As críticas do Marinho: “Na trilha da vingança” – (Almanaque Tex nº 47)

Por Mário João Marques

Roger Strong é um homem marcado por um dramático acontecimento vivido na sua infância, quando testemunhou o assassinato cruel dos seus pais às mãos de um bando de navajos, liderados por Scure Nera (Machadinha Negra), tendo no entanto conseguido salvar-se com a sua irmã. Ambos passam a viver em orfanatos, mas enquanto a irmã acaba por não resistir a uma doença, Roger cresce e segue por caminhos menos lícitos. Agora, minado por uma doença fatal, Strong efectua um último assalto na sua carreira, desta vez ao Silver Luck, um barco de jogo, mas antes de se retirar para paragens distantes, pretende vingar-se dos assassinos da sua família. Uma obsessão que o atormenta, por isso não vai recuar perante nada nem ninguém, massacrando, torturando e assassinando, deixando atrás de si um rasto de sangue inocente, até se deparar com Tex, Carson e… Scure Nera.

No pequeno texto introdutório a esta aventura é mencionado um velho provérbio chinês: “se queres vingar-te não te esqueças de reservar dois buracos, um para o teu inimigo e outro para ti”. Na realidade, esta aventura forte de Ruju parece dar razão a tamanha sabedoria oriental, uma vez que toda ela gira em torno da sede obsessiva de um homem em busca da sua vingança, deixando o leitor perante sentimentos díspares e demonstrando que, muitas vezes, nem tudo é como parece, o mundo não é perfeito, sobretudo a natureza humana quando movida por intenções para além do racional. A personagem de Roger Strong é disso perfeito exemplo, uma vez que, tendo conseguido escapar em criança aos acontecimentos dramáticos que mataram os seus pais, sem o carinho e os conselhos destes, acabará por enveredar por caminhos ilícitos, ficando doravante marcado por um fatídico destino desde tenra idade. Será que o seu destino seria outro, caso tivesse tido a oportunidade de ter crescido e de ter sido educado e formado ao lado dos seus pais? Nunca saberemos, mas o facto é que infelizmente a realidade demonstra que há muitos Roger Strong, muitos a quem os acasos mais ou menos dramáticos da vida vieram cercear uma oportunidade, apagar a luz que iluminasse o seu caminho, influenciando assim o seu futuro. Roger Strong é desta forma um homem marcado pelos acontecimentos dramáticos da sua infância, até ali feliz e pacata junto dos seus pais e da irmã, acabando por vir a crescer em orfanatos, anonimamente, mais um entre muitos sem eira nem beira, obrigados a precocemente aprenderem a conviver com a dura lei da vida.

Página inaugural de Na trilha da vingança

Ao apresentar uma personagem tão fortemente marcada pelo seu passado, Ruju deixa espaço suficiente à livre interpretação e opinião do leitor sobre qual a real personalidade das personagens e as suas motivações. A verdade é que nas personagens de Ruju nada é concretamente definitivo, levando a que, até certo ponto, o leitor possa compreender as suas reais motivações, sejam elas contrárias a leis, princípios e valores humanos estabelecidos. O ódio que Roger Strong nutre pelos índios, sobretudo por aqueles que dizimaram a sua família, explicará certamente muito da sua conduta e alguns leitores até poderão ser levados a concluir não estarem em completo desacordo com a mesma, mas torna-se incompreensível quando pelo meio muitos inocentes acabarão por ser arrastados numa vingança e abatidos sem piedade.

No meio de toda esta obsessão vingativa, surgem Tex e Carson, desta vez com um protagonismo diferente do habitual. Porque ambos correm sempre atrás dos acontecimentos e de um homem com sede de vingança e em luta contra o tempo que a vida ainda lhe destina. Porque a aventura é quase sempre dominada pela presença forte de Roger Strong e de Scure Nera, aquele fisicamente, o índio sobretudo nos acontecimentos narrados em flashback, apesar da sua intervenção no final dramático da aventura.

Página 100 de Na trilha da vingança

Finalmente, porque Tex e Carson nunca controlam os acontecimentos e pouca influência têm no seu desenrolar, com excepção do confronto final, onde o papel de Tex surge particularmente decisivo. Nesse sentido, numa perspectiva meramente conservadora e tradicional, arriscamo-nos a afirmar que se trata de uma aventura com Tex e não de Tex. No entanto, se Ruju se afasta de forma notória do modelo do herói marcante, preponderante e interveniente de Gianluigi Bonelli, acaba por aproximar-se do filho Guido Nolitta na forma como soube construir uma personagem como Roger Strong. E esta é a riqueza hoje em dia da série, servida por autores como Boselli e Ruju, capazes de introduzir gradualmente outras características que permitam a sua evolução e adaptação aos novos tempos, sem que isso signifique renegar uma herança ou desvirtuar os fundamentos criativos de Gianluigi Bonelli.

Confesso que não conhecia Sandro Scascitelli, nascido em Anagni em 1947 e com uma carreira iniciada em 1974, antes dos seus trabalhos em Tex, primeiro com a curta aventura Un covo di belve, publicada no Color Tex 4, e agora Scure Nera (título italiano), que afinal foi o primeiro trabalho do autor para Tex, apesar de publicado posteriormente à aventura a cores. O seu trabalho inicial não me tinha deixado uma forte impressão, mas não há dúvida que o seu traço, muito apurado e detalhado, adquire agora outra expressividade quando apresentado no seu preto e branco puro e original, realçando as evidentes qualidades que me pareceram ausentes na aventura a cores. Eventualmente por força de nos últimos anos se ter dedicado à ilustração, Scascitelli desenha as personagens com expressões por vezes pouco naturais e algo estanques, no entanto, merece aqui ser destacado todo o cuidado imposto pelo autor na composição das mesmas, sobretudo no vestuário e utensílios utilizados, mas também nos ambientes e nas cenas nocturnas que impõem fortes contrates. Excelente também a entrada em cena de Tex e Carson, com ambos a cavalgarem, como se o próprio desenhador estivesse a apresentar e a sublinhar perante o leitor, este é o meu Tex e este é o meu Carson. E as cenas seguintes sublinham mesmo esta nossa opinião, com os pards a serem apresentados em diferentes planos e perspectivas, concluindo num desenho de rara beleza de enquadramento, quando Tex e Carson se deparam, ao mesmo tempo e da mesma forma com que o leitor o faz, com a carnificina ocorrida na aldeia Hopi. Tex representou o regresso de Scascitelli à banda desenhada, tudo indicando que por aqui se manterá, uma vez que o autor já se encontra a desenhar uma nova aventura, novamente escrita por Pasquale Ruju, ambientada no México e a ser publicada num futuro Color Tex.  Encontro marcado num futuro próximo.

Arte de Sandro Scascitelli em Na trilha da vingança

(Para aproveitar a extensão completa das imagens acima, clique nas mesmas)

Um comentário

  1. Que trabalho fora de série, tanto do crítico como das obras apresentadas nessa matéria. Adorei o trabalho minucioso desse grande artista, que veio a enriquecer ainda mais a série do ranger.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *