Antonio Segura: Tex, 60 anos a cavalgar

Antonio SeguraFui convidado a redigir um texto, dedicado exclusivamente à personagem de banda desenhada Tex Willer e por extensão render homenagem aos seus criadores: Gianluigi Bonelli e Aurelio Galleppini, e aos desenhadores e argumentistas que seguindo a sua criação, perpetuaram através dos tempos a continuação das suas novas aventuras.

Com Tex, aconteceu a curiosa circunstância de os seus criadores, ainda em vida – Galleppini faleceu em Maio de 1994 e G. L. Bonelli em Janeiro de 2001 – confiarem plenamente nos argumentistas e desenhadores da Sergio Bonelli Editore para que continuassem sem perda alguma de qualidade a saga de Tex, isto porque sabiam que a sua personagem tinha tanta força, havia acumulado um “curriculum vitae” tão bem definido, com tanta garra e personalidade própria, que, podia seguir cavalgando por muito tempo pelo universo de papel dos “fumetti” nas mãos de outros criadores, desde que estes se limitassem, simplesmente, a respeitar a sua personalidade.

O Príncipe ValenteCircunstância que não se cumpriu por exemplo com outra personagem tão mítica como O Príncipe Valente, que uma vez falecido o seu criador Harold Foster, após um breve intento de continuar as suas aventuras pelas mãos de um novo desenhador tão creditado como John Cullen Murphy, Valente, desmotivado, decide morrer e encontrar-se com seu pai, encerrando assim o seu ciclo vital. Tex é feito de outra matéria e demonstra-o cavalgando durante quase 60 anos.

Como comentei antes, o lógico era centrar-me por inteiro em contar o que conheço de Tex e de seus autores, mas detesto as linhas rectas, sua monotonia e amo sem dúvida as curvas, tão imprevisíveis e tão aventureiras. Excita-me não saber o que me espera por detrás de cada curva num caminho e sem embargo, acelerar o motor para descobri-lo.
E de curvas, de muitas curvas feitas com histórias pessoais vou falar-lhes. De como vi em Tex um convite a degustar a aventura mais pura, e como me enriqueci como argumentista ao escrever as suas aventuras de 350 páginas.

Tex WillerEm 1993, viajo a Milão acompanhado de José Ortiz, que já estava trabalhando para a Sergio Bonelli Editore na realização de uma história de Tex de 240 páginas sobre um roteiro de Claudio Nizzi. Numa sala da editora reunimo-nos Sergio Bonelli, Decio Canzio – Director geral – , Maria Baitelli – Redactora chefe – e nós os dois espanhóis.
Francamente naquela época estava muito preocupado. Pressentia – como assim aconteceu – que José Ortiz seria arrolado como desenhador fixo da editora e essa circunstância romperia a equipa que Ortiz e eu havíamos formado desde os anos 80. Por isso, em dado momento da entrevista ofereço-me para escrever argumentos de Tex.

Bonelli e Canzio – os dois foram argumentistas de Tex – não puderam ocultar um sorriso. Foram centenas os profissionais que através dos anos, lhes fizeram a mesma proposta. Bonelli, com a humanidade que o caracteriza, fez-me notar que a minha obra era conhecida e respeitada na Itália, mas que era quase impossível que eu pudesse escrever um argumento de Tex que eles mesmo não tivessem realizado e o mais importante, Tex, tinha uma personalidade tão definida, um passado tão denso, uma biografia de aventuras tão extensa que era quase impossível que um desconhecedor da sua saga, em resumo que um profano pudesse retractá-lo com justiça.

Il Cacciatore di fossiliAo cabo de uns meses começava a escrever o meu primeiro roteiro de Tex, mas isto não é o importante, não é o que quero realçar. O que quero realçar é o GRANDE RESPEITO que Bonelli e Canzio me demonstraram com as suas palavras com a personagem Tex. O seu AMOR por um ente de ficção que para eles era quase, um SER VIVO, digno da maior consideração.

Para mim, a experiência de escrever um roteiro de Tex de 350 páginas foi algo incrível. Obrigado pelo mesquinho sistema de produção dos editores espanhóis que nos vendiam como “taloneros” aos editores de revistas europeias – a narrar histórias de 8/10 páginas que eram concisos telegramas, magníficas histórias sacrificadas à criação, ideias apenas esboçadas, desperdiçadas para sempre; desfrutei da minha primeira experiência de liberdade ao romper o esquema maldito das 8/10 páginas escrevendo o meu primeiro roteiro de Eva Medusa, de 48 páginas, que me permitiu, sobretudo, desenvolver a personalidade das personagens secundárias e lograr narrar uma história mais redonda e complexa. Com Eva, havia passado do telegrama ao conto curto. Na minha primeira história de Tex, de 350 páginas, descobri o CÉU dos argumentistas – a NOVELA GRANDE E DENSA – e a razão primordial pela qual Tex se perpetuou como um ÊXITO através de tantos anos.

Cena de Segura para TexSuas histórias de 110 páginas, de 330 páginas, permitem desenrolar uma história perfeita em todos os sentidos, cheia de pequenos detalhes que fazem credível a narração. Suas personagens – independentemente do mítico Tex e seu amigo Carson – ainda que seu papel seja secundário, anedótico, humanizam-se, fazem-se credíveis e engrandecem a historia porque têm espaço para desenvolver as suas personalidades, encarnam o BEM ou o MAL. Poder narrar, por exemplo, uma sequência onde chove torrencialmente que ocupe 8/10 páginas é/era impensável para formatos como os das revistas espanholas dos anos 80/90. Em 8/10 páginas vias-te obrigado a contar toda uma história e por isso o “comic” espanhol está em pleno declive enquanto que Tex segue cavalgando em direcção ao horizonte.

Astérix e ObélixGoscinny e Uderzo, trabalhando como equipe durante muitos anos, haviam tentado todos os géneros e estilos possíveis – desde o humor mais desatado, ao realismo mais estrito – sem lograr encontrar a personagem ou as personagens que significariam o seu êxito e a consequente consagração. Seus trabalhos eram realmente bons mas não conseguiam romper a misteriosa barreira do êxito. Num momento feliz criam Astérix e Obélix e alcançam o milagre há tanto tempo esperado. Suas novas personagens, tão vivas, tão originais alcançam a aceitação maioritária do público, primeiro em França e de seguida no resto da Europa. A partir desse momento Goscinny e Uderzo centram-se na escritura de novas aventuras de Asterix, sem embarcar em novos projectos, porque tinham encontrado, por fim, a sua mina de ouro, o FILHO DESEJADO há tanto tempo esperado.

Il treno blindatoGianluigi Bonelli e Aurelio Galleppini chegam à mesma conclusão depois de lançar no mercado italiano a personagem de Tex. E embarcam na gratificante tarefa de dotar a sua personagem de melhores e maiores registos de interpretação. Passo a passo, vão construindo um grande símbolo.

Também existem os FILHOS NÃO DESEJADOS, que sendo igualmente minas de ouro, economicamente falando, representado o êxito e a popularidade, são rechaçados, marginalizados e depreciados pelo seu próprio criador. Sir Arthur Conan Doyle, logra um êxito formidável com a sua personagem Sherlock Holmes, mas detesta-o , odeia-o, é um FILHO NÃO DESEJADO, que o enriqueceu, mas pelo qual não sente o menor apreço. Conan Doyle, criou uma personagem tão inteligente, tão complexa, que cada uma das histórias que escreve para ele tem que ser como uma elaborada e difícil partida de xadrez que o deixa esgotado.

Sherlock HolmesO sonho de Conan Doyle é ser um novo Walter Scott da literatura anglo-saxónica, sentar-se no seu trono vazio. Por ele, em determinado momento, decide assassinar a sangue frio Sherlock Holmes, cavar a sua tumba literária e enterrá-lo para sempre (mas o tempo trata de redimi-lo, fazendo-o arrepender-se), ao escrever um maravilhoso enredo de aventuras com o título “O Mundo Perdido”, com a esperança que os leitores acabem esquecendo da existência de Sherlock Holmes. Caso perdido. A opinião pública através de centenas de cartas dirigidas a jornais reclama novos episódios do genial investigador, não aceitam a sua morte. A Câmara dos Comuns e a dos Lordes, pressionam o escritor e a própria rainha Victoria recrimina Conan Doyle numa carta pessoal por ter matado tão injustamente a sua genial personagem. Sir Conan Doyle dá-se por vencido, ressuscita o seu herói e continua escrevendo suas aventuras, odiando-o mais do que nunca. Se alguém viajar até Londres, poderá visitar, se o desejar, a casa estúdio, perfeitamente mobilada, decorada com todos os pertences privados de Sherlock Holmes descritas nas suas histórias, localizada no número 212 de Baker Street. Um verdadeiro MUSEU dedicado a uma personagem de ficção. O FILHO NÃO DESEJADO, ganhou a partida ao seu criador perpetuando-se no tempo, convertendo-se numa PERSONAGEM REAL, independentemente do seu próprio criador. Sherlock Holmes dança gozando em cima da sepultura do seu criador.

Aurelio GalleppiniPelo contrário Bonelli e Galleppini amaram intensamente a sua personagem, fundiram-se com ele no seu mundo de ficção de tal modo, que recordo uma foto de Galleppini no seu estúdio de trabalho, com as paredes decoradas com espingardas e pistolas do velho oeste com as armas que fazia empunhar nas suas aventuras o seu herói de papel.

Faço-lhes uma pergunta e respondo-a. Como é possível que Tex Willer, cuja primeira história se publicou em Setembro de 1948 tenha conseguido sobreviver até à actualidade e tenha, ademais assegurado a sua sobrevivência no futuro?
A minha resposta é que a personagem Tex foi criada pelos seus autores com uma grande carga de REALISMO e HUMANIDADE e essa identificação plena e sincera de Bonelli e Galleppini com o seu herói de ficção transcendeu aos seus leitores que perceberam de imediato que Tex era uma personagem viva, credível, dotada de uma forte e definida personalidade humana, em contraposição a tantas personagens literárias e de histórias em quadradinhos que nascem mortas porque os seus criadores não souberam insuflá-las com o alento da vida, a realidade de existir com as suas tristezas e alegrias, saber fazê-las rir e chorar, perder a sua esposa índia e sobreviver, como foi o caso de TEX.

Continuo a falar do fenómeno de personalidade real que representa Tex através de um episódio. Quando Sergio Bonelli aprovou o meu primeiro argumento de Tex, com o título Os Caçadores de Fósseis, pediu-me que antes de começar a minha escrita lesse as notas que ele me enviara desde a sua redacção. Essas notas continham uma breve e intensa biografia de Tex Willer e Kit Carson, acompanhadas de uma larga relação – sete páginas – das suas expressões coloquiais mais usuais: das piadas que compartilhavam – Tex e Carson -; dos insultos que dedicavam aos seus adversários; de suas exclamações de alarme e fúria; do modo como pronunciavam as suas preferências culinárias. Resumo algumas das suas frases de seguida, sem traduzi-las, para que possam saborear o seu encanto em italiano:

Exemplo de linguagem de TexEXEMPLO DA LINGUAGEM DE KIT CARSON: “Funerali in vista”. “Mamma che brutto”. “Corna di mille bufali”. “Sento puzza di zolfo”. “Peste”. “Ehi pellegrini”. “Sta per entrare nel concerto il mio clarino”. “Signone onnipotente”. “Temporale in vista”. “Mente como un politicante”. “Messa funebre per violini calibre 45”. “Figli di Matusalemme”.

EXEMPLO DA LINGUAGEM DE TEX WILLER: “Mi venga un colpo”. “Non toccare il ferro da tiro”. “Cucciolo di bastardo”. “Señor sicario”. “Mio bueno Carson”. “Mister triponne”. “Pistoleri da strapazzo”. “Mangiatore de tortillas”. “Il cielo li fulmini”. “Pidocchiosi figli di cani”. “Manica di fusgastri”. “Peste e corna”.

Arte de Fabio CivitelliSUAS PREFERÊNCIAS GASTRONÓMICAS: “Volete mangiare? Sí, Bistecche alte tre dita e birra, e una montagna di patatine fritte, seguita da una torta di mele” – Carson -. “Due birre gigantesche e gelate”. “Mezza pinta di caffé nero e forte”. “Mi mangerei un paio di bistecche alte mezzo metro”.

Depois de ler as biografias e as notas anexadas, compreendi, fascinado, que efectivamente, enfrentava um verdadeiro desafio. Não podia contar uma história à minha imagem e semelhança, tinha que contar uma história feita à medida de Tex e Carson, respeitando ao limite as personalidades que se haviam criado através de 50 anos de existência. Deveria escrever um argumento em que o próprio Tex aceitasse interpretar. Porque Tex poderia dizer: Não me reconheço nesta história. Não sou eu em nenhumas circunstâncias.

L'oro del SudPara reforçar esta teoria conto um novo episódio. Passado uns meses, quando já tinha escrito 100 páginas do roteiro e José Ortiz as havia desenhado – a história completa era de 350 páginas – tive a oportunidade de falar de novo com Sergio Bonelli no Salón del Cómic de Barcelona. Perguntei-lhe se estava a gostar da maneira como eu estava a realizar o roteiro. Sergio pensou e respondeu-me que até ao momento não havia nenhum problema mas, advertia-me, que se os especialistas de Tex na editora decidissem que o meu tratamento narrativo não fosse o correcto, se viesse a trair ou a desvirtuar a personalidade de Tex, paralisava-se o álbum – e já tinha pago por ele, pelo meu trabalho e pelo do José Ortiz uma cifra realmente importante -, que não se importava de jogar o projecto para o cesto dos papeis se considerasse que o meu relato sobre Tex não fosse correcto. Incrível mas verdadeiro: Preferia perder milhões de liras do que trair Tex fazendo-o protagonizar uma aventura incorrecta. Amor de PAI, amor à personagem.

O meu avô materno era um apaixonado da cultura inglesa, sentia verdadeira paixão pelos Anglo-saxónicos – assim os chamava – e por isso, durante a Segunda Guerra Mundial sofreu profundamente com as batalhas dos seus amigos de alma. Contaram-me que ele comprou um grande mapa-múndi e ia assinalando nele, com bandeirinhas de diferentes cores as vitórias e as derrotas das forças aliadas. Eu herdei a sua paixão, mas centrada nas viagens de personagens históricos. Eu comprava, por exemplo, o Diário de navegação escrito pelo Capitão Cook e ia seguindo a sua viagem dia a dia através do Pacífico, assinalando cada um dos seus descobrimentos no meu próprio mapa-múndi, sofrendo com ele quando o seu navio, o Endeavour suportava uma brutal tempestade, desfrutando quando descreve, muito moralmente, as belas nativas dos Mares do Sul.

Tex em acçãoIgual experiência realizei com Alejandro Magno, Marco Polo, Juan Sebastian Elcano, Júlio Cesar e muitos mais. E o curioso era, que quando terminava a minha aventura de acompanhamento, era consciente de que conhecia muito melhor, mais intimamente a personagem histórica, que se havia convertido para mim em uma personagem REAL. Se agora um maduro e sensato historiador descobrisse e demonstrasse que Marco Polo nunca existiu na realidade, que foi uma personagem literária saída da imaginação de um contador de histórias, não me importaria, porque insisto, para mim Marco Polo é REAL.

Por isso pergunto se algum dos milhares de leitores que têm nas suas bibliotecas todos os exemplares que contam as aventuras de TEX, escritos durante quase 60 anos, compraram um mapa dos Estados Unidos da América, Canadá, México e tendo nas suas mãos a primeira revista de Tex, cravou a sua primeira bandeirinha, acompanhada de um breve resumo da sua aventura e uma lista com os nomes das personagens secundárias: bons ou vilãos, que o acompanharam. Quando este hipotético leitor terminar de ler o último número estaria contemplando um mapa quase coberto de bandeirinhas, pois Tex viajou de ponta a ponta da América do Norte. Se contabilizarmos o número de personagens secundárias que Tex conheceu nas suas viagens e aventuras, elas superariam as quinhentos mil… setecentas mil?
Tex Habla EspañolSe se decidisse a escrever um grande volume biográfico sobre Tex, sobre as centenas de eventos e experiências de que foi protagonista, o resultado seria descobrir que Tex É UM PERSONAGEM VIVO, porque viver, para mim, significa acumular experiências e Tex no seu universo de papel cumpriu exemplarmente, com essa tarefa.
Agora ofereço-lhes um desafio. Comprem toda a colecção de Tex – TODA UMA VIDA DEDICADA À AVENTURA -, um mapa-múndi, bandeirinhas e comecem a desfrutar.

Antonio Segura

Texto traduzido e adaptado por José Carlos Francisco, baseado no livro-catálogo “Tex Habla Español” da Fundacion Municipal de Cultura – Educacion y Universidad Popular (Espanha). 146 páginas a preto e branco, com uma tiragem de mil exemplares.

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