casos. Porque quando foi esse o princípio desde sempre – na Marvel, na DC, na Bonelli, em séries como Spirou… – a retoma – de forma pontual ou continuada – por outros autores, afigura-se-me como natural.

Mas, quando falámos de obras de autor(es) único(s), o caso muda de Figura. Tintin – à cabeça, obviamente – Blake e Mortimer – já é muito tarde, eu sei… – o próprio Astérix – que nem devia ter sobrevivido a Goscinny… – são os exemplos mais (mediáticos e) evidentes. Mas estão longe de ser casos isolados…

Mas já, chega de intróito, vamos então olhar para esta revisão de Mister No, assinada por Michele  Masiero e Matteo Cremona.

Ou, ainda antes disso, deixem-me discorrer um pouco sobre o piloto americano que vive na Amazónia, com o qual Guido Nolitta (aliás Sergio Bonelli) quis homenagear uma região que o apaixonou. Descobri-o (possivelmente) nas edições da Portugal Press, aprofundei o meu conhecimento sobre ele na série (de 24 números) que a Mythos lhe dedicou entre 2002 e 2004, reencontrei-o parca e esporadicamente desde então , cheguei mesmo a traduzi-lo!

Americano, veterano da II Guerra Mundial, Mister No, aliás Jerry Drake, decidiu retirar-se para Manaus, às portas da Amazónia, para se afastar tanto quanto possível de um mundo violento e interesseiro e do inferno que conhecera durante o conflito.

Amante de cachaça, uísque e belas mulheres, sobrevive com os fretes e transporte de passageiros que faz com a sua pequena avioneta. Busca de civilizações perdidas, tráficos e contrabandos, vinganças e outras surpresas cruzam constantemente o seu caminho, o que, contrariando as suas pretensões e desejos, está longe de lhe dar o distanciamento desejado do mundo e dos problemas que nele se perpetuam.

O princípio de Revolution – um tríptico que se prolongará em Califórnia, antes de terminar (inevitavelmente) em Amazónia – é colocar o protagonista num contexto similar, mas mais actual.

No caso presente – evidentemente – é no Vietname que o encontramos ou – e de forma mais ampla… – no período conturbado que os Estados Unidos viveram nos anos 1960, com drogas, rock and roll, sexo, contestações… e a tal Guerra do Vietname. Ou seja, cerca de 25 anos mais tarde do que a época escolhida por Guido Nolitta para o situar. Apenas 25 anos, mas com um enorme fosso a separar as duas realidades… similares!

A narrativa arranca já com Drake incorporado no exército, em missão no Vietname, e vai saltitando entre esse presente e o seu passado, a partir do momento em que conheceu Maryann – e se enamorou dela, conduzindo o leitor até ao momento (intermédio) em que Jerry, no início apenas um jovem apaixonado a quem a vida (aparentemente) sorria, decidiu aceitar o destino imposto pelo governo norte-americano e se incorporou no exército, seguindo para aquele país asiático. Sem deixar de ser quem nós conhecemos, um anti-herói, com (alguns) princípios, romântico e amigo do seu amigo, céptico por princípio, mas também  impulsivo e sempre disposto a defender o que – ou quem – acha que o merece.

A realidade – narrada nas páginas que vamos voltando – revela-se bem menos cor-de-rosa – seja no cenário bélico, onde os problemas começam entre os próprios soldados, com as diferenças, sociais, rácicas, de personalidade, a tornarem-se extremas devido às circunstâncias, seja mesmo na vida idílica passada – onde nem tudo é como Drake imagina.

Porque, passa a passo, o argumento sólido e consistente de Masiero vai-nos revelando cada vez mais de um verdadeiro inferno. Na selva vietnamita como em casa, na selva de betão, onde os perigos são outros mas igualmente letais. E o leitor vai recebendo golpe após golpe, cada vez mais fortes, cada vez mais duros, mergulhando num vórtice de guerra, drogas, abusos, traições, detenções que o fazem sentir-se agoniado, asfixiado, incapaz de reagir – mas também de parar de ler.

O bom ritmo narrativo imposto por Cremona – com o contributo da planificação típica das edições Bonelli – contribui para isso mas, em minha opinião, o relato ganharia com um traço mais realista, pois as personagens, aqui e ali ostentam esgares demasiado caricaturais, que não condizem com o registo de base. Isso não invalida o bom tratamento dado ao corpo humano, o dinamismo  do traço e das cenas e o bom trabalho de cor, que vão desfilando perante os nosso olhos, com os tons frios do Vietname a contrastarem com os ocres e sépias das cenas passadas nos Estados Unidos.

Narrativa forte e trágica, com um retrato cru e violento de uma época de contradições extremas, de defesa de todas as liberdades e de grandes limitações delas, Vietnam não é aconselhável para estômagos fracos nem para quem quiser manter viva na memória (apenas) a aura romântica que o Mister No de Guido Nolitta possui.

Embora, para ser justo para com Michele Masiero, se deva dizer que o ‘seu’ Mister No é o mesmo, igualmente idealista e apaixonado, embora despojado da ingenuidade da época em que o de Nolitta foi criado, e pintado com um tom mais adulto e desencantando próprio dos nosso dias.

Nota final

A edição espanhola da Panini mais uma vez – como tem sido hábito nos títulos Bonelli do seu catálogo – revela-se robusta, com uma sólida capa dura, bom papel, boa impressão e um caderno final de extras que inclui, para além de alguns esboços preparatórios de Cremona, um dossier sobre a época em que (este) Mister No contracena.

*Pedro Cleto, Porto, Portugal, 1964; engenheiro químico de formação, leitor, crítico, divulgador (também no Jornal de Notícias), coleccionador (de figuras) de BD por vocação e também autor do blogue As Leituras do Pedro

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)

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