Tex Série Normal: O Vale do Ódio

O Vale do ÓdioArgumento de Claudio Nizzi, desenhos de Raul e Gianluca Cestaro e capas de Claudio Villa.
Com o título original La valle dell’odio, a história foi publicada em Itália nos nº 534 e 535 e no Brasil pela Mythos Editora nos nº 440 e 441.

Quer se queira quer não, a verdade é que a disposição ou a vontade com que encaramos a leitura de uma história acaba por ter uma certa influência na percepção que vamos tendo e na apreciação que acabamos por fazer. E essa disposição tem a ver com os autores da história, tem a ver com a nossa própria preferência por este ou aquele género, tem também a ver com o facto de estarmos ou não voltados para uma leitura mais atenta, ou pelo contrário, se estamos mais cansados e menos inclinados a dar atenção a este ou aquele ponto. Serve tudo isto para dizer que a minha leitura desta aventura texiana acabou por ser marcada por todo este conjunto de factores. Ler uma aventura de Tex é sempre um prazer, mas quando ela é servida por um desenho e um grafismo ímpar, ou quando podemos desfrutar dela em plenitude, reunimos o tal conjunto de factores que acaba por contribuir para uma apreciação positiva. Uns podem retorquir com o facto deste “Vale do Ódio” ser mais uma banal aventura nizzina, outros podem acusar a sua falta de originalidade ou outros ainda relevar o seu ritmo lento em determinadas passagens. A bem ver, tudo isso e algo mais está presente nesta aventura, mas isso acaba por funcionar em seu proveito.

Tex e Carson pelos irmãos CestaroO tema é simples e tudo começa com o assassinato de alguns pastores navajos em Vale Bonito que Tex e os seus pards vão investigar. Ao chegarem ao local, Tex e Carson deparam-se com um confronto mortal entre duas famílias de ricos fazendeiros. De um lado, Bill Foreman, do outro Ricardo Montez. Pelo meio, uma década de ódio, hostilidades, rivalidades e um conjunto de mortes dramáticas que atingiu ambas as famílias. O facto é que tanto Foreman como Montez tinham acordado numa trégua que durava há dois anos e que agora parece ter terminado. Mas Tex vai afinal descobrir que alguém pretende lucrar com esta luta entre os dois fazendeiros e por isso anda a atiçar esta guerra.

Tex pelos irmãos CestaroO que Nizzi propõe é um Tex pragmático, diplomata e perspicaz, não o Tex duro bonelliano. Porque lutar contra alguém que actua na sombra e abate pelas costas exige um Tex mais contido, mais conhecedor da personalidade e da alma humana. Os mais críticos podem dizer e bem que este não é o Tex bonelliano. Mas é um Tex inteligente que funciona na primeira parte da aventura, um ranger que vai conhecendo os actores e tacteando o terreno, para na parte final dar lugar ao Tex mais decisivo e bonelliano, quando enfrenta os criminosos: veja-se toda a entrada em Flagstaff e o enfrentar dos criminosos.

Golpe Sobre GolpePor outro lado, toda a aventura respira um certo classicismo bem patente nas figuras dos dois fazendeiros, nos seus ranchos, nas suas relações, não só entre famílias, mas também no seu seio. Inocente ou não, a verdade é que Nizzi foca pontos como a sucessão familiar, a sabedoria do tempo (quando Foreman proíbe o filho de atacar os Montez), ou os preconceitos raciais. Nizzi constrói uma aventura que vai aumentando de intensidade, apesar do seu ritmo menos dinâmico, apesar do seu final algo repentino, mas é uma aventura plena no modo como o autor consegue gerar expectativas, como consegue construir personagens credíveis em ambiente hostil, enfim no papel conferido a Tex, mais perspicaz e menos duro, mas ao fim ao cabo sempre actuante.

São poucos os autores que proporcionam em cada quadrado, em cada sequência, em cada página uma autêntica lição de bem desenhar, um grafismo irrepreensível. Os irmãos Cestaro encontram-se nesse patamar e tenho para mim que só Villa, eventualmente e no tempo presente, os supera. O desenho dos dois atinge uma perfeição raras vezes vista, uma simbiose, uma sintonia com ambientes e com personagens dignas dos maiores elogios. Tudo isto em páginas onde não é perceptível saber quem desenha o quê, porque Raul e Gianluca desenham alternadamente cada página, sem que o trabalho se ressinta no que quer que seja.

Arte dos irmãos CestaroO seu Tex, tal como Carson, Kit e Tigre são de uma elegância e de uma personalidade que importa realçar. O Tex dos Cestaro é um Tex influenciado sobretudo pelo Tex de Villa, um Tex que junta a elegância à imponência, um Tex perfeitamente digno de um grande western. Tudo é belo, tudo é estudado ao pormenor, repare-se no conjunto de detalhes, repare-se no dinamismo e no movimento não de um desenho no seu conjunto, mas no movimento de cada personagem, de cada detalhe, o que sobressai logo no primeiro desenho da página 17, onde cada actor está perfeitamente adequado à cena, onde cada qual tem o seu próprio movimento, o seu próprio ritmo, o seu próprio tempo.

Tudo em dois autores que apresentam aqui apenas o seu segundo trabalho na série. Raul e Gianluca Cestaro são assim um valor seguro numa equipa que tende a renovar-se.

Texto de Mário João Marques

Um comentário

  1. Uma fantástica recensão crítica eivada de paixão mas também de rigor analítico. Acabei aqui motivado pela leitura da revista do Clube Tex Portugal de dezembro de 2023, o número 19, onde surge no Cantinho do Sócio a figura do aficionado José Maria Lobo de Vasconcelos Garcia, cuja paixão por Tex inicia, precisamente, com esta aventura. Agora percebo que foi um excelente princípio.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *